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Delito de Opinião

Nota de pesar

Maria Dulce Fernandes, 08.07.22

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Olhava para o tecto acordada a pensar quanto tempo mais a minha cama suportaria este peso cetáceo que desenvolvera em pouco mais de dois meses. O  sexto mês de gravidez impôs-me aquele  ritmo lento e vaporoso de um hipopótamo saltando diafanamente de nenúfar em nenúfar. Supostamente teria pés no extremo das pernas, mas nãos lhes vislumbrava a inchação que sentia. Chamei o meu marido para me ajudar a sentar. Nada. Quem sabe não ouviu? Voltei a chamar e desta vez entrou no quarto de sopetão e meio titubeante. "Olha, morreu o Sá Carneiro! "Estás parvo?" "Não! Interromperam a programação para dar a notícia. Foi num acidente de avião." 

Ajudou-me a ir para a sala. Sabia que eu, como o país, estava em choque. Era prematuro tirar ilações da pouca informação, mas ainda hoje diz que a primeira coisa que falei foi "Mataram-no."

Como muitos portugueses, eu tinha vivido as eleições com o entusiasmo esfusiante da consumação de uma vontade. Esperávamos grandes coisas, a mudança tão aguardada estava a chegar. Tínhamos o líder que era o nosso homem do leme, mas como diz a música, a vida é sempre a perder. 

Com muita dificuldade, passei horas nas imensas filas dos Jerónimos, com lágrimas nos olhos e uma vela nas mãos, que ardeu antes de poder rezar um Padre Nosso. Um adeus, uma simples homenagem a um homem maior. Era imperioso.

...

Acabei de ver o último episódio da última temporada de Três Mulheres e voltei lá, àquela noite de 1980, quando morreu a honradez e Portugal perdeu o rumo.

Não entenderam nada

Pedro Correia, 25.05.21

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Em 1979, Francisco Sá Carneiro formou listas eleitorais. Alargando o espaço político do PSD ao centro e à direita, firmando uma coligação com o CDS de Freitas do Amaral e o PPM de Ribeiro Telles. Mas era também necessário alargar a influência eleitoral do seu partido à esquerda. O que fazer? Num daqueles lances tácticos que traçam a diferença entre o político mediano e o dirigente de excepção, atraiu para a nova coligação dois homens oriundos da esquerda, que pouco antes se haviam sentado no Conselho de Ministros como representantes da mais jovem geração de talentos do Partido Socialista: António Barreto, ex-titular da pasta da Agricultura, e José Medeiros Ferreira, ex-responsável dos Negócios Estrangeiros, anunciaram o voto na AD em nome do seu Manifesto Renovador, força política de centro-esquerda então lançada, dando o seu aval - como independentes - à nova coligação.

Os treinadores de bancada, que já nessa altura abundavam no PSD (embora em muito menor número do que agora), não tardaram a criticar Sá Carneiro, um político que - bem à portuguesa - só viu os seus méritos largamente reconhecidos após a morte. Acusaram-no de demagogia, de oportunismo, de abrupta viragem à esquerda, de tentar tudo na desesperada caça ao voto. O costume, entre nós: quando alguém tenta mudar alguma coisa, seja o que for, no quadro político português é logo cravejado de críticas pela corporação do comentário político, eternamente avessa a novos nomes e novas siglas, sempre passíveis de baralhar os quadros mentais instalados.

Sá Carneiro ganhou essa eleição de 1979. E com isso fez história: era a primeira vez que a direita chegava ao poder cumprindo as regras do jogo eleitoral. Barreto e Medeiros Ferreira contribuíram para essa maioria, também eles criticadíssimos pelos comentadores de serviço, que já na altura não entendiam nada. Alguns são os mesmos que continuam a não entender nada agora.

Sá Carneiro quarenta anos depois

Pedro Correia, 04.12.20

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Francisco Sá Carneiro desempenhou um papel histórico no actual regime: reconciliou a direita portuguesa com a democracia. Esta foi uma missão para a qual estava vocacionado, por uma espécie de sentido messiânico, e em que viria a ser bem sucedido nos dois últimos anos da sua vida, desenrolados de forma vertiginosa, numa desesperada corrida contra o tempo. O facto de ter rompido com o regime anterior ao 25 de Abril após uma fracassada tentativa de levá-lo por rumos reformistas, como viria a suceder em Espanha, conferia-lhe uma legitimidade que poucos tinham na sua área política, dados os compromissos estabelecidos com a ditadura.

O combate decisivo para a implantação da democracia no alucinado Verão quente de 1975, contra a esquerda revolucionária, fora liderado por Mário Soares, com quem Sá Carneiro sempre estabeleceu uma rivalidade que nunca viria a ser superada, apesar da cordialidade pública que exibiam. Desafiado nesta espécie de confronto íntimo com Soares, o fundador do PPD/PSD sentiu ainda mais pressa em entrar na História, o que viria a suceder. Tinha qualidades para o efeito, bem reveladas na sua singular trajectória de uma década no palco da política: visão estratégica, uma inegável capacidade de comunicação e aquele atributo tão indispensável quanto indefinível que à falta de melhor certos politólogos costumam chamar carisma.

Venceu incontáveis batalhas internas até construir um partido influente, com uma sólida base autárquica disputada quase câmara a câmara ao Partido Comunista. Teve razão desde o início ao defender a autonomia regional, o afastamento da tutela militar e o fim do virtual monopólio da economia pública no Portugal pós-25 de Abril. E superou o teste da governação, após duas maiorias conquistadas nas urnas, embora ninguém saiba até que ponto poderia vir a ser vítima dos próprios impulsos se o destino não o tivesse colocado na fatal rota de Camarate, faz agora precisamente 40 anos.

Não teve razão, com alguma frequência, quando deixava a emoção sobrepor-se à implacável lógica cartesiana. Foi, nomeadamente, o que sucedeu no seu desenfreado combate contra o Presidente Ramalho Eanes que lhe consumiu as energias nos últimos meses de vida. A derrota nas presidenciais de 1980, a que já não assistiu, confirmava que tinham razão aqueles que em vão procuraram dissuadi-lo de transformar o popular Chefe do Estado em adversário principal.

 

Foi admirado e odiado em partes iguais, o que é sina de quem nasceu para líder.

Graças a ele, a democracia portuguesa não ficou amputada.  

Ficámos todos a dever-lhe isso.

Aventais são difíceis de rasgar

Pedro Correia, 09.12.19

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1

Consta que Rui Rio andará muito preocupado com possíveis infiltrações da Maçonaria no PSD. Admiro-me pouco ou nada. Este é um tema recorrente na logomaquia do seu principal mentor ideológico, o doutor Pacheco Pereira: quando a matéria noticiosa não abunda, recorre ao velho truque retórico de espadeirar contra maçons. Uma espécie de Bei de Tunes à moda da Marmeleira.

Lamento contrariar este par de sumidades, mas Rio não irá longe neste combate. Se quiser gastar energias a pelejar contra a Maçonaria, terá de riscar grande parte do regime republicano: o 5 de Outubro foi conduzido por conhecido maçons e a história dos últimos 110 anos em Portugal, gostemos ou não, teria sido bem diferente sem eles.

 

2

Pelo menos três Chefes do Estado na I República pertenceram à organização que Rio parece abominar: Bernardino Machado, da Loja Perseverança de Coimbra, desempenhou as funções de grão-mestre do Grande Oriente Lusitano Unido; Sidónio Pais foi iniciado na Loja Estrela de Alva, de Coimbra, embora já não fosse maçom quando ocupou o Palácio de Belém; e António José de Almeida, filiado na Loja Montanha, de Lisboa, chegou a ser eleito grão-mestre do Grande Oriente Lusitano Unido para o triénio 1929-1931, acabando por não exercer o cargo devido à doença que viria a vitimá-lo.

 

3

A Maçonaria, que esteve no 5 de Outubro, viria igualmente a comparecer no 28 de Maio.

O contra-almirante Mendes Cabeçadas, um dos protagonistas desse golpe militar e Presidente em funções durante um curto período em 1926, estava filiado na Loja Pureza, de Lisboa. Também o marechal Óscar Carmona, até hoje o mais longo detentor do cargo presidencial e figura angular do Estado Novo, aderiu à Maçonaria, aliás «ainda antes do fim do século», conforme indica a própria página oficial do Museu da Presidência da República.

 

4

Salazar e Marcello Caetano - como Rio - não se deixaram contaminar pelos ritos maçónicos. Mas com o 25 de Abril os maçons regressam ao primeiro plano da política. Mário Soares, como ele próprio revelou, foi iniciado na Grande Loja de França, em Paris, e numa visita feita ao Grande Oriente Lusitano chegou a ser tratado como «poderoso irmão», segundo revelou o historiador António Ventura ao jornal i.

Maçon era também Adelino da Palma Carlos, o primeiro chefe do Governo após a Revolução dos Cravos. Por sinal um homem de quem o fundador do PPD/PSD, Francisco Sá Carneiro, foi muito próximo - a tal ponto que, sendo ministro sem pasta, abandonou o I Governo Provisório, ao fim de 55 dias, em solidariedade com o chefe do Executivo, quando Palma Carlos entendeu demitir-se.

 

5

Mas a influência da Maçonaria na política portuguesa é anterior à república: já colhia simpatias na dinastia Bragança, nos dois lados do Atlântico.

O Rei D. Pedro IV - imperador Pedro I, do Brasil - ascendeu a grão-mestre da Maçonaria no país irmão: chegou mesmo a compor o hino maçónico brasileiro. Seu filho Pedro de Alcântara, que ocupou o trono imperial no Rio de Janeiro como Pedro II, «embora nunca se tenha filiado na Maçonaria, frequentava as lojas e acompanhava com interesse as discussões políticas e filosóficas que ali ocorriam», como revela o historiador Laurentino Gomes no seu livro 1889.

Diversas eminências do liberalismo constitucional - incluindo chefes de governos ao longo do século XIX, como Passos Manuel e o Duque de Saldanha - também tiveram filiação maçónica. Eram pedreiros-livres, como se dizia à época (maçon, em francês, significa pedreiro).

 

6

Falta acrescentar que a Maçonaria também deixou marca na história do PSD - facto que Rio e o seu mentor parecem ignorar.

Emídio Guerreiro, que liderou o então PPD no turbulento período do "Verão quente" de 1975, era maçom desde 1928, tendo escolhido o pseudónimo Lenine. Quando faleceu, aos 105 anos, foram-lhe prestadas honras fúnebres na sede do Grande Oriente Lusitano (GOL), em Lisboa. E Nuno Rodrigues dos Santos, dirigente máximo dos sociais-democratas no período 1983-1984, fora iniciado em 1935 na Loja Magalhães Lima, também na capital portuguesa, com o pseudónimo Danton.

 

7

Muitas dores de cabeça, portanto, para o sucessor de Pedro Passos Coelho no partido das três setas: a monarquia constitucional, o regime republicano, o 25 de Abril,  o primeiro-ministro de quem Sá Carneiro foi tão próximo e a própria história do PSD.

E como se tudo isto fosse pouco, até o homem que agora lhe assegura a comunicação no partido, João Tocha, confessa pertencer desde 1991 à Loja Lusitânia do GOL.

Nada escapa às infiltrações dos temíveis pedreiros. Rui Rio merece um aceno de comiseração: a vida é dura para quem se dedica a rasgar aventais.

Pacheco, Sá Carneiro e o PSD

Pedro Correia, 06.10.17

Há dias, pela enésima vez, Pacheco Pereira surgiu como auto-declarado intérprete do "pensamento autêntico" de Sá Carneiro em matéria de social-democracia. Proclamando que o actual PSD, tão tenazmente combatido por ele próprio, nada tem a ver com o do fundador do partido.

"Criou-se uma espécie de esquizofrenia política, que não ocultava no entanto o caminho de posicionamento do PSD para uma direita que deixaria horrorizados os fundadores do partido. Este caminho abandonou o centro político ao PS e era só uma questão de tempo até as sondagens e os resultados eleitorais começarem a revelar a usura do PSD reformista do passado a favor de um partido que se sentia bem numa frente de direita com o CDS." Palavras do ex-vice-presidente do PSD, ex-líder da distrital laranja de Lisboa e ex-presidente do grupo parlamentar social-democrata num artigo de opinião há dias divulgado no jornal Público.

Sá Carneiro - que se sentia tão bem "numa frente de direita com o CDS" que até a criou em 1979 - já cá não está para exercer o contraditório, pois desapareceu tragicamente em Dezembro de 1980. Mas até por isso convém recordar aos mais desmemorizados que há pelo menos um elo a ligar o partido nestas duas fases da sua história: Pacheco Pereira combateu ambas.

Porque nunca ele militou no PSD de Sá Carneiro. Pelo contrário, ele militou contra o PSD de Sá Carneiro.

Memória de 4 de Dezembro

Rui Rocha, 04.12.16

Lembro-me de ser noite e de sair com o meu pai da Ordem da Trindade, onde a minha mãe estava internada. Passavam muitos carros a apitar, em direcção à Avenida dos Aliados, com pessoas a berrar, entusiasmadas, com bandeiras do Partido Comunista. Festejavam a morte de Sá Carneiro, umas horas antes, em Camarate. Alguns desses democratas ainda devem andar por aí a chorar baba e ranho pela morte do Fidel.

Uma memória de Sá Carneiro

Pedro Correia, 19.07.16

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Francisco Sá Carneiro desempenhou um papel histórico no actual regime: reconciliou a direita portuguesa com a democracia. Esta foi uma missão para a qual estava vocacionado, por uma espécie de sentido messiânico, e em que viria a ser bem sucedido nos dois últimos anos da sua vida, desenrolados de forma vertiginosa, numa desesperada corrida contra o tempo. O facto de ter rompido com o regime anterior ao 25 de Abril após uma fracassada tentativa de levá-lo por rumos reformistas, como viria a suceder em Espanha, conferia-lhe uma legitimidade que poucos tinham na sua área política, dados os compromissos estabelecidos com a ditadura.

O combate decisivo para a implantação da democracia no alucinado Verão quente de 1975, contra a esquerda revolucionária, fora liderado por Mário Soares, com quem Sá Carneiro sempre estabeleceu uma rivalidade que nunca viria a ser superada, apesar da cordialidade pública que exibiam. Desafiado nesta espécie de confronto íntimo com Soares, o fundador do PPD/PSD sentiu ainda mais pressa em entrar na História, o que viria a suceder. Tinha qualidades para o efeito, bem reveladas na sua singular trajectória de uma década no palco da política: visão estratégica, uma inegável capacidade de comunicação e aquele atributo tão indispensável quanto indefinível que à falta de melhor certos politólogos costumam chamar carisma.

 

Venceu incontáveis batalhas internas até construir um partido influente, a partir de uma sólida base autárquica disputada quase câmara a câmara ao Partido Comunista. Teve razão desde o início ao defender a autonomia regional, o afastamento da tutela militar e o fim do virtual monopólio da economia pública no Portugal pós-25 de Abril. E superou o teste da governação, após duas maiorias conquistadas nas urnas, embora ninguém saiba até que ponto poderia vir a ser vítima dos próprios impulsos se o destino não o tivesse colocado na fatal rota de Camarate, tragédia que lhe amputou a história e engrandeceu o mito.

Não teve razão, com alguma frequência, quando deixava a emoção sobrepor-se à implacável lógica cartesiana. Foi, nomeadamente, o que sucedeu no seu desenfreado combate contra o Presidente Ramalho Eanes que lhe consumiu as energias nos últimos meses de vida. A derrota nas presidenciais de 1980, a que já não assistiu, confirmava que tinham razão aqueles que em vão procuraram dissuadi-lo de transformar o popular Chefe do Estado em adversário principal.

 

Foi admirado e odiado em partes iguais, o que é sina de quem nasceu para líder.

Graças a ele, a democracia portuguesa tornou-se mais sólida.  

Ficámos todos a dever-lhe isso.

 

Francisco Sá Carneiro (1934-1980) faria hoje 82 anos.

Pacheco, Sá Carneiro e o PSD

Pedro Correia, 03.03.16

Hoje, pela enésima vez, Pacheco Pereira surgiu na Quadratura do Círculo como auto-declarado intérprete do "pensamento autêntico" de Sá Carneiro em matéria de social-democracia. Proclamando que o actual PSD, tão tenazmente combatido por ele próprio, nada tem a ver com o do fundador do partido.

"Os homens de Passos Coelho são tudo menos sociais-democratas, são pessoas que se revêem mais facilmente no CDS do ponto de vista doutrinário. (...) Passos Coelho não tem nada de social-democrata: mostra agora um oportunismo verbal que eu reconheço na personagem pois sempre a conheci assim." Palavras do ex-vice-presidente do PSD, ex-líder da distrital laranja de Lisboa e ex-presidente do grupo parlamentar social-democrata pronunciadas há pouco na SIC Notícias.

Sá Carneiro, tragicamente desaparecido em 1980, já cá não está para exercer o contraditório. Mas até por isso convém recordar aos mais desmemorizados que há pelo menos um elo a ligar o partido nestas duas fases da sua história: Pacheco Pereira combateu ambas.

Porque nunca ele militou no PSD de Sá Carneiro. Pelo contrário, ele militou contra o PSD de Sá Carneiro.

A perigosa retórica antipartidos

Pedro Correia, 17.07.13

 

No seu habitual espaço de comentário da TVI 24, Manuela Ferreira Leite louvou o «belíssimo discurso» ao País do Presidente da República. Como seria de esperar. Chegou a dizer o seguinte, que aqui registo para memória futura: «Se a atitude do Presidente da República provocasse um terramoto interno nos partidos não seria mau. Se há coisa sobre a qual a opinião pública não tem uma boa opinião é relativamente aos partidos», havendo portanto que «metê-los na ordem».

Anotei a perfeita sintonia destas palavras com declarações quase simultâneas de Rui Rio, também em claro elogio ao inquilino de Belém. «Não sei se os partidos se conseguem entender. Mas foi-lhes dada pelo Presidente da República uma oportunidade única de se poderem credibilizar perante a opinião pública», declarara horas antes o presidente da Câmara Municipal do Porto.

Começa a fazer caminho, entre as personalidades que têm como principal referência política o actual Chefe do Estado, a ideia de que a democracia portuguesa está degenerada por culpa dos partidos.

É um caminho perigoso e que contradiz todo o património histórico do PSD desde os tempos do seu fundador, Francisco Sá Carneiro.

Vale a pena reler com atenção a última entrevista concedida por Sá Carneiro, publicada no próprio dia da sua trágica morte, a 4 de Dezembro de 1980, na revista espanhola Cambio 16. «Eanes, com este projecto impossível de acordo entre os socialistas e os sociais democratas, é um factor de instabilidade», criticava o malogrado fundador do PSD, visando o então Presidente da República, a quem acusava sem rodeios: «Eanes é um homem que provoca crises nos partidos porque tem uma visão da política que é a do poder pessoal.»

A história repete-se, com mais frequência do que muitos imaginam. Não deixa de ser irónico que Cavaco - ex-ministro das Finanças de Sá Carneiro - sirva hoje de bandeira à retórica antipartidos emanada de alguns dos seus apoiantes mais notórios.

 

Imagem: Cavaco Silva e Sá Carneiro em 1980

O que faria Francisco Sá Carneiro?

Pedro Correia, 12.07.13

 

Trataria, desde logo, de clarificar a situação. Abandonando ambiguidades e consensos pastosos, que nada resolvem e tudo complicam.

Apresentaria uma moção de confiança no Parlamento. Que separasse águas e tornasse evidente a legitimidade política do Governo na única sede perante a qual é politicamente responsável à luz do que estipula a nossa lei fundamental: a Assembleia da República.

A política, para ser eficaz, exige clareza.

Um gesto destes perturbaria o tacticismo pessoal de alguns vultos majestáticos ocupados em escrever livros de memórias antes do tempo? Talvez.

Paciência. A democracia é assim.

 

Camarate: a 10.ª Comissão

Helena Sacadura Cabral, 23.06.12

Os jornais noticiam que avança a 10.ª Comissão de Camarate.

 

Parece que será formalizada a proposta do CDS e do PSD que acordaram criar a décima comissão parlamentar de inquérito sobre a queda do avião que, em 1980, causou a morte do então primeiro-ministro, Sá Carneiro. Independentemente de quem propõe - já foram vários partidos a fazê-lo -, alguém acredita que tal seja possível? E, sendo possível, como parece que é, alguém acredita que produza mais resultados? É doloroso para aqueles que perderam os - aqui o mais importante -, e é enxovalhante para o país onde estes factos acontecem. 

A vergonhosa deslembrança

Laura Ramos, 04.12.11

 

Há 31 anos estava eu numa certa sede de campanha, a cobrir a hora de jantar. Este era o frete reservado aos novatos líricos e não numerários.
Quando a bomba rebentou, não acreditei, evidentemente. Precisei de atravessar a rua para entrar num café apinhado de gente desconhecida mas igualmente incrédula, de olhos cravados na televisão. E ouvir em directo a absurda notícia. No ar, por todo o lado, a mesma sentença terrível: «Mataram-no». «Mataram-nos», diziam os cautelosos em murmúrios e os temerários em exaltações. Numa mesa falava-se de Sidónio Pais: as memórias de um déjà vu nacional que nada me dizia.
Hoje é quase impossível transmitir a brutal violência do choque que sentimos.
Tal como é intraduzível o desânimo, o sentido de injustiça, a revolta, o desalento, o descrédito perante o país que perpetra um crime horrendo como este, exactamente na hora H, ou seja, a escassos dias de conquistar o direito a uma democracia com norte, organizada e construtiva.
À noite, na tertúlia alargada do costume, desgastei-me com outros numa interminável discussão sobre o acerto da tese de atentado, contra os restantes paternalistas que troçavam dos nossos delírios de razão, embotada pelo sentimentalismo. Era um aparente mas hipócrita e falsíssimo bom senso, o deles. Tiravam-me do sério.
Camarate foi a minha primeira grande, brutal desilusão.
Quanto ao resto, sempre fiquei na minha, durante estas 3 décadas.
E agora sabe-se que a verdade estava desde o princípio debaixo dos nossos olhos.
Certo, certo, é que desde então nunca mais confiei neste país manhoso, de honra manifestamente duvidosa, onde a impunidade, orquestrada pelas vozes do falso bom senso, continua a vingar. Convenientemente. Comodamente.  Por entre esta espécie de cobardia de um povo acostumado.

A herança.

Luís M. Jorge, 18.01.11