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Delito de Opinião

Serviço público televisivo?

jpt, 01.11.24

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Se eu fosse cidadão americano votaria na candidatura presidencial do partido democrata. 

Dito isto, na terça-feira estava em zapping por causa do Rúben e dei com o Daily Show, apresentado por Jon Stewart. Em tempos, aquando em Moçambique, amiúde via este programa de entretenimento político, com assumido viés democrata. Fiquei agora a ver, na curiosidade de perceber o estado de espírito nas vésperas das eleições naquele país.

O primeiro terço foi de ridicularização do abjecto Trump. O restante foi uma bem conseguida (e decerto ensaiada) entrevista ao governador da Pennsylvania, estado fundamental no peculiar sistema eleitoral americano, e no qual as sondagens anunciam um despique muito renhido. Trata-se do democrata Josh Shapiro, antes anunciado como um dos 3 possíveis candidatos a vice-presidente nessa serôdia candidatura. Discorreu ele sobre a sua obra no Estado que governa, muito louvada pelo apresentador, e sobre como Harris se revê nisso, e sobre os méritos e perspectivas da candidata. E ainda sobre questões internacionais - em particular sobre Israel, num diálogo com Stewart, ambos apresentando-se como judeus críticos da actual situação. 

Ou seja, foi uma muito competente sessão de propaganda avessa ao, repito, abjecto Trump.

Fiquei apenas com uma dúvida. A que propósito é que um programa estrangeiro com este conteúdo político, e constante viés partidário, é transmitido no serviço público televisivo nacional (RTP 3)? Isto não será suficiente para demitir a direcção de programação?

Ainda a entrevista a Marta Temido

Paulo Sousa, 25.08.24

Em Junho passado, postei aqui sobre a desastrosa entrevista que e Marta Temido deu a José Rodrigues dos Santos na RTP. Desde o primeiro momento que o incómodo da própria, e do PS, foi notório e isso terá levado a que uma queixa tenha chegado à ERC, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Digo isto, mas tenho de salvaguardar que não sei de quem foi a iniciativa que levou à recente publicação de uma Deliberação deste órgão regulador.

As primeiras reacções a esta Deliberação apontavam para o alinhamento da ERC no tom condenatório do Partido Socialista. Por sua vez, José Rodrigues dos Santos reagiu num artigo no Observador. A sua resposta não é curta, mas é explicita. De entre os vários pontos destaco a seguinte passagem:

No ponto 44, a ERC diz que teci “comentários laterais a afirmações da entrevistada que se situam no plano da opinião e não no plano da factualidade”. Para sustentar esta afirmação extraordinária, a ERC invoca que, quando a entrevistada afirmou que “alguns (países) têm até situações de tal modo graves que, neste momento, equacionar esta questão levanta uma série de outras questões”, eu terei replicado “por acaso, não creio”.

Fiquei muito espantado com esta citação, porquanto não proferi a declaração que a ERC me atribui. Existe realmente um trecho perto do final em que a entrevistada fala de países candidatos à adesão com “situações de tal modo graves que, neste momento, equacionar esta questão levanta uma série de outras questões”. Ao ouvir isto, eu de facto disse algo, mas, ao contrário do que pretende a ERC, não foi “por acaso, não creio.” O que eu disse foi “o caso da Ucrânia”.

Ou seja, eu não estava a fazer nenhuma réplica, estava só a nomear o caso de um país candidato à adesão à UE que vive de facto uma situação grave, a guerra, ilustrando exactamente o que a entrevistada estava a dizer. Oiça-se a entrevista aqui, a minha frase está aos 19 minutos e 01 segundos.

Que a ERC me atribua, como base para me criticar, declarações que jamais proferi afigura-se-me absolutamente surreal."

Sinto-me dividido em como classificar os responsáveis pela ERC. Entre a singela incompetência e a desonestidade cabeluda, mais simpático que consigo ser, faz-me ficar pela primeira hipótese, mas é óbvio que este minha simpatia me está a induzir em erro.

Ide às boxes da TV

Paulo Sousa, 06.06.24

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A entrevista de ontem ao serão de Marta Temido na RTP, conduzida por José Rodrigues dos Santos, arrisca-se a ficar nos anais do que designaria por “socialismo vs realidade”.

O entrevistador não desiludiu os seus haters (odiadores?) socialistas, confrontando a cabeça de lista do PS às eleições europeias, com a subsidio-dependência nacional, assim diagnosticada pelo ex-ministro António Costa e Silva, e com o desapontamento manifestado por Elisa Ferreira perante os resultados alcançados após anos das transferências destinadas à coesão europeia. Seguiu-se a referência à contínua ultrapassagem de Portugal pelos países mais pobres da Europa de Leste, que a convidada tentou negar, recorrendo para isso a uns apontamentos que trazia, mas que chegou ao fim da entrevista sem os encontrar.

Perante tal fogo cerrado, Temido ainda tentou reagir, mas a cadência de tiro era rápida e o calibre grosso. Se disserem que eu disse isto, negarei prontamente, mas cheguei a ter pena dela. Só me fazia lembrar aqueles filmes de guerra em que os alvos tentam correr em zigue-zague para se porem a salvo, mas que por descoordenação motora acabam por nunca se desviar da linha de fogo e se deixam apanhar no zigue quando já deviam estar no zague.

No final, José Rodrigues dos Santos agradeceu-lhe a presença no programa, ao que ela, num rasgo de sinceridade, encharcado em falta de educação, responde com um “eu não posso dizer a mesma coisa”.

Ide às boxes da TV. Foi ontem ao serão. Merece ser revisto.

Também poder visto aqui (minuto 10:30)

«Atenta às questões dos trabalhadores»

Legislativas 2024 (12)

Pedro Correia, 28.02.24

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Nada mais conveniente, para os partidos com fraquíssima representação parlamentar, do que integrar manifestações alheias para aparecerem na fotografia, fingindo que os poucos afinal são muitos. Consultar a agenda diária de manifestações e colar-se a elas: eis uma forma fácil e expedita de fazer política.

Nestes dias iniciais de campanha eleitoral das legislativas de 2024 o campeão desta chico-espertice tem sido Rui Tavares. No sábado conseguiu aparecer um par de vezes nos telediários integrando-se em duas concentrações populares em Lisboa: uma no Rossio, de repúdio pelos dois anos de agressão da Rússia à Ucrânia; outra na marcha contra o racismo e a xenofobia, na Alameda D. Afonso Henriques. 

Exibiu-se em qualquer dos eventos, transmitindo assim a mensagem subliminar de que toda aquela gente apoia o Livre. 

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A mesma táctica tem vindo a ser seguida por dois outros partidos muito carentes de votos: o PCP e o Bloco de Esquerda.

Aproveitando um protesto dos trabalhadores da empresa multinacional Teleperfomance, também em Lisboa, Paulo Raimundo e Mariana Mortágua surgiram na primeira fila. Com a certeza de que picariam o ponto nos noticiários da noite.

O secretário-geral do PCP lá se ajeitou com o megafone para debitar banalidades, proclamando-se «solidário» com os trabalhadores. A porta-voz do Bloco nem necessitou de megafone, sem ficar atrás do comunista ali na caça ao voto. 

A diligente repórter da RTP deu uma ajudinha. Dizendo isto: «Porque é ao lado dos trabalhadores que o Bloco quer estar.» Enquanto mostrava a bloquista enxugando uma furtiva lágrima de comoção. E culminou a peça desta forma: «Atenta às questões dos trabalhadores, Mariana Mortágua promete que as condições dignas de trabalho vão estar num entendimento à esquerda pós-eleições.»

Linguagem carregada de tintas épicas: pedia sonorização a condizer. Pena não se terem escutado os acordes d' A Internacional. Até a mim daria vontade de chorar.

Rússia: opositor assassinado é "dissidente"

Pedro Correia, 18.02.24

Na chamada "estação pública de televisão" oiço alguém introduzir o tema do homicídio de Alexei Navalny, vítima de sentença de morte extrajudicial decretada pelo ditador de Moscovo, chamando «dissidente» ao assassinado num presídio da Sibéria.

Voltamos à questão de sempre. Se alguém contesta uma ditadura de um determinado quadrante ideológico é denominado opositor. Mas se o mesmo ocorre numa ditadura de outro quadrante ideológico, não é opositor, mas "dissidente". Isto equivale a dizer que, nestes casos, a normalidade é a ditadura - aliás nunca assumida como tal. "Dissidência" é fuga à norma - penalizada, portanto, no discurso jornalístico corrente. Pelo menos no discurso que ouvi na RTP.

 

Como escrevi aqui, um democrata é um democrata - nunca um dissidente. E um opositor é um opositor, ponto final. 

Chamar «dissidente» a Navalny é injuriar a memória deste mártir da liberdade asfixiada na Rússia. É contemporizar com a tirania putinista, que nem permite à mãe de Navalny ter acesso ao corpo do filho - algo impensável até noutros regimes ditatoriais. Certamente com receio do que uma autópsia independente pudesse confirmar: o mais corajoso opositor de Putin foi mesmo assassinado, aos 47 anos.

Às ordens do senhor absoluto do Kremlin, herdeiro espiritual de Estaline. 

Traidor, idiota útil, prostituta política

Legislativas 2024 (7)

Pedro Correia, 14.02.24

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Os debates, num registo frente-a-frente, têm sido entre líderes de partidos. Mas certos jornalistas que deviam moderá-los, em vez de se apagarem o mais possível, procuram concorrer com os políticos em fome de palco. Fazendo lembrar aqueles árbitros que roubam protagonismo aos jogadores em partidas de futebol exibindo cartões de várias cores a torto e a direito enquanto apitam a cada 30 segundos. Numa tentativa desesperada de serem o centro das atenções.

Infelizmente isto não acontece só nos estádios: passa-se o mesmo nos estúdios. Na segunda-feira de Carnaval, na RTP, o moderador do debate entre Luís Montenegro e André Ventura fez tudo para se evidenciar. E, de algum modo, concretizou o objectivo: naqueles 39 minutos conseguiu interromper 121 vezes os candidatos! Quase em partes iguais, com o presidente do PSD a ver as suas frases 61 vezes cortadas por João Adelino Faria, enquanto o mesmo sucedeu 60 vezes ao presidente do Chega.

«Quando estamos os três a falar, ninguém nos ouve», lamentou a certa altura o pivô da RTP. Num involuntário exercício de autocrítica, pois era incapaz de se calar enquanto os dois políticos se confrontavam.

«Temos muito pouco tempo», foi outra das suas frases, dignas de cronometrista. Além da bengala verbal «muito bem» que já se transformou numa espécie de senha no canal público de televisão. É raro o jornalista que ali não usa e abusa dela, mesmo totalmente fora de contexto. Já ouvi alguns dizerem «muito bem» até quando se fala de guerras, massacres, catástrofes climáticas ou epidemias. Vale para tudo.

 

Quanto ao debate em si, nos escassos momentos em que Faria deixou os participantes completarem três frases, a ideia dominante foi esta: o Chega funciona como aliado objectivo do PS. Daí ter sido eleito, durante toda a legislatura que agora termina, como interlocutor preferencial de António Costa nos confrontos parlamentares - imitando o precedente inaugurado em França, na década de 80, pelo socialista François Mitterrand com a ultra-direita de Jean Marie Le Pen.

Os socialistas, cá como lá, alimentaram o ovo da serpente. Na expectativa de assim neutralizarem a direita moderada, sua rival directa nas urnas. Em França, o tiro saiu-lhes pela culatra: o Reagrupamento Nacional, liderado pela filha de Le Pen, tem hoje 89 deputados na Assembleia Nacional enquanto o PSF não conseguiu eleger mais do que 24, entre 577 lugares, nas legislativas de 2022. Tornou-se um partido irrelevante.

 

Neste confronto na RTP, Montenegro fez o que lhe competia. Desmascarando a irresponsabilidade do Chega, que exige agora o direito à filiação partidária e o direito à greve aos elementos das forças de segurança sem avaliar as consequências do que propõe. E esclareceu que só as 13 medidas mais emblemáticas do pacote de promessas eleitorais do partido da direita populista custariam cerca de 25,5 mil milhões de euros se fossem postas em prática - o equivalente a 9% do PIB anual português.

Contas que aparentemente Ventura não fez: embatucou ao ouvir isto, ficando sem resposta. 

Argumentou como? À maneira dele: com insultos.

Acusou o PSD de «traição», de «espezinhar as forças de segurança», de «enganar os pensionistas há 50 anos», de ser «uma prostituta política». Montenegro, para ele, é «o idiota útil da esquerda» - representante «de um sistema que nos tem dado corrupção, tachos e bandidos à solta».

 

Eis o caudilho do Chega, uma vez mais, a funcionar como guarda avançada do PS. Nem lhe passaria pela cabeça chamar alguma vez «prostituta política» a António Costa...

Ventura berra tudo quanto for preciso para gerar títulos na imprensa e cliques nas redes sociais. Mesmo baixando cada vez mais o nível. Comparado com ele, o Tino de Rans faz figura de estadista.

Este debate confirmou que há sérios problemas de governabilidade à direita com o líder do Chega em cena. À esquerda, ninguém imagina uma peixeirada destas entre Mariana Mortágua, Paulo Raimundo e Pedro Nuno Santos.

Montenegro nunca governará com quem lhe chama idiota e traidor, nem se coligará com quem acusa o PSD de prostituição política. Há limites para tudo. De algum modo, beneficiou com a estridência insultuosa de Ventura: atraiu votos moderados, separando as águas. «Muito bem», como diria João Adelino Faria pela enésima vez, repetindo a bengala verbal tão em voga na RTP.

A Terra é plana

Pedro Correia, 05.02.24

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«A CDU tem aqui um resultado que não parece tão mau como as sondagens indicavam. A CDU foi o terceiro partido mais eleito entre estes círculos - Flores, São Jorge e Faial. A CDU é um partido fundamental, com muita importância.»

Carmo Afonso (RTP 3, ontem, às 22.32)

 

(O Partido Comunista Português, uma vez mais, não conseguiu eleger qualquer deputado nos Açores: a última vez que isso aconteceu foi em 2012. Flores, São Jorge e Faial são ilhas, mas não formam nenhum "círculo". A CDU nem sequer é partido, excepto na República Federal da Alemanha)

A análise política que importa

Paulo Sousa, 04.02.23

Ouvi há pouco em podcast a última edição do programa Geometria Varável da Antena 1 em que todas a semanas Maria Flor Pedroso com Nuno Severiano Teixeira e Carlos Coelho analisam os assuntos que acham mais relevantes. Entre outros assuntos, um dos pontos abordados esta semana foi a mais recente entrevista de António Costa à RTP. Sobre ela Nuno Severiano Teixeira disse o seguinte:

- Eu acho que nesta entrevista o Primeiro Ministro esteve bem, particularmente nos aspectos performativos (…). A dimensão performativa é nesta entrevista a mais importante (…), porque o décor onde ele estava era bonito e sóbrio, muito sóbrio, bom design português, boa pintura, as cadeiras não eram cadeirões e, portanto, ele não estava recostado, estava numa posição de respeito para com o seu interlocutor, e isso é importante.

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Algures pelas redes sociais já tinha também tropeçado noutro ponto importante desta entrevista, que provavelmente terá passado despercebido ao comum cidadão, e que consistiu no facto de António Costa ter mudado de óculos. Nuno Severiano Teixeira, ficou-se pela decoração e não aprofundou a sua análise à estética pessoal do entrevistado.

Eu, que apenas prestei atenção às reacções da entrevista, tenho a dizer que sendo fraco comentador de entrevistas, o sou ainda mais fraco de decoração e mobiliário. Sobre os óculos, acho que António Costa fez mal em trocá-los, pois era a parcela da sua imagem que menos me custava a suportar.

Momento publicitário

Cristina Torrão, 24.01.23

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Não sei se já ouviram falar na série documental Duplas à Portuguesa, que costuma passar na RTP2, às quartas-feiras, pelas 22:50 horas. O 10º episódio, dedicado à dupla D. Afonso Henriques/Egas Moniz, vai para o ar no próximo dia 1 de Fevereiro.

A 13 de Julho de 2021, desloquei-me ao Museu Soares dos Reis, no Porto, a fim de ser entrevistada sobre essa dupla, para essa mesma série. A entrevista durou cerca de uma hora, mas deduzo que apenas alguns momentos serão mostrados, pois são entrevistadas várias pessoas sobre cada tema.

E era isto. Se pudessem ver, agradecia.

No país do «eu acho que»

Pedro Correia, 15.07.22

Vítor Gonçalves é um dos melhores entrevistadores da televisão portuguesa. Sem jamais armar em vedeta, sem nunca ocupar o centro das atenções, demonstrando que sabe ouvir, fazendo as perguntas que se impõem sem ser agressivo nem adoptar um tom inquisitorial que outros adoram usar defronte das câmaras. 

Vi-o há pouco na Grande Entrevista da RTP que tem a sua assinatura. Com a qualidade e a sobriedade de sempre. Questionando o presidente do Conselho Económico e Social, Francisco Assis, político de quem sempre tive boa impressão. 

«Uma das minhas preocupações é a falta de rigor na discussão [em Portugal]. Há muito clichê, há muita frase-feita, há muito preconceito, há tantas coisas que se dizem sem nenhum fundamento empírico nem resultam de nenhuma reflexão teórica séria», disse Assis nesta entrevista, reclamando «rigor na discussão dos temas que se colocam na sociedade portuguesa».

Certíssimo: o achismo é uma praga nacional. A propósito: já repararam quantas frases ouvimos e lemos, a toda a hora, iniciadas pela famigerada expressão «eu acho que»?

Histórias da Carochinha

Cristina Torrão, 23.08.21

Nesta minha estadia alargada em Portugal e apenas com acesso a oito canais televisivos (que são só seis, pois dois estão de férias), quase me limito aos da RTP. Acontece que a RTP Memória passa, nesta altura, a série “Walker, o Ranger do Texas”, não pertencente às minhas preferências, mas de algum agrado do meu marido (o meu sogro era fanático). E como é de minha opinião que podemos aprender com tudo, mesmo com coisas de que não gostamos, ou com as quais não concordamos, tenho visto alguns episódios. Pensei que me pudessem servir de reflexão. E serviram mesmo.

“Walker, o Ranger do Texas” é baseada num velho pressuposto: há alguém que tem sempre razão. A série assenta numa personagem de moral indiscutível, inteligência a toda a prova, forma física infalível e técnicas de combate invencíveis. Para ser ainda mais politicamente correcta, esta personagem reconhece as qualidades das artes marciais, é sensível aos ensinamentos cherokee e muito amiga dos negros (conquanto estes não lhe contestem a supremacia e estejam dispostos a desempenhar o papel do "banana", quando dá jeito). Concluindo: estamos perante um homem que sabe sempre tudo e age sempre de forma correcta, de acordo com os princípios que lhe foram ensinados na infância e na juventude, por pessoas (entenda-se, homens) igualmente sem defeitos e de uma moral ímpia.

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Homens assim não existem. O Walker é tão fictício, que podia ser representado por uma figura de desenhos animados. Esta série está ao nível de “Uma Casa na Pradaria”, ou dos contos de fadas dos Irmãos Grimm. O Ranger Walker mais não é do que a fada da Gata Borralheira, um ser com toque de Midas, pronto a resolver os problemas de gente em aflição.

E qual é o problema, perguntam vocês. Não se pode sonhar um bocadinho? Claro que pode. Desde que se tenha consciência disso. Não levamos as peripécias da família Ingalls a sério, assim como sabemos não existirem fadas. Mas muitos acreditam no Walker! E acreditam que o mundo pode ser como o da série: nunca há dificuldade em distinguir o Bem do Mal, todos têm o seu papel bem definido na vida e, caso esta ordem seja ameaçada, há sempre um justiceiro que põe tudo no lugar, um justiceiro que nunca cai em tentação, nunca se deixa corromper, nem nunca comete abusos. Quando o Walker pega numa arma, dispara sempre na direcção certa e atinge sempre o alvo certo. Quando o Walker faz um juízo sobre uma pessoa, nunca se engana (e raramente tem dúvidas). O Walker só agride alguém que o merece, nunca perde a calma nem a paciência com outros. Não há dinheiro no mundo que leve o Walker a fechar os olhos a uma incorrecção, a um desvio que seja.

Estes sonhos transformados em realidade são aproveitados por manipuladores. Até há pouco tempo, os EUA tiveram um Presidente que convenceu muitos norte-americanos ser capaz de construir uma América à medida da série do Walker, um mundo onde não há lugar para desvios, onde todas as famílias vivem felizes e seguras para sempre, onde as crianças têm sempre paciência para ouvirem os sermões dos adultos e onde as mulheres, profissionalmente, têm o rigor da Procuradora Alex Cahill e, em família, são dóceis, cumprindo o papel que dela se espera (mas, sinceramente, alguém consegue ver a Alex Cahill despenteada e desmaquilhada a levar com os salpicos de óleo, enquanto frita peixe?).

«Casaram e viveram felizes para sempre» - este é o final de chave de ouro nas histórias da Carochinha. Na vida real, todas as famílias escondem os seus podres.

Combater o esquecimento é serviço público

Pedro Correia, 09.08.21

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Uma das missões fundamentais do jornalismo é resgatar do esquecimento factos relevantes da nossa vida colectiva. Alguns destes factos, como no célebre filme de John Ford, vão dando lugar a mitos. Sucedeu isto a propósito das auto-designadas Forças Populares 25 de Abril, organização terrorista que esteve activa já no Portugal democrático. O recente desaparecimento de Otelo Saraiva de Carvalho funcionou como pretexto para avivar a memória já muito difusa daqueles sete anos em que o Estado de Direito permaneceu sob ameaça constante de um grupo armado que assaltava, destruía, feria e matava. Sob a liderança de Otelo, que ao obter apenas 1,5% nas presidenciais de 1980 viu definitivamente derrotado nas urnas o seu projecto de implantar uma “democracia popular”. Na certeira síntese de Ramalho Eanes, coube-lhe então a «autoria de desvios políticos perversos, de nefastas consequências». Como autor moral ou cúmplice de actos de violência extrema, incluindo quase duas dezenas de homicídios comprovados em tribunal.

A RTP destacou-se neste combate contra a desmemória num documentário intitulado Palavra de Otelo. Da jornalista Márcia Rodrigues, com imagem de Hélder Oliveira e edição de Paulo Nunes. Com recurso ao seu rico acervo de imagens, e a uma entrevista feita a Otelo em 1996, a estação pública desvenda-nos aqui fragmentos do complexo retrato do homem que quis implantar em Portugal o “verdadeiro socialismo” com recurso às baionetas. Muito antes de haver FP-25.

No Verão quente de 1975, por exemplo, Saraiva de Carvalho fez esta declaração textual aos jornalistas: «As forças armadas nesta altura estão dispostas a entrar num caminho muito duro, de repressão, que temos evitado até agora. Aqui há uns tempos, disse algumas palavras muito candidamente através da Rádio Renascença dizendo que oxalá não tenhamos de pôr no Campo Pequeno os contra-revolucionários, mas estou convencido de que a curto prazo temos de [os] pôr mesmo. A coisa parece que se está a encaminhar nesse sentido, infelizmente. Vai-se tornando impossível ter uma revolução socialista, na totalidade, por via pacífica.»

Nas últimas décadas de vida, este homem que durante o PREC comandava a mais destacada força de intervenção militar e ordenou centenas de prisões políticas sem mandado judicial, sempre negou ter proferido a frase que Márcia Rodrigues resgatou da poeira dos arquivos. Prestando verdadeiro serviço público.

Notável também, o documentário intitulado FP-25 – Terrorismo Português, que passou numa destas noites na CMTV. Da jornalista Mónica Palma, com edição de Francisco Mata. Aqui dá-se voz às vítimas – às que sobreviveram aos actos de terrorismo naquele Portugal da década de 80, às que sofreram feridas jamais cicatrizadas. Fala-se do filho que aos 17 anos viu o pai baleado na nuca à porta de casa, fala-se de um jovem agente da PJ que deixou viúva grávida, fala-se daquele bebé “contra-revolucionário” que dormia no berço quando foi morto à bomba. Avivam-se memórias anestesiadas pelo esquecimento. Serviço público também.

 

Texto publicado no semanário Novo

 

Antes pôr as mãos na água do que no fogo

Pedro Correia, 27.07.21

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Há verdadeiros mistérios nos canais informativos. Um deles acontece todas as semanas, na SIC Notícias. Nuno Rogeiro apresenta um excelente espaço de notícia e análise de temas internacionais em condições quase clandestinas: é remetido para o princípio da tarde de domingo, algures no Jornal das 2, numa rubrica de duração incerta intitulada “Leste Oeste”. Com direito a separador próprio, mas tratada como se a quisessem esconder.

Dia impróprio, horário impróprio. Merecia outro tempo e outro espaço. Porque este comentador fala do que mais ninguém diz, não apenas na SIC mas noutros canais de produção doméstica. A sua rubrica é uma genuína janela sobre o mundo num contexto televisivo que reduz o noticiário internacional a fenómenos climáticos, catástrofes naturais e acidentes em larga escala. Rogeiro rema contra esta maré tablóide, alargando-nos horizontes. E não raras vezes destaca o que os outros ignoram. Foi assim, por exemplo, no drama do terrorismo de matriz islâmica em Cabo Delgado: andou meses a mencionar este tema, a que mais ninguém ligava. Calculo o que terão dito vários editores nas mais diversas redacções: milhares de mortos sem ser por fogos ou cheias em Moçambique “não é notícia”. 

Quem tem lugar cativo nos alinhamentos televisivos é Marcelo Rebelo de Sousa – o “Tio Celito”, como muitos o conhecem em Angola. Consegue estar em foco precisamente quando não há notícia, fomentando corridas entre canais na tentativa de captar as imagens mais irrelevantes. O prémio, na recente deslocação de Marcelo a Luanda, coube a Tiago Contreiras, um dos enviados especiais da RTP: conseguiu imagens exclusivas do engravatado Presidente a molhar os dedos no oceano interdito a banhos e a dizer: “Está quente!”

Pensando bem, mais vale um político pôr as mãos na água do que no fogo. O “tio Celito” esteve em Luanda, tal como António Costa, para participar na cimeira comemorativa dos 25 anos da CPLP. Apesar das bodas de prata, quatro dos nove chefes do Estado faltaram: Jair Bolsonaro (Brasil), Filipe Nyusi (Moçambique), Francisco Guterres (Timor-Leste) e o controverso ditador da Guiné Equatorial, Teodoro Obiang. O Presidente da Guiné-Bissau, Umaro Embaló, deu lá um pulo mas saiu mais cedo. E o de São Tomé e Príncipe, Evaristo Carvalho, só pensa na despedida: o seu mandato chegou ao fim.

O aparente imobilismo da CPLP face ao drama de Cabo Delgado diz muito sobre a ineficácia desta organização, que devia “deixar de ser um clube de países amigos para descer aos cidadãos”, como acentuou Cândida Pinto, outra enviada especial da RTP a Luanda. Eis um tema que Nuno Rogeiro várias vezes tem abordado na sua rubrica. Faria muito bem a SIC Notícias em tirá-lo da clandestinidade, colocando o seu “Leste Oeste” em horário de maior audiência em vez de surgir como tapa-buracos das tardes de domingo. Fica a sugestão. O público-alvo do canal, cada vez mais exigente, certamente agradeceria.

 

Texto publicado no semanário Novo

"Melhorar", diz ela

João Sousa, 24.07.21

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Honra lhe seja feita, a deputada socialista Mara Lagriminha nem se preocupa em disfarçar ao que vem. Disse ela ontem sobre o aumento de financiamento da RTP: "Que fique muito claro que, da nossa parte, do grupo parlamentar do Partido Socialista, faremos o que for necessário, trabalharemos para poder melhorar este financiamento através do aumento da CAV [contribuição para o audiovisual]".

O dinheiro, dizia o fundador Soares, há-de sempre aparecer. Sentindo-se incentivado pela bloquista Mariana Mortágua que afirmava, no início do costismo, ser necessário "perder a vergonha de ir buscar dinheiro a quem o está a acumular", o PS actual já nem se envergonha de inventar formas de o ir buscar, para financiar a sua clientela, a quem ainda tenha algum para amostra.

Mas não se pense que o PS está sozinho. Temos também o deputado do PSD Paulo Rios de Oliveira: depois de enxovalhado pela deputada Lagriminha (parece ser este o papel a que Rui Rio limita o seu partido), afirmou-se "refrescado" por ter ouvido "a forma muito sóbria como o presidente do Conselho de Administração admitiu que a RTP tem problemas e tem problemas graves e tem que os ultrapassar."  Recordemos só, para compor o ramalhete, que este "sóbrio", "refrescante" e fresquíssimo presidente do Conselho de Administração da RTP, que ainda a tinta das paredes do seu novo gabinete não secou já vem de mão estendida pedir (mais) algumas pazadas de dinheiro para a RTP, é o inacreditável Nicolau Santos - o mesmo Nicolau Santos impulsionador da farsa "ouçam Baptista da Silva" e que, antes da RTP,  já tinha sido colocado pelo PS na presidência da Lusa.

Isto está bonito!

O ministro apareceu quatro vezes

Pedro Correia, 26.05.21

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Com o fim dos sucessivos estados de emergência e o adeus ao desconfinamento em quase todo o território nacional, temos assistido ao regresso dos engarrafamentos nos acessos às cidades e nas ruas dos grandes centros urbanos.

Já se esperava isto. Menos previsível é que alguns membros do Governo também provocassem engarrafamentos nos telejornais. Ora isso tem acontecido, a um ritmo que acompanha o do novo fluxo rodoviário.

Neste capítulo, o primeiro lugar do pódio cabe sem margem para dúvida ao titular da pasta dos Negócios Estrangeiros. O portuense Augusto Santos Silva, talvez por jogar em casa, foi o astro de serviço no último Jornal da Tarde de sábado [8 de Maio] da RTP. A pretexto da cimeira social que no passado fim de semana congregou na Cidade Invicta os principais líderes da União Europeia.

 

Mal abrira o serviço noticioso, eram 13.01, quando o chefe da nossa diplomacia surgiu pela primeira vez no ecrã. Em pose institucional, como convém ao exercício do cargo. «O processo de decisão institucional na UE implica concertação entre os 27 Estados. (…) Nós devemos ter sempre em conta que os direitos de propriedade intelectual existem para proteger a inovação. É uma discussão que se faz há muito tempo», declarou, a propósito da mais recente controvérsia em torno das vacinas.

Não tardou a voltar ao ecrã. Eram 13.03 quando o vimos num cenário diferente, desta vez para emitir opinião sobre a importância dos consensos em Bruxelas. Excerto do que disse nos três minutos em que ocupou a antena: «As políticas sociais são típicas dos Estados nacionais, mas esta convergência para metas comuns, cada uma pelo seu caminho, é muito importante para reforçarmos o modelo social europeu.»

Não havia decorrido uma hora e lá irrompia de novo na pantalha, eram duas da tarde em ponto. Congratulando-se pelo anunciado regresso dos visitantes britânicos às praias lusitanas: «É muito bom chegar a esta altura e saber que o Reino Unido, que é o primeiro mercado de origem dos turistas em Portugal, reconheceu que a situação pandémica em Portugal é muito razoável.»

 

Três vezes no mesmo telediário: nem o próprio Marcelo Rebelo de Sousa consegue tamanha proeza com tanta facilidade. Mas ainda teríamos direito a outra intervenção do mesmo ministro, noutro enquadramento, um pouco mais descontraído. Eram 14.15: o inquilino do Palácio das Necessidades visitava as instalações onde trabalhavam os jornalistas que cobriam a cimeira e lá voltou o microfone da RTP a ser apontado na sua direcção. Para registar estas palavras: «Eu vim aqui ver se o espaço era suficiente, se havia boas condições de trabalho, se estava bom ambiente, e verifico que sim. E sei que esta galeria tem todas as condições para o vosso trabalho.»

O Jornal da Tarde é produzido no Porto: haverá compreensíveis afinidades bairristas com o ministro natural da cidade. Mas talvez isto não baste para explicar tanta insistência. Será que Augusto Santos Silva começa a ser lançado como eventual sucessor de António Costa num futuro próximo? As grandes caminhadas começam com pequenos passos.

 

Texto publicado no semanário Novo

Tristes Olhos Castanhos

Maria Dulce Fernandes, 07.02.21

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Foi há cerca de 56 anos que o cantor romântico dos "Olhos Castanhos" , numa actuação em directo no programa TV Clube, resolve  "informar" o país da absurda discriminação e grande disparidade de cachets perpetrada pela RTP, entre artistas nacionais e estrangeiros. Tão abrupta e surpreendente foi a intervenção, que ninguém sabia o que fazer e a emissão continuou no ar durante algum tempo.

Claro está que o ano era 1964 e a censura, apanhada de surpresa nada pôde fazer senão mandar parar a emissão em directo, mas nessa altura o "mal" já estava feito.

O caso "Chico Zé" teve  repercussões populares à boca pequena a nível nacional e, como seria de esperar, a sua carreira em Portugal acabou ali.

Teve um revivalismo anos mais tarde após a Revolução de Abril, mas nunca voltou a atingir a popularidade de que gozava antes de 1964.

Para ler

https://expresso.pt/cultura/2021-02-06-O-dia-em-que-o-cantor-Francisco-Jose-desafiou-a-RTP-em-direto

https://museu.rtp.pt/livro/50Anos/Livro/DecadaDe60/RTPAos10Anos/Pag30/default.htm

 

Foto Google/Expresso

A culpa é do Passos Coelho

jpt, 04.02.21

Ana Drago teve alguma celebridade no advento do BE parlamentar. Alguma verve, cara jovem e laroca. Saiu do Parlamento há oito anos, ingressou no LIVRE, passo que foi insuficiente para que os quadros desse neo-MES ascendessem na orgânica estatal. E algo desapareceu da vida política. Mas mantém, sabe-se lá devido a que critérios, estatuto de comentadora política no serviço público televisivo. Representatividade política? Não pode ser, dada a contínua exiguidade de comentadores associáveis a partidos com assento parlamentar como PCP e PAN, e mesmo o IL e o CHEGA. Estatuto intelectual, advindo de obra publicada? Não me parece, pelo que o google anuncia. A cara laroca? Não é argumento aceitável nestes tempos. Ter sido deputada? Não o foram, nas últimas décadas, algumas centenas de portugueses?

Vejo isto ontem. No momento da maior crise social, sanitária e económica que o país conhece desde o final do Estado Novo, com hospitais cheios, incremento da mortalidade, o que se requer a quem comenta no serviço público? Alguma densidade interpretativa, claro que sempre subjectiva. E alguma seriedade. O que vem esta velha cara laroca dizer? Explica o incremento exponencial das infecções pela disseminação da "variante inglesa" - conhecida bem antes do Natal, ao invés do que o nosso primeiro-ministro mentiu. E que esta disseminação se deve à "emigração no tempo da troika" e de Passos Coelho. O atrevimento é tão grande que a comentadora não se contém e ri-se ao proferir a mariolagem. Friso neste momento gravíssimo é este tipo de gente, este tipo de argumentação chocarreira, que a RTP, serviço público, convoca para "informar" o país. Sob que critérios, a que propósitos? Para que "serviço público"? O de elidir quaisquer responsabilidades do actual poder político, é óbvio.

E de seguida, se formos afectados pela "variante brasileira", que virá a ex-laroca Drago dizer? Apontar a culpa de algum rei constitucional, incapaz de afrontar o tráfico de "escravatura branca",  a assim dita emigração portuguesa em XIX, ou a recente "abrilada" que a alguns fez partir para o Brasil? Se nos chegar a "variante sul-africana" (que me parece estar a devastar Maputo) virá ela clamar que a responsabilidade é dos colonialistas Afonso Costa ou Salazar - ou mesmo de Rosa Coutinho e de Almeida Santos, como apontariam logo tantos dos ex-colonos?

Enfim, a questão é esta: a que propósito é que o serviço público convoca esta miséria moral e intelectual para comentar tamanha crise? De viçosa nada tem. Segue apenas sabuja. No afã de encapuçar este miserável estado das coisas.

Um documentário sobre o Gulag

jpt, 20.11.20

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(Fotografia de Marc Garanger)

A RTP está a transmitir a série documental "Gulag, uma história soviética", em três episódios, um documentário francês realizado por Patrick Rotman, Nicolas Werth e François Aymé (uma entrevista de Rotman aqui). 

Julgo saber que se trata de uma (interessante) iniciativa da nova directora do Museu do Aljube, a qual organizou (e patrocinou) a transmissão deste excelente documentário histórico no canal público de televisão. Bem haja, Rita Rato. 

Nota: Para prévios elogios a Rita Rato ler  Alexandre PomarJoão Pedro George, Pedro Correia.

Adenda: Quem tiver pressa poderá ver os três episódios aqui.

Dois magníficos documentários

Pedro Correia, 27.09.20

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O documentarismo televisivo português atravessa uma das melhores fases de sempre. Comprovei isso nos últimos dias, vendo dois magníficos documentários - um no segundo canal da RTP, outro na SIC. Nenhum deles alvo de promoção especial pelas respectivas estações, algo que já não estranho: o espectador atento tem de descobrir pela sua própria intuição o que de melhor ali se oferece.

O da SIC, exibido faz hoje oito dias no âmbito da rubrica "Vida Selvagem", intitula-se Mar da Minha Terra - Almada Atlântica. Pede meças aos melhores filmes sobre fauna e flora do planeta exibidos há décadas em estações de referência no género, como a BBC. 

Com realização de Luís Quinta, credenciado fotógrafo da natureza, e competente locução de Augusto Seabra, este documentário mostra-nos o que muitos desconhecíamos: «Entre a Costa da Caparica e o Cabo Espichel existe um imenso mar de segredos onde criaturas belas e raras nadam, voam e encontram refúgio. Aqui, gigantes marinhos coexistem com seres minúsculos de micromundos. À fauna local juntam-se viajantes oceânicos.»

É, para muitos de nós, uma revelação: a escassos quilómetros do areal que tanta gente frequenta, com a arriba fóssil bem à vista, nadam tartarugas, golfinhos, roazes, tubarões azuis, baleias anãs e orcas. Filmados neste habitat que, em muitos casos, constitui já sua morada permanente. Comprovando assim a qualidade destas águas e destas praias, não por acaso distinguidas anos a fio com a bandeira azul. A natureza segue aqui o seu curso: toda uma revelação para quem só costuma ver as águas oceânicas portuguesas associadas a deprimentes notícias que dão conta da sua degradação com carácter irreversível. 

 

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O outro documentário, exibido a 16 de Setembro no canal estatal, intitula-se Exílio no Atlântico e revela-nos um episódio ignorado, dos muitos em que Portugal funcionou como refúgio nos dias sangrentos da II Guerra Mundial: cerca de dois mil habitantes de Gibraltar, evacuados do enclave-rochedo por decisão do comando militar britânico, encontraram asilo na Ilha da Madeira e ali permaneceram cinco anos, entre 1940 e 1945. Resguardados do conflito mais dilacerante que a História já conheceu.

É um filme assinado por Pedro Mesquita, que nos narra a história dessas famílias, amputadas do local de nascimento, da residência, da ligação umbilical a Londres e, em muitos casos, até de alguns parentes muito próximos, mobilizados em acções bélicas a centenas ou milhares de quilómetros de distância. Ao mesmo tempo ficamos a saber um pouco mais sobre as virtudes hospitaleiras dos portugueses e a vocação do nosso país - que tantas vezes menosprezamos sem motivo válido - para funcionar como porto de abrigo.

«Nós, na Madeira, pudemos considerar-nos muito afortunados. Porque vivemos uma vida normal, sem nenhuma preocupação com a guerra», lembra um desses refugiados - então menino, hoje um ancião grato à inesperada dádiva que recebeu na roleta da existência. É comovente ver como a marca da infância experimentada na Pérola do Atlântico, território neutral num mundo em chamas, ficou impressa para sempre naquelas crianças e adolescentes ainda capazes de falar e cantar em português. Uma lição de vida. E uma demonstração prática de como as circunstâncias fortuitas podem mudar-nos o destino. Dependemos sempre do acaso, o outro nome que atribuímos ao desconhecido.