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Delito de Opinião

Lost in Fuseta soma e segue

Cristina Torrão, 07.04.24

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Esta saga delituosa começou a 6 de Julho de 2019, quando escrevi sobre policiais alemães, tendo Portugal como cenário (os chamados Portugal-Krimis). Entre eles, estava Lost in Fuseta, de autoria de Gil Ribeiro, sobre o comissário alemão Leander Lost, que vai parar a Fuseta, num qualquer intercâmbio. Com a síndrome de Asperger, Leander Lost possui uma memória fotográfica e não compreende o ilógico. Além de ser incapaz de mentir, não reconhece a ironia, criando situações hilariantes.

Passado três anos, o postal teve direito a mais um comentário. Paula Bonifácio Vilas referiu que a televisão alemã ia passar o filme Lost in Fuseta, a 10 de Setembro de 2022. De facto, o ARD transmitiu dois episódios seguidos (de hora e meia cada), referentes à chegada de Leander Lost ao Algarve e ao seu primeiro caso. Esta foi, por assim dizer, a primeira temporada da série. Passado quase mais um ano, o intrigante comissário alemão chegava à televisão portuguesa. Através da comentadora Manuela Regueiras, ficámos a saber a RTP 2 haver transmitido esses episódios no fim-de-semana de 12 e 13 de Agosto de 2023.

Mas o Leander Lost veio para ficar (pelos vistos, também aqui no Delito). Tendo aquela primeira experiência resultado em boas audiências, o ARD decidiu dar seguimento à série (na versão livro, já vai em seis volumes). Foi transmitida mais uma temporada, de igualmente dois episódios, desta vez, em separado: o primeiro, na passada quinta-feira, e o segundo ontem, dia 6.

Enfim, não admira que o 1.º canal alemão aposte neste policial. O autor dos livros, que se “esconde” por trás do pseudónimo Gil Ribeiro, é, na verdade, um conhecido guionista de telefilmes e séries, vencedor de vários prémios, de sua graça, Holger Karsten Schmidt. A ele é dedicada a pequena caixa, à direita, intitulada “FilmInfo”, acompanhando o anúncio de transmissão do episódio de quinta-feira:

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Escusado será dizer que o próprio Holger Karsten Schmidt escreve os guiões para as filmagens dos livros do seu próprio pseudónimo.

No anúncio do episódio transmitido ontem, a caixa “FilmInfo” serve para sugerir Fuseta como destino de férias. Pois, atenção: Fuseta não é fruto da imaginação de Gil Ribeiro/Holger Karsten Schmidt, existe realmente! Acrescenta-se, no entanto, duvidar-se que uma localidade de apenas 2000 habitantes dê tanto trabalho à Polícia Judiciária. É verdade. Mas que temos nós contra um famoso guionista alemão, que adoptou um pseudónimo português e leva Fuseta e Faro como cenário de policiais de bastante sucesso aos leitores e espectadores alemães?

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Por vezes, não me é claro se o cenário é a capital algarvia, ou a terra da “tia Anica”. Sou uma nulidade nessa matéria, só estive duas vezes no Algarve e uma única em Faro. Mas, enfim, para os alemães é igual ao litro. Além disso, a trama é cheia de suspense, mesmo que, para isso, sejamos levados a fechar os olhos a algumas incongruências. Desta vez, a origem dos crimes estava num complô angolano e, apesar de dois dos protagonistas pertencerem aos Serviços Secretos desse país desde antes da sua independência, não pareciam muito velhos. Enfim, a um deles, poderíamos, com muito boa vontade, dar-lhe setenta e poucos anos, mas ao outro, diria que, no máximo, cinquenta.

Mas para que havemos de ser esquisitos? Leander Lost é bem capaz de levar ainda mais turistas ao Algarve (Fuseta que se prepare, pois tornou-se “location” a visitar). E não é todos os dias que vemos uma produção televisiva alemã, transmitida em “prime-time”, cheia de expressões portuguesas. Além dos clássicos “olá”, “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”, “como está”, pode-se ouvir, por exemplo, “polícia judiciária”, expressões culinárias e, claro, uma catrefada de nomes. Em relação a um deles e respectivo diminutivo, Holger Karsten Schmidt permite-se mesmo uma piada alusiva à sua frequência: “Qual Toninho? O filho do padeiro ou do carteiro?”; “Penso que nenhum desses dois”.

Lost in Fuseta "reloaded"

Cristina Torrão, 14.08.23

E a saga continua.

Já lá vão quatro anos (6 de Julho de 2019), desde que falei, pela primeira vez, dos "Portugal-Krimis".

E está quase a fazer um ano (9 de Setembro de 2022) que escrevi sobre a criação de uma série televisiva, baseada num desses policiais em língua alemã, mas tendo Portugal como cenário.

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Recordando: o investigador alemão Leander Lost, com o síndrome de Asperger, é colocado na Fuseta. Nesse postal de 2022, dei a minha opinião sobre os dois episódios, passados no ARD, o primeiro canal alemão. Agora, soube pela comentadora Manuela Regueiras que a RTP 2 os transmitiu no passado fim-de-semana. E, como o Pedro Correia me informou, muita gente, à procura de informações sobre a série, aterrou aqui no Delito.

Gostei de saber.

Para quem viu a série: espero que tenham apreciado.

Nota de pesar

Maria Dulce Fernandes, 08.07.22

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Olhava para o tecto acordada a pensar quanto tempo mais a minha cama suportaria este peso cetáceo que desenvolvera em pouco mais de dois meses. O  sexto mês de gravidez impôs-me aquele  ritmo lento e vaporoso de um hipopótamo saltando diafanamente de nenúfar em nenúfar. Supostamente teria pés no extremo das pernas, mas nãos lhes vislumbrava a inchação que sentia. Chamei o meu marido para me ajudar a sentar. Nada. Quem sabe não ouviu? Voltei a chamar e desta vez entrou no quarto de sopetão e meio titubeante. "Olha, morreu o Sá Carneiro! "Estás parvo?" "Não! Interromperam a programação para dar a notícia. Foi num acidente de avião." 

Ajudou-me a ir para a sala. Sabia que eu, como o país, estava em choque. Era prematuro tirar ilações da pouca informação, mas ainda hoje diz que a primeira coisa que falei foi "Mataram-no."

Como muitos portugueses, eu tinha vivido as eleições com o entusiasmo esfusiante da consumação de uma vontade. Esperávamos grandes coisas, a mudança tão aguardada estava a chegar. Tínhamos o líder que era o nosso homem do leme, mas como diz a música, a vida é sempre a perder. 

Com muita dificuldade, passei horas nas imensas filas dos Jerónimos, com lágrimas nos olhos e uma vela nas mãos, que ardeu antes de poder rezar um Padre Nosso. Um adeus, uma simples homenagem a um homem maior. Era imperioso.

...

Acabei de ver o último episódio da última temporada de Três Mulheres e voltei lá, àquela noite de 1980, quando morreu a honradez e Portugal perdeu o rumo.

Gaslit, uma mini-série

beatriz j a, 02.05.22

A série é baseada no podcast Slow Burn de Leon Neyfakh e é sobre o escândalo Watergate. O que diferencia a série de outros filmes sobre o Watergate é o facto de ser, não um desenvolvimento dramático do género policial político, com as grandes personagens do jogo -o rei, a rainha e os bispos- na construção da conspiração, mas sim uma sátira negra que incide sobre os cavalos e os peões. 

A série é contada a partir do ponto de vista da personagem de Martha Mitchel, uma célebre sulista e vedeta social, mulher do Procurador Geral de Nixon, John N. Mitchell. Martha Mitchel, de quem nunca tinha ouvido falar, era uma mulher exuberante e desbocada que estava sempre nas notícias por dizer o que pensava dos políticos e das políticas do seu partido, o que causava, amiúde, grandes embaraços ao governo e, evidentemente, ao marido. Foi ela quem primeiro ligou o nome de Nixon ao caso Watergate e fê-lo publicamente de maneira que obrigou o marido a uma escolha de lealdade entre ela e o Presidente e acabou fechada e isolada num quarto de hotel na Califórnia, guardada por seguranças e impedida de ver notícias e de falar à imprensa. Daí o nome da série, a relembrar o famoso filme de George Cukor com Ingrid Bergman.

Acompanhamos John Dean, um típico político menor sem grandes escrúpulos sempre a tentar ver o melhor ângulo para vender os seus talentos e conseguir aproximar-se das cúpulas do poder; Gordon Liddy, um zelota do FBI que comanda a operação de assalto à sede de campanha do Partido Democrata e outros peões menores. 

A série mostra-nos o ridículo e o patético das personagens políticas nos seus jogos de enganar e de ganhar vantagem sobre os adversários, o absurdo das situações, a cegueira dos lacaios que vêem no seu líder alguém mais que humano e a pequenez moral dos grandes actores políticos que governam os países. A farsa que a maioria representa para si mesmo e para os outros. Uma trágicomédia onde pessoas menores e fúteis, envolvidas em jogos labirínticos nos corredores do poder, decidem do destino de todos. Tem cenas e diálogos deliciosos que vemos sempre com um sorriso nos lábios.

Quem representa o papel de Martha Mitchel é Júlia Roberts, numa prestação muito boa, como nunca a tinha visto. Sean Penn tem o papel de John N. Mitchell. Está irreconhecível por conta das próteses na cara que lhe retiram, a meu ver, capacidade de expressão. Dan Stevens é um John Dean excelente, oleoso e sem moral. Shea Whigham constrói um Gordon Liddy completamente fanático, dedicado à causa e ao seu Presidente. 

A série vai no segundo episódio que acaba com Martha Mitchel a perceber que foi levada para a Califórnia com um falso pretexto para a afastarem de tudo e a trancarem num quarto de hotel. Sabemos o que se vai passar a seguir e mesmo assim queremos ver.

publicado também no blog azul

Viajar no sofá da sala

Maria Dulce Fernandes, 06.04.22

Meutres à

Não é segredo para ninguém que me pelo por um bom filme/série-thriller/policial. Problemas de saúde obrigaram-me a um certo tipo de confinamento por mais tempo do que gostaria e, tirando a leitura, sobrou a televisão. A televisão passa sempre mais do mesmo em sessões contínuas. Por vezes é bom, induz o sono e descansar a cabeça quando se tem insónia é sempre bom.
Calhou deparar-me com uma série franco-belga que passava no AXN White, Meurtres à...

É uma série de telefilmes de antologia policial que se desenrolam cada um, e são muitos, numa região diferente de França.
Os episódios são independentes, os enredos não são famosos, apesar da participação de vários actores francófonos conhecidos, mas as paisagens são fabulosas. A França nunca foi só Paris e depois de ver esta série fiquei cheínha de vontade de ir à descoberta de toda a beleza que fica por divulgar nos catálogos das agências de viagens e até mesmo no Visit.fr

Meutres à:

Temporada 1

1. SAINT-Malo                     

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2. Pays Basque
3. Rocamadour
4. Rouen

Temporada 2

1. Guérande       

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2. L'ile d'Yeu
3. Étretat
4. Carcassone
5. Mont Ventoux

Temporada 3

1. Collioure       

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2. La Rochelle
3. Borgonha
4. Avignon
5. L'ile de Ré
6. Le lac Léman

Temporada 4

1. La Ciotat      

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2. Dunkerque
3. Martinique
4. Grasse
5. Aix-en-Provence
6. Strasbourg

Temporada 5

1. Les Landes      

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2. Auvergne
3. Sarlat
4. Orléans
5.  Pays d'Oléron

Temporada 6

1. Cornouaille   

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2. Haute-Savoie
3. Brides-les-Bains
4. Morvan
5. Lorraine

Temporada 7

1. Colmar     

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2. Lille
3. Belle-Île
4. Tahiti
5. Contentin
6. Le Jura
7. Corrèze

Temporada 8

1. Pays Cathare     

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2. Cayenne
3. Cognac
4. Granville
5. Albi
6. Pont-l'Évêque
7. Pointe du Raz
8. Toulouse

Temporada 9

1. Berry    

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2. Mulhouse
3. Trois Vallées
4. Îles du Frioul
5. Blois
6. Marie-Galante
7. Mont Saint-Michel
8. Figeac
9. Porquerolles
10. L'oubliée d'Amboise
11. Amiens
12. Nancy
13. Champagne

 

A língua francesa infunde algo de muito belo ao conjunto.

1200px-Mont-Saint-Michel_vu_du_ciel.jpgOs guiões não são inovadores nem excepcionais nem mesmo muito diversificados, algumas interpretações deixam muito a desejar e não abonam em nada a ideia romântica heróica e virtuosa dos bravos gendarmes, mas talvez sim aquele conceito mais safado tão bem personificado por Louis de Funès, mas passamos a conhecer uma França com muitas histórias locais, pontos de interesse, usos e costumes diferentes e paisagens de tirar o fôlego.

(Todas as fotos: Google)

Histórias da Carochinha

Cristina Torrão, 23.08.21

Nesta minha estadia alargada em Portugal e apenas com acesso a oito canais televisivos (que são só seis, pois dois estão de férias), quase me limito aos da RTP. Acontece que a RTP Memória passa, nesta altura, a série “Walker, o Ranger do Texas”, não pertencente às minhas preferências, mas de algum agrado do meu marido (o meu sogro era fanático). E como é de minha opinião que podemos aprender com tudo, mesmo com coisas de que não gostamos, ou com as quais não concordamos, tenho visto alguns episódios. Pensei que me pudessem servir de reflexão. E serviram mesmo.

“Walker, o Ranger do Texas” é baseada num velho pressuposto: há alguém que tem sempre razão. A série assenta numa personagem de moral indiscutível, inteligência a toda a prova, forma física infalível e técnicas de combate invencíveis. Para ser ainda mais politicamente correcta, esta personagem reconhece as qualidades das artes marciais, é sensível aos ensinamentos cherokee e muito amiga dos negros (conquanto estes não lhe contestem a supremacia e estejam dispostos a desempenhar o papel do "banana", quando dá jeito). Concluindo: estamos perante um homem que sabe sempre tudo e age sempre de forma correcta, de acordo com os princípios que lhe foram ensinados na infância e na juventude, por pessoas (entenda-se, homens) igualmente sem defeitos e de uma moral ímpia.

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Homens assim não existem. O Walker é tão fictício, que podia ser representado por uma figura de desenhos animados. Esta série está ao nível de “Uma Casa na Pradaria”, ou dos contos de fadas dos Irmãos Grimm. O Ranger Walker mais não é do que a fada da Gata Borralheira, um ser com toque de Midas, pronto a resolver os problemas de gente em aflição.

E qual é o problema, perguntam vocês. Não se pode sonhar um bocadinho? Claro que pode. Desde que se tenha consciência disso. Não levamos as peripécias da família Ingalls a sério, assim como sabemos não existirem fadas. Mas muitos acreditam no Walker! E acreditam que o mundo pode ser como o da série: nunca há dificuldade em distinguir o Bem do Mal, todos têm o seu papel bem definido na vida e, caso esta ordem seja ameaçada, há sempre um justiceiro que põe tudo no lugar, um justiceiro que nunca cai em tentação, nunca se deixa corromper, nem nunca comete abusos. Quando o Walker pega numa arma, dispara sempre na direcção certa e atinge sempre o alvo certo. Quando o Walker faz um juízo sobre uma pessoa, nunca se engana (e raramente tem dúvidas). O Walker só agride alguém que o merece, nunca perde a calma nem a paciência com outros. Não há dinheiro no mundo que leve o Walker a fechar os olhos a uma incorrecção, a um desvio que seja.

Estes sonhos transformados em realidade são aproveitados por manipuladores. Até há pouco tempo, os EUA tiveram um Presidente que convenceu muitos norte-americanos ser capaz de construir uma América à medida da série do Walker, um mundo onde não há lugar para desvios, onde todas as famílias vivem felizes e seguras para sempre, onde as crianças têm sempre paciência para ouvirem os sermões dos adultos e onde as mulheres, profissionalmente, têm o rigor da Procuradora Alex Cahill e, em família, são dóceis, cumprindo o papel que dela se espera (mas, sinceramente, alguém consegue ver a Alex Cahill despenteada e desmaquilhada a levar com os salpicos de óleo, enquanto frita peixe?).

«Casaram e viveram felizes para sempre» - este é o final de chave de ouro nas histórias da Carochinha. Na vida real, todas as famílias escondem os seus podres.

Vivemos assim em trincheiras

João Sousa, 12.07.21

"Killing Eve (segundas-feiras no amc) é uma boa série britânica no meio do lixo que nos vai inundando, porque tem as medidas certas de humor, suspense e escrita escorreita. (...) Andei a ler umas coisas sobre a série e descobri que na quarta temporada, por via de um menor peso dado à personagem interpretada por Sandra Oh, o povo quase pegou em armas. Resta dizer que Sandra Oh é de origem asiática e terá havido então acusações de racismo à mistura. Vivemos assim em trincheiras, à procura de tudo o que possa configurar desrespeito por uma qualquer identidade. Estamos feitos..."

 

Fernando Proença, Jornal do Algarve (11/7/2021)

Bye Bye, Claxon

Maria Dulce Fernandes, 31.01.21

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Sábado à noite, era noite de Claxon.

Crime, mistério, sexo, muita acção, violência e um sem-número de alusões à nona arte da nossa juventude, esta fantástica série foi gravada em 35mm com pós-produção cinematográfica, provavelmente a pensar no grande ecrã, quando se ficou por 13 fantásticos episódios televisionados.

O país em 1991 ainda não estava preparado para este tipo de seriado dito de antologia.

António Cordeiro protagonizou o anti-herói Claxon, um detective desorganizado que se movimentava nas sombras da noite e nos meandros do submundo do crime na cidade corrupta. Nas suas quase sempre emocionais investigações, contava com a ajuda inestimável da sua secretária Ruby Tuesday (Margarida Reis) e do enciclopédico repórter Rick Planeta (Ricardo Carriço) que o traziam informado e focado nas averiguações.

Com dezenas de participações especiais, Claxon foi uma série fora de série e considerada uma das melhores ficções nacionais de todos os tempos.

António Cordeiro deixou-nos ontem, vítima de doença prolongada.

Até sempre, Claxon

 

Foto retirada do Google

Os melhores livros do meu ano (1)

Pedro Correia, 29.12.20

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É sempre assim. Chego a Dezembro e elaboro o meu balanço de livros e filmes. Neste ano de pesadelo, como muitos de nós classificamos 2020, os meus livros ganharam por larga vantagem aos meus filmes. Apesar do confinamento, ou talvez até por isso, apeteceu-me muito mais mergulhar na leitura do que assistir a filmes. Ler e cozinhar foram, aliás, os meus passatempos favoritos no ciclo de 12 meses que agora chega ao fim.

Os filmes foram ficando para trás. Sendo com frequência trocados também por séries, vistas ou revistas - dos clássicos Columbo e Uma Família às Direitas até ficções televisivas contemporâneas de inegável qualidade, como a intrigante Shetland, a devastadora Hinterland, a negra Absolvição, a sombria Linha Invisível, a desbragada Narcos, a tensa Os Crimes de Valhalla, a cáustica Barão Negro, a surpreendente Hierro, a empolgante Salvação, a imprescindível The Crown

 

Pois desta vez os livros venceram por larga margem: 100-40. Uma goleada, como se diz em linguagem futeboleira. Refiro-me apenas aos livros lidos integralmente neste 2020 que nos virou a vida do avesso: os que abandonei a meio, fosse por que motivo fosse, não entram nesta contabillidade. 

Durante três dias, começando hoje, deixarei aqui a lista dos dez melhores destes cem, multiplicada por três: a primeira, já de seguida, respeitante só a autores portugueses. Amanhã virão os autores estrangeiros. Depois de amanhã, recordo os dez que mais gostei de reler. Títulos sempre acompanhados por duas ou três frases sobre cada obra.

Cada lista fica por ordem alfabética. Podia ter sido outro o critério, mas prefiro este.

 

................................................................

 

A PAZ DOMÉSTICA, de Teresa Veiga (1999). Romance de estreia desta escritora avessa a protagonismo mediático, mais conhecida como contista. Relato sincopado do singular percurso de uma mulher ao longo de um quarto de século de convulsões políticas em Portugal, com drama e comédia entrelaçados.

 

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, de José Saramago (1995). Ponto culminante da literatura portuguesa de ficção em matéria de distopias. Lúcida descrição de um mundo sem fronteiras espaciais ou temporais convulsionado pela cegueira colectiva. De leitura quase obrigatória em tempo de pandemia.

 

GAIBÉUS, de Alves Redol (1939). O neo-realismo português entrava em cena neste romance, trocando as personagens individuais pelo protagonismo colectivo de humildes trabalhadores agrícolas das Beiras que desciam ao Ribatejo para ganhar a vida em tempo de ceifas e colheitas. Quase como escrita de repórter.

 

GAIVOTAS EM TERRA, de David Mourão-Ferreira (1959). Quatro novelas que marcaram a estreia em ficção deste grande poeta. À sua maneira, cada uma celebrando com nostalgia a Lisboa burguesa de meados do século XX. Duas delas originaram filmes, realizados por Jorge Brum do Canto e José Fonseca e Costa.

 

KURIKA, de Henrique Galvão (1944). Muitos ignoram que o futuro opositor de Salazar se distinguira antes como escritor, sobretudo de temática africana, como reflexo dos anos vividos em Angola. Este é um romance em que os animais surgem em surpreendente destaque, num contraponto português a Lassie ou Bambi

 

QUANDO OS LOBOS UIVAM, de Aquilino Ribeiro (1958). Romance-libelo sobre a luta dos camponeses da Beira Alta pelo cultivo de baldios que valeu ao autor um processo judicial e a ameaça de prisão. Inesquecível, a longa cena desenrolada num Tribunal Plenário, com palavras desassombradas em desafio à ditadura.

 

SILÊNCIO PARA 4, de Ruben A. (1973). Quatro personagens em diálogo neste romance incompreendido à época. Obra imediatamente anterior à revolução, ganha em ser lida à distância de quase meio século. Por ser sinal evidente de um fim de ciclo: a mudança de costumes antecipava o vendaval político.

 

TERRA MORTA, de Castro Soromenho (1949). Houve um tempo em que a literatura portuguesa não se circunscrevia ao continente europeu. Entre o legado dos nossos escritores africanistas distingue-se este apaixonado e pungente retrato da gente e do espaço em zonas remotas de Angola na era colonial. 

 

VIVER COM OS OUTROS, de Isabel da Nóbrega (1964). Um prodígio formal, este romance escrito da primeira à última linha num discurso directo que nunca soa a artifício. Na Lisboa privilegiada em que se anteviam os primeiros sinais de desagregação das classes sociais que funcionaram como âncora do Estado Novo. 

 

VOLFRÂMIO, de Aquilino Ribeiro (1943). Romance escrito quase em tempo real, no auge da guerra, quando ingleses e alemães disputavam as riquezas minerais do interior português, aproveitando a nossa neutralidade no conflito. Com personagens credíveis e uma impressionante riqueza vocabular, marca distintiva do autor.

Uma mini-série que vale a pena

Sérgio de Almeida Correia, 19.11.20

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Trata-se de uma série muito recente da plataforma Netflix, com apenas três episódios, cada um deles com cerca de 25 minutos. Os três episódios, com os títulos The Right to Vote, Can You Buy an Election e Whose Vote Counts, têm locução de Leonardo Dicaprio, Selena Gomez e John Legend, por eles desfilando académicos, políticos em geral, congressistas e senadores dos Republicanos e dos Democratas.

Cheia de informação actual e pertinente, divulgada, explicada e discutida em termos que a todos são acessíveis, foi uma das minhas últimas agradáveis surpresas.

Do sistema eleitoral ao gerrymandering, com exemplos tirados da realidade que ajudam à compreensão de algumas minudências, sem esquecer as questões relativas ao voto por correspondência, ao peso da história e da tradição constitucional e jurídica, é um verdadeiro e muito interessante curso para leigos, e não só, em questões políticas e eleitorais dos EUA.

Pela sua actualidade perante o que se está a passar nas terras do Tio Sam, não poderia deixar de aqui trazê-la e de a todos recomendar.

Definitivamente a não perder.

Pátria

Maria Dulce Fernandes, 09.11.20

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Baseada num livro de Fernando Aramburu (cuja leitura é fundamental antes de ver a série) a acção de Pátria inicia-se nos anos setenta e conta a história de duas famílias bascas e da sua relação com a ETA e com o conflito armado, da sua amizade, dos seus amores, ódios viscerais e hipocrisias, e termina em 2011 com a proclamação do cessamento da luta armada pela organização separatista basca. O autor explicou que só adquirindo o distanciamento necessário em tempo e espaço pôde ganhar o olhar isento necessário para escrever sobre as passagens ficcionadas da sua juventude em San Sebastián e isso é visível em toda a obra.

Há memórias que retemos mesmo involuntariamente. Uma que me chegou nítida, ao começar a ler Pátria, foi a de um cartoon de 1975 que fez capa num jornal dos vários que o meu pai comprava e que retratava um general Franco decrépito numa cadeira de rodas, a girar o garrote ao qual Espanha condenou à morte Garmendia e Otaegui, dois membros do braço armado da ETA. Apesar de em Espanha, em Portugal e em muitos outros países se manifestarem em favor da comutação da pena de morte, um dos etarras, Otaegui, foi executado pelo regime.

O livro é bom e a série recomendo vivamente.

A América de Archie Bunker

Pedro Correia, 17.10.20

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Bastavam os primeiros acordes do genérico para me porem colados ao ecrã. Um genérico fabuloso, com um casal de meia-idade entoando uma cançoneta ao piano no recato doméstico. Os versos da cançoneta diziam tudo sobre a intenção satírica desta série da CBS. Nunca os esquecerei.

 

Boy the Way Glenn Miller played

Songs that made the hit parade.

Guys like us we had it made,

Those were the days.

 

E logo um zoom nos introduzia na residência de Archie Bunker. O irascível, antipático, furibundo Archie Bunker - uma das mais perenes personagens da ficção televisiva de todos os tempos. O típico americano médio, cheio de preconceitos sociais, culturais e raciais. Reaccionário até à medula, apoiante cego de Richard Nixon e da guerra do Vietname, inimigo figadal dos ventos da História que nesses idos de setenta prometiam uma revolução cultural no país mais poderoso do planeta.

 

And you knew who you were then,

Girls were girls and men were men,

Mister we could use a man

Like Herbert Hoover again.

 

Um dos mais deliciosos ingredientes da série era o modo como subvertia o dogma então vigente sobre a classe operária como vanguarda social. Archie era operário - «explorado pelo capital», um remediado sem horizontes -, o que não o impedia de destilar ódio contra os imigrantes que vinham «roubar-nos os postos de trabalho». Contra os negros, «delinquentes por natureza». Ou contra os judeus, que «assassinaram Cristo». Conservador empedernido, rogava pragas ao desconserto de um mundo onde todas as peças lhe pareciam subitamente fora do lugar. Daí nasciam as homéricas discussões que mantinha com o genro, Mike Stivic, um intelectual de esquerda que lhe servia de contraponto ao exibir uma fé inquebrantável no progresso.

 

Didn't need no welfare state,

Everybody pulled his weight.

gee our old LaSalle ran great.

Those were the days.

 

All in the Family (que uma feliz tradução portuguesa baptizou de Uma Família às Direitas ao ser exibida na RTP) tinha diálogos de cinco estrelas, que nos faziam rir até às lágrimas, tornando Archie num ícone popular, malgré lui e as ideias que propagava. Algumas das suas expressões incorporaram-se no vocabulário comum, como «fecha a matraca» (a ordem da praxe para mandar calar a incomparável Edith, a mulher que lhe aturava todos os caprichos) ou «cabeça de abóbora» (o feroz qualificativo que reservava ao genro).

Era uma série de texto, mas também de actores, servida por um quarteto de intérpretes de luxo. Carroll O'Connor (Archie), Jean Stapleton (Edith), Sally Struthers (a filha, Gloria) e Rob Reiner (o genro, que na vida real se tornaria realizador de filmes inesquecíveis, como Misery ou When Harry Met Sally). Num tempo em que nos podíamos rir de todos os tiques e todos os dogmas. Antes da televisão padronizada, liofilizada, industrial e politicamente correcta.

«A "seriedade" não costuma ser um sinal inequívoco de sabedoria, como julgam os pasmados: a inteligência deve saber rir», como nos ensinou Fernando Savater. É nisso que penso ao rever hoje cada episódio desta extraordinária série que psicanalizava a classe média americana e se mantém actual, superando as barreiras da moda, do gosto e do tempo. Porque a América de Archie Bunker não morreu: apenas se alterou o suficiente à superfície para continuar tão tacanha como dantes.

 
 
Texto reeditado, a propósito da reposição integral da série, agora na RTP Memória

Blogue da semana

Pedro Correia, 26.07.20

Columbo continua em reposição na RTP Memória: uma boa iniciativa que veio ao encontro de um público interessado e fiel, como ficou evidente quando aqui publiquei um texto sobre esta série de culto. Com entrada directa para o top ten dos postais mais comentados de sempre no DELITO DE OPINÃO.

Muitos apreciadores da série gostariam de saber mais sobre ela. Pois encontram tudo neste blogue norte-americano assumidamente columbófilo. Lido por fãs de todo o mundo.

The Columbophile é o nosso eleito da semana.

Um imperfeito anti-herói

Pedro Correia, 01.06.20

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Uma das imagens mais iconográficas da história da ficção televisiva é a de um indivíduo mal vestido, com uma gabardina encardida, de andar trôpego e um eterno charuto apagado ao canto da boca, fazendo perguntas aparentemente sem nexo e aludindo muito à mulher que jamais nos é apresentada. Se o víssemos por aí na rua nada daríamos por ele. Mas tornou-se num dos mais inesquecíveis detectives da televisão: Columbo, magistral criação de Peter Falk, marcou todos os telespectadores da década de 70.

Produzida pela NBC entre 1971 e 1978, esta série americana dessacralizou a figura do detective, equiparando-o a um homem comum. Quase ninguém o associava à imagem de polícia: aquele homenzinho semicurvado que chegava à cena do crime ao volante de um Peugeot 403 descapotável muito fora de moda não inspirava qualquer receio aos delinquentes, convictos da sua impunidade. Todos, aliás, pertencentes à chamada elite: ricos, poderosos, bem-parecidos e aureolados com êxito profissional. Pecam por ganância, soberba, inveja e luxúria: quanto mais têm, mais ambicionam.

Não há aqui um só assassino oriundo da classe média, confirmando a lógica dos folhetins de antanho: o interesse da história é proporcional à conta bancária dos protagonistas. O facto de na ficha artística figurarem estrelas dos anos de ouro de Hollywood - muitas vezes deslocadas do seu registo tradicional - contribuía para condimentar a série. Nomes como Don Ameche, Eddie Albert, Ida Lupino, Kim Hunter, Ray Milland, Anne Francis, Roddy McDowall e Suzanne Pleshette destacam-se nos episódios iniciais.

 

Columbo - com o aliciante suplementar de incluir cenas decisivas quase sempre rodadas em cenários naturais - tinha um verdadeiro achado como chave de argumento: desde o início, o espectador sabia quem cometia os homicídios, invertendo-se assim o estereótipo do género policial. Todo o suspense centrava-se na insólita actuação deste detective sem garbo, involuntário paladino do direito criminal que quase até ao fim parecia baralhado com o labirinto de indícios que lhe surgia pela frente. Descurando por completo as evidências colhidas pela chamada "polícia científica" que viria a estar muito em voga três décadas mais tarde, com o C. S. I. e franquias quejandas.

Tudo se resolvia com base na dedução - isto é, graças ao bom e velho intelecto.

 

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Tive a grata surpresa, faz hoje oito dias, de voltar a ver esta série de que tanto gostei na adolescência. Está a ser exibida na RTP Memória. E o primeiro episódio - que recomendo vivamente - é realizado por um tal Steven Spielberg, então com apenas 24 anos, num fulgurante início de carreira que logo o fez transitar da televisão para o cinema.

Este episódio-piloto, com a duração de um filme médio, intitula-se Murder By the Book e ocupa o 16.º posto na lista dos cem melhores de todos os tempos, organizada pela revista TV Guide.

 

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Cada episódio terminava com Columbo partindo na noite, sempre de gabardina surrada e charuto sem chama.

Cumpria o dever de polícia como se fosse o primeiro a espantar-se afinal com as suas espantosas capacidade dedutivas. Um perfeito exemplo de imperfeito anti-herói.

Da importância das lombadas

Pedro Correia, 14.04.20

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Vejo na Netflix uma série islandesa de que estou a gostar muito: Os Crimes de Valhalla. Numa cena do terceiro episódio, um investigador da polícia entra na casa deserta de uma mulher de classe média que foi assassinada. Uma das primeiras coisas que vê - e nós com ele - é uma estante cheia de livros ocupando quase por inteiro uma das paredes da sala. 

Para quem esteja atento, os cenários aparentemente irrelevantes nas séries de qualidade podem dizer-nos muito sobre as características de um país. Esta diz-nos, desde logo, que existem hábitos de leitura na Islândia muito superiores aos nossos. Em que série, filme ou telenovela veríamos "adereço" semelhante numa casa portuguesa de classe média? Façam o teste e verão. As estatísticas confirmam o que a experiência empírica nos sugere: mais de dois terços dos nossos compatriotas passa um ano inteiro sem ler um livro: 67%. Lideramos o triste pódio europeu nesta matéria, superando Grécia (54%) e Espanha (53%). Em proporção inversa ao que ocorre na Suécia (28%), Finlândia (35%) ou Reino Unido (37%).

 

Talvez para marcar o contraste com esta idiossincrasia nacional, por estes dias não faltam políticos, comentadores e simples bitaiteiros que persistem em prestar depoimentos televisivos recolhidos em casa, escolhendo lombadas de livros a servir-lhes de moldura. São tantos os casos que não pode tratar-se de mera coincidência: entre nós, o livro continua a servir de elemento acrescido de autoridade natural a quem produz opinião, o que não deixa de ser irónico numa sociedade onde a norma é não ler.

Não vou presumir sobre os genuínos hábitos de leitura das personalidades que, devido à pandemia, nos vão desvendando ínfimos recantos dos seus lares. Mas aproveito para deixar a sugestão aos meus amigos editores - Francisco José Viegas, Guilherme Valente, Hugo Xavier, Inês Pedrosa, Manuel S. Fonseca e Rui Couceiro, entre outros - para transformarem estas imagens que começam a tornar-se familiares entre nós numa vasta campanha publicitária de promoção da leitura. Com a chancela institucional do Ministério da Cultura e parte da choruda verba que não chegou a ser gasta no abortado TV Fest. Faz sentido, numa altura em que o sector vai de mal a pior: a venda de livros caiu 83%, com milhares de pessoas em lay-off ou sem trabalho.

Deixo aqui algumas sugestões de figuras que poderiam figurar nessa campanha de promoção do livro. Com certeza os visados aprovariam. 

 

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Contra a pirataria

Pedro Correia, 10.04.20

Aos meus amigos que por estes dias se tornam coniventes com a pirataria, partilhando livros inteiros, jornais inteiros e revistas inteiras por via digital ou acedendo "grátis" a filmes e séries, como já fazem com a música, chamo a atenção: os profissionais da escrita, do cinema e da televisão vivem do seu trabalho. No dia em que ninguém pagar por um livro, um jornal, uma revista, um filme ou uma série deixaremos de ter acesso a estes bens de serviço público e utilidade social. Pelo mais simples e lamentável dos motivos: eles deixarão de existir.

Ao fazermos um banalíssimo clique num dispositivo electrónico, distribuindo por outros aquilo que não pagámos, estamos a dar mais uma machadada em profissões que em larga medida já caminham sobre o fio da navalha, condenando-as à extinção a curto prazo.

Um mundo sem cultura, nem informação nem entretenimento de qualidade será um mundo mais árido, mais pobre, mais primitivo, mais inóspito. Será um mundo muito menos livre.

Um mundo em que nenhum de nós desejaria viver.

E não é um cenário de ficção: pode mesmo acontecer. Só depende de nós.

Bons filmes, excelentes séries

Pedro Correia, 29.12.19

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Enquanto o cinema vai definhando, monopolizado em grau crescente por blockbusters de fabrico industrial que prometem (quase sempre sem cumprir) «arrasar nas bilheteiras», as séries florescem. Reflectindo a tendência actual: as pessoas trocam esse espaço colectivo que é uma sala de cinema regida por horários fixos pelo reduto doméstico em que imperam. Do social ao individual, do gregário ao solitário, do real ao virtual. Sair de casa, cumprir uma deslocação física, partilhar durante um par de horas uma sala (quando existe, o que já não sucede em várias cidades) com uma porção de estranhos deixou de atrair jovens e menos jovens.

Nos últimos três meses, à moda antiga, vi apenas duas longas-metragens que justificam elogio: Era Uma Vez em Hollywood, de Quentin Tarantino, e Dor e Glória, de Pedro Almodóvar - este com uma interpretação superlativa de Antonio Banderas. Sem surpresa, vejo ambas incluídas na lista dos três melhores filmes do ano elaborada pela revista Time.

 

No mesmo período, reforçando uma tendência dos últimos anos, vi bastante mais séries com qualidade.

Destaco três, que já mencionei aqui.

The Crown «Muito mais do que uma simples série televisiva: é uma exemplar coreografia do realismo político, aqui elevado a um patamar artístico.» (Terceira temporada, na Netflix)

O Método Kominsky«Vive de inteligentes e subtis modulações de texto em torno da velhice e da decadência física a ela associada, numa linha de fronteira ténue entre o drama e a comédia sem nunca excluir a ironia.» (Segunda temporada, na Netflix)

Ray Donovan - «Uma série amarga e tensa e desencantada, servida por um notável elenco onde se distingue o veterano Jon Voight.» (Sétima temporada, na Netflix)

 

Recomendei-as antes, recomendo-as de novo. Não por acaso, os cineastas de maior mérito e os actores mais consagrados têm trocado os estúdios de cinema pelas produções televisivas: é neste formato que hoje dão livre curso aos seus atributos artísticos. Aproveitemos, enquanto espectadores, esta idade de ouro da televisão. Com a certeza antecipada de que não durará sempre.