O voto mais branco
Romances e política X - ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ (2004)
E se a esmagadora maioria dos cidadãos numa democracia liberal decidisse não optar por nenhuma força partidária no dia indicado para a recolha dos votos? José Saramago parte desta questão para formular uma crítica contundente aos mecanismos do sistema representativo e à progressiva distância entre governantes e governados nas sociedades contemporâneas. Uma crítica que adquire força acrescida pelo facto de o escritor situar o enredo num país que nunca menciona e num momento histórico impreciso. Ensaio Sobre a Lucidez funciona sobretudo enquanto metáfora política.
O romance inicia-se num dia eleitoral fustigado por chuva intensa. Os comentadores de turno antecipam níveis de abstenção jamais registados. Afinal, quase em cima do prazo anunciado para o fecho das urnas, ocorre uma afluência maciça às assembleias de voto. Horas mais tarde, revela-se a surpresa: três quartos dos eleitores na capital dessa nação simbólica devolveram os boletins em branco. «Os votos válidos não chegavam a vinte e cinco por cento, distribuídos pelo partido da direita, treze por cento, pelo partido do meio, nove por cento, e pelo partido da esquerda, dois e meio por cento.»
Uma semana depois, novo escrutínio: o número de votos em branco aumenta para 83%. O Governo desencadeia todos os mecanismos - incluindo os policiais - para indagar o que ocorrera: é decretado o estado de sítio, as forças armadas patrulham as ruas, anuncia-se a transferência dos ministérios para uma nova capital, «a cidade insurgente ficará entregue a si mesma».
Trata-se afinal de um gesto não premeditado de rebelião cívica que de algum modo supera a generalizada perda de visão dos cidadãos comuns descrita por Saramago numa obra anterior, Ensaio Sobre a Cegueira (1995), outra distopia que coloca o acento tónico nas patologias dos sistemas políticos contemporâneos. Da insólita cegueira branca ao voto branco: o edifício da democracia é sempre muito mais vulnerável do que parece.