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Delito de Opinião

O voto mais branco

Romances e política X - ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ (2004)

Pedro Correia, 28.01.22

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E se a esmagadora maioria dos cidadãos numa democracia liberal decidisse não optar por nenhuma força partidária no dia indicado para a recolha dos votos? José Saramago parte desta questão para formular uma crítica contundente aos mecanismos do sistema representativo e à progressiva distância entre governantes e governados nas sociedades contemporâneas. Uma crítica que adquire força acrescida pelo facto de o escritor situar o enredo num país que nunca menciona e num momento histórico impreciso. Ensaio Sobre a Lucidez funciona sobretudo enquanto metáfora política.

O romance inicia-se num dia eleitoral fustigado por chuva intensa. Os comentadores de turno antecipam níveis de abstenção jamais registados. Afinal, quase em cima do prazo anunciado para o fecho das urnas, ocorre uma afluência maciça às assembleias de voto. Horas mais tarde, revela-se a surpresa: três quartos dos eleitores na capital dessa nação simbólica devolveram os boletins em branco. «Os votos válidos não chegavam a vinte e cinco por cento, distribuídos pelo partido da direita, treze por cento, pelo partido do meio, nove por cento, e pelo partido da esquerda, dois e meio por cento.»

Uma semana depois, novo escrutínio: o número de votos em branco aumenta para 83%. O Governo desencadeia todos os mecanismos - incluindo os policiais - para indagar o que ocorrera: é decretado o estado de sítio, as forças armadas patrulham as ruas, anuncia-se a transferência dos ministérios para uma nova capital, «a cidade insurgente ficará entregue a si mesma».

Trata-se afinal de um gesto não premeditado de rebelião cívica que de algum modo supera a generalizada perda de visão dos cidadãos comuns descrita por Saramago numa obra anterior, Ensaio Sobre a Cegueira (1995), outra distopia que coloca o acento tónico nas patologias dos sistemas políticos contemporâneos. Da insólita cegueira branca ao voto branco: o edifício da democracia é sempre muito mais vulnerável do que parece.

Para além das aparências

Romances e política IX - OS MENINOS DE OURO (1983)

Pedro Correia, 27.01.22

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Os mecanismos interiores da ambição política e os seus reflexos na esfera privada constituem elementos em evidência nesta singular incursão de Agustina Bessa-Luís pela biografia ficcionada de um líder partidário, José Matildes, que cruza os anos finais do Estado Novo para desembocar no pós-25 de Abril como uma das personalidades de maior sucesso. «O país estava preparado para o receber, o seu fundo messiânico encontrava um terreno propício porque, entretanto, o código da revolução se tinha revelado deficiente na sua simbolização afectiva.»

Na sua peculiar prosa romanesca, sempre adornada de aforismos, a autora d'A Sibila parece menos interessada em dissecar ideologias do que em analisar perfis psicológicos enquadrados numa atmosfera social. Os Meninos de Ouro desta obra, distinguida em 1984 com o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, são Matildes e o seu mentor intelectual, «um escritor chamado Francisco Farinha, ou Farina»: ambos vivem breves dias de apogeu, cada qual à sua escala, antes do fim prematuro a que parecem estar condenados pela força imparável do destino. Personagens inspiradas em Francisco Sá Carneiro e Ruben A. Leitão, como Agustina nunca escondeu, sujeitando este romance a um especial escrutínio crítico, já que o retrato do protagonista - um homem «capaz de viver dramaticamente» e fadado para «intervenções altivas e verrinosas» - está longe de ser lisonjeiro. Mesmo «convertido à imortalidade» depois de morto.

A habilidade da escritora nesta controversa narrativa é pôr em contraste a rota de êxito público de José Matildes com o malogro dos seus vínculos familiares. Uma dupla dimensão, percorrida em linhas paralelas, que a terá fascinado: «Se as palavras podem curar as loucuras de um povo, só a violência pode vencer a loucura de um príncipe.»

No fundo, acaba por preencher uma lacuna: esquecemo-nos demasiadas vezes de que um político é um ser tão frágil como qualquer de nós.

A semente da tirania

Romances e política VIII - CONVERSA NA CATEDRAL (1969)

Pedro Correia, 26.01.22

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A corrupção política no Peru, no Governo autoritário do general Manuel Odría, entre 1948 e 1956, é o pano de fundo do terceiro e mais célebre romance de Mario Vargas Llosa, funcionando como exemplar autópsia dos regimes que ao longo do século XX condenaram a América do Sul ao grau extremo da penúria.

O escritor hispano-peruano centra a narrativa num diálogo à mesa do bar A Catedral, em Lima, entre o jornalista Santiago Zavala - ou Zavalita, autor de editoriais que redigia «de nariz tapado» - e o antigo motorista do seu pai, Fermin Zavala, próspero empresário apoiante da ditadura entretanto derrubada. A conversa decorre na década de 60, quando Zavalita e o velho Ambrosio trocam inesperadas confidências sobre aquele decrépito consulado e o confrangedor encarceramento físico e moral a que Odría condenou os peruanos. Anos de perseguições políticas, de censura à imprensa, de impunidade total dos esbirros do tirano - começando pelo seu braço-direito, o repulsivo Cayo Bermúdez, alcunhado de Cayo Mierda, especializado em torturar opositores. Com Ambrosio a conduzir-lhe a viatura oficial enquanto os jovens como Zavalita se viam remetidos a uma espécie de exílio interior.

«Toda a vida a fazer coisas sem acreditar, toda a vida a fingir», desabafa o editorialista ao seu interlocutor, noite adiante, na Catedral. Ou, na síntese de um colega, «bebedeiras sem convicção, coitos sem convicção, jornalismo sem convicção».

Recorrendo à técnica da diluição cronológica, Vargas Llosa povoa esta magnífica obra de múltiplas personagens e narrativas secundárias sem abandonar a denúncia dos governos que suprimem a liberdade e condenam sucessivas gerações a um futuro sem esperança. Sabendo de antemão que a semente da tirania, naqueles anos negros, estava muito longe de permanecer circunscrita ao seu Peru natal e ao subcontinente a que por vezes só por ironia continuamos a chamar Novo Mundo.

Na sombra e no silêncio

Romances e política VII - UM DIA NA VIDA DE IVAN DENISSOVITCH (1963)

Pedro Correia, 25.01.22

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Este foi o romance que alertou um mundo distraído para os campos de extermínio da União Soviética. No chamado "paraíso socialista" escondia-se um imenso arquipélago de indigência e desolação: sob o jugo de Estaline, um vulgar delito de opinião era considerado crime de Estado, conduzindo o prevaricador a décadas de detenção em redutos transidos de frio siberiano que funcionavam como antecâmara da morte.

Aleksandr Soljenítsine sabia disto por experiência própria. Tal como Ivan, também se viu despojado da cidadania. Oito anos encarcerado, mais três anos sujeito a exílio interno: valeu-lhe o desaparecimento do tirano, em 1953, e o breve período de degelo iniciado em 1956 pelo sucessor de Estaline, Nikita Krutchov.

Um Dia na Vida de Ivan Denissovitch é o relato de 24 horas da rotina de um destes prisioneiros políticos, vítimas de um sistema que prometia libertar as grilhetas aos seres humanos mas logo os sujeitou a novas escravaturas, desapossando-os da própria identidade. Não merecem sequer o tratamento de «camaradas».

Ivan é o prisioneiro S-854. Nada tem de seu, tirando uma colher para comer a parca ração diária. Antigo operário mobilizado para a frente de guerra, está preso por um crime que não cometeu: capturado pelos alemães em 1943, evadiu-se e regressou às fileiras - atitude considerada suspeita que lhe valeu a fúria repressora do Estado socialista. Sobrevive aos 40 anos graças à argúcia iluminada pelo instinto de sobrevivência, que o coloca pouco acima da mera condição animal. Eis um imperativo: «Nunca se deve dar nas vistas. O importante é nunca se ser notado por um guarda do campo, só em grupo.»

Sente frio, passa fome, nada sabe da família. Confinado àquele cenário onde a neve eterna se estende a perder de vista, sabe que cada dia é insuportavelmente igual ao dia anterior e ao dia que vai seguir-se. Nem imagina, mas à sua escala é um herói. Por enfrentar na sombra e no silêncio os mecanismos da repressão.

Mudar ou não mudar

Romance e politica VI - O LEOPARDO (1958)

Pedro Correia, 24.01.22

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Na Sicília da segunda metade do século XIX, durante a campanha militar e política que conduziu à formação do Estado italiano, ruía o velho mundo ancorado na aristocracia rural. Outro emergia, movido pela burguesia urbana e pelos sabres de Garibaldi, que prometiam iluminar o novo país com as luzes do liberalismo já tardio.

Gera-se naquela rude paisagem mantida inalterada desde tempos imemoriais um confronto larvar entre os antigos leopardos, personificados em D. Fabrizio Corbera, príncipe de Salina, e os jovens chacais sedentos de poder que erguiam a bandeira tricolor do Rissorgimento como símbolo de mudança, prontos a varrer os atavismos. De um desses astutos chacais, o seu sobrinho Tancredi (que chegará a deputado e embaixador em Lisboa), o idoso príncipe aprenderá uma preciosa lição: há que mudar aparentemente tudo «para que tudo permaneça como está».

Eis a própria essência de um espírito conservador, contrariando o determinismo histórico. Sucedeu à Itália em geral, confirmando o acerto de Tancredi à luz dos princípios de D. Fabrizio: ceder alguma coisa é o preço necessário para evitar cedências máximas. Naquele contexto, a monarquia unificada sob o estandarte dos Saboia impedia um regime republicano. Como, oito décadas depois, o derrube da monarquia que se vergara a Mussolini e a implantação da república com matriz democrata-cristã deteve o avanço do comunismo. As mudanças à superfície, por mais efervescentes que pareçam, não iludem a característica imutável da natureza humana: transitórias e precárias serão sempre as instituições que a servem.

Incontáveis livros enaltecem as transformações sociais. O Leopardo fala-nos com indisfarçável melancolia do que permanece imune a todas as mudanças. Obra póstuma de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, é um texto muito citado, mas inimitável: saga familiar sem se esgotar no tema da família, romance 'histórico" que descrê da História.

Areia na engrenagem

Romances e política V - 1984 (1949)

Pedro Correia, 23.01.22

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Talvez o mais citado romance político de todos os tempos, mantém todo o seu poder sugestivo como denúncia dos sistemas concentracionários que transformam cada indivíduo num parafuso da engrenagem do Estado absoluto. George Orwell, jornalista e militante da esquerda libertária britânica, legou-nos este livro-testamento, publicado escassos meses antes da sua morte prematura, quando a Guerra Fria já se desenhava no horizonte.

1984 - com enredo situado num futuro não muito distante, como o título à época indiciava - é um vigoroso libelo contra o totalitarismo que suprime toda a afirmação da personalidade individual, colocando-a ao serviço do partido único, liderado pelo omnipresente e omnisciente Grande Irmão. Que não se limita a condicionar gestos e palavras: também controla os pensamentos.

A tecnologia mais sofisticada contribui para consolidar o despotismo: a teletela, instalada em cada domicílio, permite aos títeres da tirania devassar a privacidade dos cidadãos. O raciocínio cartesiano é estilhaçado nos dédalos do «duplipensamento», que funde conceitos antagónicos nas cartilhas da propaganda. E há um idioma dominante, a «novilíngua», que deturpa deliberadamente o significado dos vocábulos, levando multidões a urrar palavras de ordem ao arrepio de toda a lógica: «Guerra é paz! Liberdade é escravidão! Ignorância é força!»

Winston Smith, personagem central do romance, trabalha no departamento de arquivos do Ministério da Verdade, que se ocupa a difundir mentiras - exemplo supremo de novilíngua e duplipensamento. Tem uma existência igual à de tantos outros homens desprovidos de consciência individual até ao dia em que regista no seu diário secreto esta evidência subversiva: «A liberdade é a liberdade de dizer que dois e dois são quatro. Uma vez que se reconheça isto, tudo o mais virá por acréscimo.»

Não voltará a ser o mesmo: está instalada a dúvida metódica que pode constituir um grão de areia na mais poderosa engrenagem universal.

O bacilo totalitário

Romances e política IV - A PESTE (1947)

Pedro Correia, 22.01.22

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Nenhuma sociedade está imune à praga totalitária. Esta é a principal lição a extrair de um dos melhores ensaios sobre ética política em forma de romance jamais escritos. Publicada no rescaldo imediato da II Guerra Mundial, A Peste, dividida em cinco capítulos à semelhança das tragédias clássicas, é uma poderosa alegoria da França ocupada pela tropa nazi - cenário aqui transposto para uma cidade da Argélia natal de Albert Camus, subitamente infestada de ratos surgidos das suas entranhas putrefactas. Os animais, portadores da morte em forma de peste, fazem retroceder os seres humanos aos abismos medievais. Os bairros urbanos são postos de quarentena. Orão, em solo argelino ainda sob administração francesa, tal como Paris escassos anos antes: os ratos andavam fardados e usavam suástica.

O cenário é aterrador. «Como imaginar, por exemplo, uma cidade sem pombas, sem árvores e sem jardins, onde não se sente o bater de asas nem o sussurro de folhas, uma cidade neutra, para dizer tudo?» Onde o medo impera e o futuro se torna uma palavra desprovida de sentido.

No meio do drama, muitos revelam a pior face: surgem os cobardes, os que se aproveitam da desgraça alheia para fazer dinheiro, os que se deixam vergar ao dedo do destino. Mas há também os que recusam capitular, os que se mostram solidários sem reservas, os que dão combate sem tréguas ao bacilo portador do mal absoluto. Heróis ou santos? Não, apenas homens em toda a dignidade que esta palavra contém. Em revolta aberta contra as injustiças, tenham as insígnias que tiverem, num mundo alheio à misericórdia divina. Como Camus põe na boca do médico Rieux - personagem fulcral na resistência ao letal invasor - em diálogo com o perplexo padre Paneloux, que aludira a um eventual castigo de Deus como forma de punição dos pecados: «Hei-de recusar até à morte esta criação em que as crianças são torturadas.» 

Sem vacilações nem ilusões: «O bacilo não morre nem desaparece nunca.» Permanece oculto no meio de nós.

O sal da terra

Romances e política III: AS VINHAS DA IRA (1939)

Pedro Correia, 21.01.22

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Poucos livros como este ilustram de forma tão credível e lapidar a pobreza extrema - assunto que costuma estar arredado da grande literatura. John Steinbeck não se limita a descrever paisagens agrestes povoadas de gente disposta a recomeçar do zero na América rural dos anos 30, em jeito de reportagem impressiva e pungente: coloca estes pobres concretos no patamar das figuras de recorte universal.

Trabalhadores agrícolas há incontáveis gerações, são eles o «sal da terra», para usar uma expressão bíblica. E tornam-se protagonistas políticos a partir do momento em que adquirem consciência da sua força potencial nas circunstâncias mais adversas, quando um homem valia menos do que um cavalo no mercado laboral. Ao combate pela sobrevivência sucede-se a luta por um salário digno, disputado ao cêntimo pela mão-de-obra exangue num cenário em que a oferta de emprego excede largamente a procura.

Como aprende Tom Joad, romeiro no asfalto do Oklahoma à Califórnia naqueles dias áridos da Grande Depressão, ao descobrir-se como sucessor dos hebreus antigos num novo Êxodo em busca de um lugar ao sol que lhe garanta o sustento básico: «Dois valem mais do que um, porque ambos terão maior recompensa pelo seu trabalho. E se um cair, o outro erguerá o companheiro. Mas ai do que estiver só, pois quando cair não terá ninguém junto de si disposto a levantá-lo.»

São poucos os livros que, como este, conseguem transmitir-nos de forma fidedigna a sensação física de fome que atinge todos os membros da família Joad nesta odisseia quilométrica. À mercê da feroz inclemência da natureza e vítimas da devastadora prepotência humana. Mas sem nunca desistirem de sonhar. 

Romance justamente distinguido com o Pulitzer, As Vinhas da Ira é um fabuloso mosaico de uma América em transição. A América suja do pó da estrada, que caiu na berma mas ousa erguer-se em resposta a uma voz de comando que vem do mais fundo de si própria.

Os fins e os meios

Romances e política II: A CONDIÇÃO HUMANA (1933)

Pedro Correia, 20.01.22

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Admirável cronista de algumas das revoluções do século XX, arquétipo do intelectual que nunca deixou de ser um homem envolvido nas grandes causas do seu tempo, André Malraux testemunhou a eclosão da guerrilha urbana numa China ainda sujeita às feitorias coloniais. Destas experiências surgiram duas das suas mais emblemáticas obras: Os ConquistadoresA Condição Humana, galardoada com o Prémio Goncourt.

Este romance, no essencial, é o vibrante relato de uma insurreição falhada - decretada em 1927 pelo Partido Comunista Chinês em Xangai e reprimida pelas forças nacionalistas do Kuomintang. Se saísse da pena de outro autor, poderia confinar-se a uma narrativa de aventuras. Mas aqui o que mais sobressai é o dilema de Tchen, jovem militante comunista. Vai cometer um homicídio, liquidando um adversário político adormecido num hotel da cidade, e sabe de antemão que não regressará moralmente ileso deste crime. Antes de erguer a faca, fere-se propositadamente, numa espécie de rito iniciático: como se, ao derramar o seu próprio sangue, tornasse menos reprovável o homicídio.

Uma linha muito ténue distingue a civilização da barbárie e o homem das espécies irracionais, que matam apenas por instinto de sobrevivência ou imperiosa necessidade de defesa. Tchen mata em cumprimento de ordens superiores, agindo de acordo com a suprema razão do partido - análoga à «razão de Estado» que tem levado tantos países a entrar em guerras. Isto sobrepõe-se à voz da consciência que nos induz em sentido oposto, mandando separar o homem da fera assassina.

É a eterna questão - jamais resolvida, como nos ensinam os compêndios de História - entre os fins e os meios. Importa «dar um sentido imediato ao indivíduo sem esperança e multiplicar os atentados, não por uma organização, mas por uma ideia: fazer renascer os mártires», considera Tchen. O revolucionário torna-se terrorista, cruzou uma decisiva fronteira moral na condição humana. 

Da inutilidade dos esforços

Romances e política I: OS MAIAS (1888)

Pedro Correia, 19.01.22

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Talvez o melhor romance português de todos os tempos, Os Maias é um poderoso libelo contra o precário Portugal do século XIX, que amanheceu absolutista, tendo no trono uma rainha louca, e anoiteceu pré-republicano, sufocado pelo espectro da bancarrota. Das Invasões Francesas na etapa inicial ao Ultimato britânico ao cair da cortina, sofremos de tudo: ocupação estrangeira, pronunciamentos militares, a traumática independência do Brasil, uma crise dinástica, uma sangrenta guerra civil. O país novo prometido pela revolução liberal de 1820 desaguara no pântano do rotativismo à sombra da Carta Constitucional com o seu cortejo de cabecilhas incompetentes, eleitos num simulacro de democracia.

Este enquadramento político propiciava elites partidárias, financeiras, culturais e jornalísticas corrompidas pelo ar do tempo. Em evidente contraste com a ancestral ousadia dos portugueses que conquistaram a independência e deram novos mundos ao mundo. Virtudes e defeitos plasmados em três gerações da família Maia: o respeitável avô Afonso, o débil filho Pedro e o ocioso neto Carlos nascido já com a monarquia constitucional consolidada, espelho de uma geração marcada pelo veneno do diletantismo que contaminava a atmosfera do reino e proclamava a inutilidade de todos os esforços pela regeneração social nesta «choldra ignóbil».

Carlos da Maia, médico que não exerce, é inseparável companheiro de João da Ega, escritor que jamais publica: deambulam ambos por essa Lisboa onde o destino do País se jogava «entre a Arcada [Terreiro do Paço] e São Bento». Nunca a capital portuguesa foi descrita de forma tão modelar na ficção literária como nesta obra-prima de Eça de Queiroz, cultor da arte realista, capaz de examinar a sociedade à lupa e de a dissecar com bisturi fazendo entrar em cena um incomparável desfile de personagens.

Figuras representativas desse tempo. Que é também, de algum modo, o nosso tempo. Há coisas que nunca mudam por cá.

Dez romances sobre política

Pedro Correia, 18.01.22

Escritos em três séculos, por autores de várias nacionalidades e com sensibilidades muito diferentes, têm um traço comum: são romances que se debruçam sobre o fenómeno político nas suas mais diversas facetas. Dando de algum modo razão a Eduardo Lourenço: «É possível, é mesmo natural, conceber todo o fenómeno literário como a tradução simbólica de um desajustamento dos homens às realidades que os cercam.»

Dez textos que publiquei na revista Ler e reproduzirei no DELITO nos dias que vão seguir-se. A pretexto da eleição do próximo elenco parlamentar em Portugal.