Cerejeiras e escritores: um roteiro no Fundão
Há sítios que se visitam com os olhos, outros com os pés. O território do Fundão – uma discreta preciosidade encostada à serra da Gardunha – merece ser percorrido com ambos, mas também com o coração aberto e um bom livro na mochila. Entre encostas pintalgadas de branco pelas cerejeiras em flor e lugares que guardam séculos de histórias, este roteiro é uma viagem por palavras, paisagens e memórias.
Entre palavras e cerejeiras: um passeio onde a literatura floresce
Nesta Primavera tenho andado em busca de lugares floridos. Talvez seja uma forma de equilibrar o meu estado de espírito, tão cinzento quanto os meses passados, desencadeado por esta espécie de retrocesso humano e civilizacional da época em que vivemos. As flores são uma prova de que a vida tende a renascer ciclicamente, e de que vale a pena ter esperança. E são sempre uma fonte de alegria quando dela mais preciso.
No nosso país, em que metade da fronteira acaba em mar, há lugares felizes onde se começa pelo que brota da terra. A Cova da Beira é um deles. Ali pela primeira ou segunda semana de Abril, a região transforma-se num postal em movimento, com milhões de flores de cerejeira que rebentam em festa. É um espectáculo efémero e, por isso mesmo, memorável. O resultado de tanta efusividade chega com o prenúncio do Verão, quando as cerejas despontam como rubis brilhantes entre o verde da folhagem.
Mas há mais. Por aqui, as cerejas misturam-se com as palavras (afinal, todas elas vêm sempre umas atrás das outras…) e podemos seguir os rastos da poesia de Eugénio de Andrade e do elefante Salomão de José Saramago, enquanto conhecemos aldeias serranas com identidade própria, uma culinária que aproveita os produtos locais, e pessoas que não se esquivam a uma boa conversa.
“A aldeia era uma aldeia como já não se vêem nos dias de hoje”
Apesar de ter decidido viver em Lanzarote durante uma boa parte da sua vida, Saramago nunca escondeu o seu gosto por Portugal, pela sua história, pelas suas paisagens, pelos seus lugares remotos ou despercebidos. Em 2009, um ano depois de lançar o seu último livro, “A Viagem do Elefante”, e um antes da sua morte, o escritor viajou pela rota que imaginou para pano de fundo deste livro, entre Lisboa e Figueira de Castelo Rodrigo. O intuito foi chamar a atenção para algumas regiões do interior de Portugal que permanecem na sombra dos itinerários turísticos.
A páginas tantas do seu livro – que relata a hipotética viagem de um elefante oferecido por D. João III ao seu primo Arquiduque Maximiliano de Áustria, à data regente de Espanha e residindo em Valladolid – a comitiva que acompanha o elefante Salomão chega a uma aldeia. O nome da dita cuja nunca é referido, mas no roteiro da visita de Saramago assumiu-se que ela seria Castelo Novo. Entre a breve descrição no livro e a localidade tal como a vi na altura da minha visita, nada há de coincidente – nem o século, nem o mês, que a viagem do elefante se desenrolou no Verão e nós cumprimos este roteiro numa Primavera cinzenta e meio chuvosa.
Tranquilidade com selo literário
Castelo Novo é cenário natural para introspecções literárias. Aqui há algo do ritmo lento e reflexivo de Saramago, da densidade dos silêncios, da beleza escondida nas pequenas coisas. Vaguear é a atitude certa para percorrer esta aldeia histórica, com a certeza de que cada rua revelará alguma novidade: uma capela de pedra, vasos de flores na escada de uma casinha amorosa, uma torre que espreita por trás de um telhado, uma porta pintada de verde-lima, dois gatos que bebem água da chuva e parecem o espelho um do outro.




Encaixada numa vertente da Gardunha, Castelo Novo vive entre a vertigem da encosta e o acolhimento das suas ruas de pedra. Tudo parece ter sido desenhado com calma: as casas baixas e sólidas, os portais góticos, os caminhos estreitos que se entrelaçam como versos livres. A aldeia está impecavelmente conservada, todavia sem perder o seu carácter rústico e genuíno.
Um dos seus maiores encantos é o som constante da água, ampliado pelas chuvas recentes. O Chafariz da Bica é um dos ex-líbris da aldeia, exibindo a sua estética barroca no cimo de uma escadaria que hoje parece demasiado aparatosa para uma finalidade tão básica: dar de beber a homens e animais. O acto de simplesmente deitar a mão a uma torneira para termos água potável faz-nos esquecer que nem sempre foi assim.
No Largo do Pelourinho, a água cai das três bicas de outro chafariz, este dedicado a D. João V. Há um aviso na parede: “água não controlada”. Quando é que deixámos de confiar nas águas que durante séculos serviram para matar a sede aos nossos antepassados? Será assim tão dispendioso verificar a sua origem e assegurar que pode ser bebida? O chafariz deixaria de ser um mero ornamento arquitectónico, tornado obsoleto pela sua inutilidade, e poupavam-se umas quantas garrafas plásticas que vão acabar sabe-se lá onde.
Mas adiante. Este chafariz barroco está encostado à Casa da Câmara e Cadeia, que são manuelinas, tal como o pelourinho em frente. A patine do tempo encarregou-se de esbater as diferenças entre os estilos: o granito está igualmente manchado e desgastado em todas estas estruturas, e unifica o conjunto. Acima do largo ergue-se a Torre Sineira, que até parece fazer parte da Casa da Câmara, mas na verdade está inserida na muralha do castelo.
Porque o nome não engana: Castelo Novo nasceu à sombra de uma fortificação. O castelo medieval, de que hoje apenas restam ruínas evocativas, foi erguido no século XIII, em plena fase de reconquista e consolidação territorial. Apesar do adjectivo “novo”, o castelo já viu muito mais do que a maioria de nós verá: batalhas, reis, reformulações – e agora, selfies. Do alto das muralhas (do que resta delas), 650 metros acima do nível do mar, a vista alonga-se por muitos quilómetros: serranias a perder de vista (em dias claros vê-se ao longe a Serra da Estrela), com a Cova da Beira lá em baixo, como um tapete verde e fértil. Ninguém escapa à tentação de pousar ali uns minutos, mesmo com vento pouco convidativo, só pelo privilégio de tão extenso panorama.
N’ “A Viagem do Elefante”, Saramago foi omisso quanto à opinião do paquiderme sobre a aldeia perdida nas encostas da Gardunha. Terá ele também apreciado a paisagem, tão diferente da sua Índia natal? Nunca saberemos. Mas nós, humanos, temos motivos de sobra para ir conhecer Castelo Novo.
Segredos de Alpedrinha
A escolha de José Saramago para aldeia do seu livro podia bem ter sido outra. Alpedrinha é hoje vila, mas na verdade tem ambiente de aldeia. Ainda mal tínhamos saído do carro e já o Sr. António, bengala na mão e sorriso maroto nos lábios, metia conversa connosco. Logo ficámos a saber que todas as manhãs faz questão de estar naquele miradouro, junto à Capela de Santo António, à hora a que passa o comboio rápido com destino à Guarda. Palavra puxa palavra, contou-nos uma boa parte da sua longa história de vida, com graça e boa disposição. E quando lhe pedimos sugestão de lugar para almoço, não hesitou em guiar-nos até um restaurante ali próximo e recomendar-nos ao dono.
Mesa marcada, despedimo-nos do Sr. António e encaminhámo-nos encosta acima – afinal, havia que criar apetite para o que já calculávamos ir ser uma refeição não muito leve. Alpedrinha é feita de calçadas estreitas, empedradas, de escadinhas irregulares que serpenteiam por entre casas de granito. Tudo aconselha andar devagar, muito devagar. A pressa poderia fazer com que não nos apercebêssemos de certos pormenores, e é frequente serem os pormenores que marcam a diferença. Como a fonte desactivada em frente à casa dos Paços do Concelho, modernista, em metal oxidado e com ar de recente, mas que vista de perto percebemos ser afinal muito antiga: a placa colocada no topo diz “Lusalite - Lisboa”, e esta fábrica (à porta da qual passei tentas vezes) fechou em 1999. Ou a casita meio degradada com uma pequena cruz de ferro na frontaria, entre um nicho com uma imagem religiosa de idade indecifrável e uma janela emoldurada por granito, agora pintado de branco, com dois arcos recortados na cornija.
Alpedrinha foi uma aldeia rica, estratégica e influente, e esse estatuto ainda ecoa nas fachadas e nos brasões das casas. Despercebido não passa o antigo Solar dos Pancas, que agora é creche da Santa Casa da Misericórdia. Palacete do século XIX com abundantes varandas de ferro forjado, tem um jardinzinho anexo e faz reconto com a bonita Capela de Santa Catarina, tardo-gótica (1501), à qual chamam também Capela do Leão. Este nome vem do fontanário que está ao lado, uma das mais antigas fontes de Alpedrinha – tão antiga que a imagem esculpida, de onde jorra um fio de água, já muito desgastada pelo tempo, poderá de facto representar um leão… ou outro bicho qualquer.
Sempre a subir, atalhámos caminho pela Igreja Matriz, dedicada a São Marinho Bispo. No muro, uma placa metálica lembra as vítimas mortais do saque de que a localidade foi alvo em 1808, durante a 1ª Invasão Francesa.
Chegámos finalmente ao cimo de Alpedrinha, e a um dos monumentos mais emblemáticos da vila, o Chafariz D. João V. Aquele que foi apelidado de “Rei-Sol português” parece ter sido muito popular aqui pelas bandas da Gardunha, e este fontanário não lhe desmerece o estatuto: um grande tanque, uma escadaria simétrica, remates com bolas, volutas e um baluarte com três bicas, encimado por uma coroa.
Num plano ainda mais elevado, vêem-se os muros do Palácio do Picadeiro, à porta do qual passa uma calçada romana. Construído no século XVII, este solar barroco é mais um ex-libris de Alpedrinha, mas tem tido uma vida atribulada. Já foi tribunal, hospital e (pasme-se!) tipografia, e é actualmente um museu e espaço cultural (mas, infelizmente, fechado para remodelação há já algum tempo). O seu amplo pátio é, além do mais, um mirante de excelência sobre a vila e a paisagem da Gardunha.
Alpedrinha não vive apenas de memórias antigas. Todos os anos, em Setembro, a vila transforma-se no palco do Chocalhos-Festival dos Caminhos da Transumância, uma homenagem às rotas percorridas pelos pastores da Beira Interior. Há música, exposições, artesanato, petiscos… e chocalhos, claro. O som metálico percorre as ruas e anima as esquinas, numa festa que une tradição e contemporaneidade. Uma homenagem diferente aos pastores, e em especial ao já falecido “Ti Lopes”, é o mural pintado por Styler (a.k.a. João Cavalheiro) num edifício quase à entrada da vila.
Depois do passeio, o almoço foi no Degusta-me Petiscos, onde o cardápio varia em função da época. O prato estrela do dia era cabrito, de que não sou grande apreciadora, e optei pelo bacalhau assado, que estava excelente. Ainda assim, e por insistência do chef, que me garantiu que o seu cabrito é temperado de maneira especial e não fica com o sabor intenso que eu não aprecio, atrevi-me a provar um pouco. E tive de concordar com ele, pois estava muito apetitoso. Em conversa, falou-nos de um dos segredos da sua cozinha: o uso de uma erva aromática pouco conhecida mas bastante usada nas Beiras, parecida com o tomilho e a que chamam serpão. Escusado será dizer que saí do restaurante quase a rebolar…
Póvoa de Atalaia: onde nasceu um poeta
Foi não muito longe de Alpedrinha, em Póvoa de Atalaia, que por capricho da natureza ou dos deuses nasceu um dos nossos maiores poetas: Eugénio de Andrade. Embora tenha vivido grande parte da sua vida no Porto e em Lisboa, José Fontinhas (o seu nome de registo) nunca renegou a sua aldeia. Pelo contrário, os campos, as árvores, a luz e até o silêncio da Beira perpassam muitos dos seus versos.
Pequena, com pouco mais de 200 habitantes, Póvoa de Atalaia carrega o peso doce de ser berço de um dos poetas mais universais da língua portuguesa. E a aldeia presta-lhe justa homenagem na forma da Casa da Poesia, um espaço museológico e cultural dedicado à sua vida e obra, a funcionar na antiga escola primária onde o poeta deu os primeiros passos nas letras – literalmente.
Na modorra de um início de tarde em que a chuva tinha feito uma pausa bem-vinda, vagueámos em volta da casa enquanto esperávamos pela hora de abertura. O edifício foi restaurado com respeito pela traça original e tem um pequeno parque infantil à frente; só a placa no muro identifica a sua finalidade. Uma das fachadas está totalmente ocupada por um mural alusivo a Eugénio de Andrade e à sua obra, concebido pela artista plástica polaca NeSpoon. Nas traseiras, alguns poemas traduzidos em inglês foram colocados nos vidros. A poesia casa bem com o perfume das cerejeiras em flor que dão sombra ao lugar.
Quem nos guiou na visita à casa foi a Marta Barroso Ramos, dinamizadora cultural (além de cantora e cineasta) e profunda conhecedora da obra e vida de Eugénio de Andrade. O espaço inclui uma sala com documentos, fotografias, edições várias, cartas, manuscritos e objectos pessoais. Mas mais do que um lugar para “ver coisas”, a Casa da Poesia é um sítio para sentir a presença do poeta. As palavras dele vivem ali, nas paredes ondulantes forradas de cortiça, nas frases e nos poemas que surgem aqui e ali, em jeito de bálsamo ou inspiração.
Ver o exterior da casa que o poeta habitou na infância foi pretexto para passear um pouco pela aldeia – que é simples mas está bem cuidada. Não é fácil dar com a casinha minúscula, onde a pedra já se mistura com o cimento mas o lintel e os pilares se mantêm em granito. Unificada com as casas idênticas que a ladeiam, consta que pertence agora a uma família estrangeira e é usada para alojamento local. Uma placa ao lado da porta confirma que ali “viveu Eugénio de Andrade quando menino”. Quando ainda não se sabia que ele iria ser um dos nossos maiores poetas.