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Delito de Opinião

A Cultura Portuguesa

jpt, 01.02.25

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Fruto do surto de imigrantes e da desestruturação do serviços estatais de controlo fronteiriço - os anos de governação de Costa foram de pungente incompetência, e não só nesta matéria - mas também eco dessa problemática na Europa, grassa por cá uma atrapalhada discussão sobre a imigração. Os repugnantes fascistas alardeam, sem pudor e assertivos, a sua boçalidade. Os esquerdalhos bolçam, convictos, alimentando-os. Ali ao "Bloco Central" o secretário-geral do PS inflectiu agora um pouco o seu discurso, no rumo do bom senso, o que chocou muitos dos seus cúmplices. Mas logo os do PSD, em vez de acolherem essa via acusam-no de "eleitoralismo", mostrando-se epígonos da infecunda tralha que fez do PSD o PSD, restringidos não aos respectivos umbigos mas sim aos seus imundos prepúcios. É o estertor do regime, prisioneiro de gente capim.
 
Santos terá dito que aos imigrantes cumpre adaptarem-se à "cultura portuguesa". Logo à "esquerda" se insurgiram. Por exemplo, a socratista Ana Catarina Mendes - que foi deputada por Setúbal (pobre concelho), ministra e agora vai como eurodeputada - terá posto a mão na anca e dito que não sabia o que isso era. Uma jovem autarca bloquista, Escaja, foi a um desses programas ao laréu clamar que "a cultura portuguesa é uma merda". É notório que a nenhuma destes - e de vários outros - socratistas ou esquerdistas passa pela cabeça a simplérrima distinção entre "adaptar" e "adoptar". E isto nem lhes é demagogia, são mesmo apenas esta miséria! E entretanto, presumo que lá para outras bandas, os mithás ribeiros deste rincão preparem romarias à espada de Afonso Henriques, entoando "São Jorge", para comprovarem a existência da tal "cultura" daquela que dizem "Nação", para sublinharem o seu imbecil apreço pelo Estado Novo. Sem rebuço, estamos entregues aos bípedes...
 
O que é estranho é que há não muito tempo no país esse assunto era muito abordado. Eduardo Lourenço disse qualquer coisa como "temos um excesso de identidade" (escrevo de cor, não consultando livros), e ele próprio - no seu elíptico ensaísmo - discorreu sobre isso, a equação cultura/identidade, Alfredo Margarido deu curta mas decisiva canelada nas asneiras do senso comum, João Leal mostrou-nos os rumos intelectuais dos seus construtores, Carlos Leone também, as pessoas entusiasmaram-se e compraram milhares (e louvaram) de exemplares do vácuo "Portugal, o medo de existir" de José Gil, alguns sociólogos e antropólogos escreveram sobre as mundividências rurais e suas transições para o urbano. Talvez XXI não tenha trazido muito de novo sobre isso, não sei, não é o meu ofício nem meu interesse crucial, não leio nem procuro mais sobre o assunto.
 
Mas quando o espaço público se enche de atoardas sobre uma putativamente inexistente "cultura nacional" muito lamento a inexistência de "intelectuais públicos" antropólogos - se não falam agora falarão quando? - que apartem os sentidos de "cultura", e ensinem (é o termo) a operacionalizá-los e, mais do que tudo, a entender o que é uma fluidez estruturante. Até porque nos arriscamos não só ao predomínio desta incúria intelectual como ao alardear da superficialidade convencida - há algum tempo caí do sofá quando vi o ar erudito de Paulo Portas a recomendar na tv o "O Crisântemo e a Espada" (1946) de Ruth Benedict, como se fosse a porta para entender o Japão actual, a sua "cultura nacional", uma coisa pungente independentemente da magnitude da autora, mulher do seu tempo, intelectual do seu tempo, livro do seu tempo... Pois não há mesmo antropólogos "intelectuais públicos" portugueses - o único que o poderia ser, dotado da densidade e gravitas para isso, legitimamente isentou-se do rumo, calcorreia a sua via. Estamos assim, e repito-me, entregues aos bípedes...
 
É fim do mês, estico os restos do rancho. Almocei massa com atum, este refogado com malaguetas. Ao tabuleiro, diante da televisão. Liguei para o Filmin, recomendável canal-cinemateca e de barata subscrição. Comecei o Lawrence da Arábia, que não vejo há mais de uma década. "Só o começo", prometi-me, no afã de regressar às minhas gratuitas inutilidades. Mas o filme é grandioso, e maravilhosa a subtil explicitude de O'Toole, fui-me deixando ficar, (re)descobrindo tudo aquilo, encantado. Dei comigo a dizer-me "que pobres, coitados, são os admiradores do Tarantino"...
 
E depois, um bom bocado depois, exultei. Parei e tirei esta fotografia, pois ali está a súmula de tudo isto. O'Toole e Omar Sharif atravessam uma terrível rota do deserto, um dos soldados de Sharif caiu do camelo durante a noite, o seu chefe recusa-se a recuar para o salvar, no fatalismo do que aquele era seu destino ("estava escrito"). O'Toole (Lawrence) insurge-se, vai sozinho salvar o "naufragado". Quando regressa, após inclemente travessia, Sharif, aliviado, passa-lhe o seu (precioso) cantil. E Lawrence (O'Toole) - essa peculiar figura do Império, do "Ocidente", retratado num filme típico mas passível de múltiplas leituras - responde-lhe "Nada está escrito", clamando, ainda ali trôpego, o primado da indeterminação, essa construção histórica e conflitual de uma civilização específica. Cultura.
 
E se eu tivesse a dimensão de um "intelectual público" faria deste fotograma a demonstração da mediocridade destes ignorantes demagogos. Mas sei que não o sou, sigo sapateiro sem rabecão. Por isso, acabrunhado, apago a televisão. Saio e vou beber uma cerveja com uma belíssima amiga, minha "mana". Depois tartamudeio comezinho com vizinhos. E sigo para tasquinhar um bom queijo com outra bela amiga. E com eles, mas muito mais com elas, afasto a tristeza de viver neste país de... bípedes. E de com estes, apesar deles, partilhar a "cultura portuguesa".
 
*****
 
Adenda: Quando lamento a mudez da antropologia (disciplina onde abundam esganiçados "activistas" e um ou outro degenerado socratista) tenho razão. Vejo agora de manhã que o historiador Rui Ramos disse ontem no Observador o necessário (estou grato a quem me ofereceu o acesso ao artigo) - "ai, o Rui Ramos é de direita", guincharão em falsete vários daqueles a quem o Estado, pouco mas certo, paga para ensinar as novas gerações de intelectuais!... Ramos, que é um intelectual público, nisso criticável e legível, deixou o artigo aqui
 
Como é importante e o texto não é de acesso livre roubo extracto, longo: "Pedro Nuno Santos a reconhecer que a política de portas escancaradas à imigração do governo de António Costa estava errada. (...) Para os últimos abencerragens de uma esquerda woke que ontem se julgava o futuro e hoje descobre que é o passado, tudo isto é uma rendição à “extrema-direita”. Se é rendição, temos de reconhecer que os partidos de governo dos regimes ocidentais não cederam sem luta. Durante anos, fizeram da imigração descontrolada um tabu. Mencioná-la já era “racismo”. No fim, nenhuma censura bastou para calar sociedades desequilibradas pelo afluxo súbito, caótico e ilegal de milhões de estrangeiros.
 
As sociedades ocidentais foram sujeitas à mais extraordinária de todas as experiências. As necessidades de mão-de-obra barata são reais. Mas tentou-se satisfazê-las abolindo as fronteiras. Nações antigas viram-se sob a ameaça de serem reduzidas a uma espécie de aeroportos internacionais, por onde as pessoas passassem sem nada mais terem em comum do que o acatamento de certas regras. Mas o fundamento das democracias liberais ou do Estado social não é simplesmente a obediência à lei, mas a comunhão de valores a que chamamos “nação”. As nações não são dados naturais: são o resultado da história, de séculos de conflito e compromisso. Na sua origem, não está qualquer homogeneidade, mas uma pluralidade que, sem desaparecer, chegou a um sentimento de solidariedade e destino comum que faz pessoas muito diferentes identificarem-se entre si. É a nação que explica que possamos ser diversos sem cairmos sempre em guerras civis. É um património que subjaz a quase tudo o que é precioso no Ocidente: a liberdade, a igualdade, a coesão social, o pluralismo. É a isso que chamamos “segurança”, que não é apenas a contenção da criminalidade, mas o sentimento de estarmos em casa.
 
Nada disto tem a ver com a cor da pele, dos olhos ou dos cabelos ou com origens geográficas, nem com todas as religiões ou ideologias. É uma questão de valores comuns. O problema das migrações descontroladas não é só a chegada de pessoas que não partilham tais valores, mas a proposta woke, que pareceu dominar os regimes ocidentais, de que não deveríamos pedir nem esperar adesão ou sequer respeito por esses valores. Foi o projecto woke, inspirado pelo ódio da extrema-esquerda ao Ocidente, que acima de tudo criou insegurança. O resto são tremendas dificuldades logísticas, que agravaram a falta de habitação e o colapso dos serviços públicos. O caos migratório não é compatível com qualquer integração. Através da imigração nestas condições, aquilo que a oligarquia fez foi reconstituir a massa de trabalhadores pobres e pouco qualificados (...)".

O historiador e o pára-quedista

Pedro Correia, 27.09.17

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Estranhei um artigo de Rui Ramos, ontem publicado no Observador, que é um autêntico panegírico a André Ventura. Estranhei porque considero haver um fosso intelectual entre o historiador e o pára-quedista do PSD em Loures, que ali faz uma espécie de tirocínio para outros voos.

O problema de Ventura, ao contrário do que é referido nesse artigo, está muito longe de se circunscrever à questão dos  ciganos - o que já bastaria para o desqualificar como candidato autárquico de um partido que não pertence às franjas do sistema democrático.

Ventura é também um assumido defensor da  prisão perpétua, do  trabalho compulsivo de presos e da castração química de certos delinquentes, além de não lhe repugnar a pena de morte. Está portanto em oposição aberta não à gestão comunista em Loures - que aliás contou com a colaboração activa do PSD nestes quatro anos - mas ao Código Penal.

Algo insólito, num jurista.

Mais um motivo para este artigo de Rui Ramos me causar estranheza. O autor chega ao ponto de reduzir, sem ironia, as 308 eleições autárquicas de domingo a um "referendo sobre André Ventura em Loures": julgo que nem o próprio bafejado por estas palavras iria tão longe acerca de si próprio.

São palavras pelo menos tão deslocadas da realidade como a suposta "inteligência e sofisticação" do candidato assim descrito pelo historiador, que o eleva à condição de "herói de cidadãos fartos do concurso de misses do politicamente correcto”.

 

Reflecti nestas palavras. E acabei por concluir que esta peça no Observador, mais do que enaltecer Ventura, visa quem ousou criticá-lo  internamente.  Com destaque para Assunção Cristas e Teresa Leal Coelho, que na sequência imediata das afirmações iniciais de Ventura se demarcaram o mais possível dele. Ao ponto de a líder do CDS ter declarado fim unilateral à coligação pré-eleitoral com o PSD em Loures.
Aparentemente, Rui Ramos inclui a presidente do CDS e a vice-presidente do PSD entre os membros da "oligarquia política" que, à direita, "embora não tendo aderido ainda ao PS, já são inofensivos". Este raciocínio terá muito menos a ver, portanto, com o putativo "plebiscito" de Loures do que com os  ajustes de contas e a recomposição de forças à direita do PS que se prenuncia após a soma dos 308 escrutínios de domingo.

Acontece que para esse filme o contributo de Ventura será residual ou mesmo nulo. O que o ex-director de campanha de Luís Filipe Vieira ambiciona é a presidência do Benfica. Loures, onde caiu de pára-quedas, serviu apenas de isco para o "herói" de Rui Ramos ganhar um palco mediático extra-futebol. Como podia ter sido Sintra, "única terra que verdadeiramente [o] apaixona", como chegou a confessar numa entrevista.

Ou Cascalheira de Cima ou Alguidares de Baixo. Para o caso tanto faz.

A redução ao absurdo

Sérgio de Almeida Correia, 22.08.17

Poderá fazer sentido que se dê a uma crónica um título – "Se Mandela fosse do PSD, o BE arranjaria maneira de lhe chamar racista" – de cuja leitura não restem dúvidas sobre quem são os destinatários do texto, assim se restringindo a audiência. Neste caso ao BE, seus militantes e simpatizantes, e aos próprios e indefectíveis leitores do autor do texto. Isso pode servir também de aviso para quem, eventualmente, pudesse estar interessado em alargar horizontes, analisar argumentos e reflectir com o autor sobre o tema.

Se o cronista considera que as posições críticas do BE em relação a Passos Coelho são um disparate, penso que faz muito bem em dizê-lo. Isso é saudável em qualquer democracia. Mas devia, penso eu, fazê-lo de maneira a não restringir tanto o campo dos seus potenciais leitores.

Afinal, Feliciano Barreiras Duarte, que foi secretário de Estado nos três últimos governos do PSD, e também discorreu de viva voz para o semanário Expresso sobre o que foi dito no Pontal, tendo visto "com muita preocupação" as declarações de Passos Coelho sobre as alterações à lei da emigração e chegando ao ponto de dizer que "têm sido muitas as pessoas e as instituições, sendo ou não do PSD, que depois dessas declarações me têm contactado, demonstrando nuns casos revolta e indignação e noutros casos preocupação, porque não se revêem neste tipo de proclamações e temem o efeito rastilho que podem ter negativamente para Portugal e os portugueses", ainda acrescentando que "para muitos a grande dúvida é se este tipo de proclamações é apenas típico da época pré-eleitoral autárquica ou se é o início de um caminho diferente do PSD relativamente a estas matérias", poderia ter interesse em também ler sobre esse assunto. Tal como José Eduardo Martins e muitos outros que no PSD não partilham de todas as opiniões de Passos Coelho.

O racismo é com todos nós e não me parece que alguém, mesmo no BE, no seu perfeito juízo considerasse que as infelizes declarações de Arménio Carlos, a raiarem pelo menos o preconceito e que Rui Ramos achou por bem repescar neste momento, devessem ser aplaudidas. Como também não me parece, pela mesma ordem de razões, que alguém, à esquerda ou à direita e no seu perfeito juízo, fosse retirar das igualmente infelizes declarações de Passos Coelho no Pontal, que o fulano é racista ou xenófobo.   

Pensava eu que de um professor universitário e historiador seria de esperar outro tipo de argumentação. Mas não, voltei a enganar-me. Para além da mais do que evidente confusão de conceitos, enfiando tudo no mesmo saco, como aliás é típico do discurso populista mais ranhoso, ultimamente muito em voga na Casa Branca, a argumentação usada por Rui Ramos, de tão básica e redutora, assemelha-se à que, segundo ele, é utilizada pelos que no BE criticam Passos Coelho.

Pessoalmente, desconheço que esquerda democrática é essa, e à qual Rui Ramos se refere, que adopta o método "comunista e neo-comunista" (sic) de "desqualificar os adversários". Ramos devia esclarecê-lo, dizendo a quem se refere, porque só uma esquerda estúpida e ignorante o faria. Desqualificar os adversários é próprio de gente estúpida. De outro modo, se não o fizer, estaremos perante uma outra forma de reduzir a argumentação ao primarismo daquela que foi por ele usada no seu texto.

Em todo o caso, tenho a convicção de que Mandela, por muito que virasse à direita, nunca seria deste PSD a que Ramos se refere, o que desde logo e para seu evidente desgosto retiraria ao BE a oportunidade de lhe chamar racista, e a ele a oportunidade de escrever outra crónica como a que escreveu.

Parafraseando o autor, "com o devido respeito", "resistir sem medo" à argumentação delirante e maniqueísta de um cronista, professor universitário e historiador,  "não é apenas um meio de manter a liberdade de espírito necessária para enfrentar problemas como os que derivam das migrações do Médio Oriente: é também um meio de defender a democracia". E, acrescento eu, uma forma de manter a sanidade e combater os que dividem o mundo entre os que estão com Passos Coelho e os outros.