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Delito de Opinião

Fictiongram, final

Patrícia Reis, 03.08.16

Palmadas nas costas, uma ida à casa de banho, o ar derrotado do escritor faz com que pareça mais velho, muitíssimo mais velho. O que fazer? Deambula na sala até chegar ao seu poiso final, a poltrona velha e cómoda como um casaco (estou a repetir-me? Devo estar).

Você desculpe. Deixei de fumar há uns anos.

Não faz mal, o que me importa é saber se não deitou fora a ideia para terminar o romance. Deitou?

 

Deitar fora a ideia que tinha para terminar o romance, o escritor não deitou, porém existem questões de ordem logística que são importantes e essas não sabe como resolver. Atenção, tem a certeza de que terá de falar com o advogado, não só por causa das cartas, mas para resolver a hipótese levantada de Martim querer ficar com a herança que pertence a Carmen.

Sabemos que existem duas heranças. Qual é o esquema do Martim?

E isso importa?

Então? Se não resolver isto, não sabemos como chegamos ao fim... Só se... só se matar a Carmen.

 

Matar a Carmen não é uma solução para o Paulo e o escritor já o suspeitava, na verdade sabia-o, mas gostou de o ver ficar direito, empertigado, a cara de escândalo, a missão falhada

Ó por favor, deixe-me morrer, por favor, no lugar de todos.

O escritor apreciou o pânico da personagem Paulo, psicólogo ficcional, futuro amante de Carmen. Espera, amante? Eis outra ideia. Entusiasmado, levanta-se de novo, abandonando a poltrona mais velha do planeta (e cara, design italiano, importada, está-se a ver), e gesticula, gesticula como um maestro com a sua batuta (sim, aquele pauzinho chama-se batuta).

 

Meu caro Paulo, não imagina como a sua visita me ajudou e muito. Muito. Se quiser fazer o obséquio de ir embora, já me posso sentar escrever.

Eu não vou lado nenhum. O senhor tem de me dizer como é que as coisas se vão desenrolar. Não consigo ir embora sem saber. Por favor.

Bom, se insiste... não sei se será do seu agrado, mas pelo menos ninguém morre.

 

O facto de ninguém morrer não estava no programa. Maria Luísa podia ir desta para melhor, Laura ficava com Carlos por fim, Martim sabia da história e reconciliava-se com a ideia de família. Era um caminho. Matar a mãe de Carmen e de Martim era uma excelente solução, era quase superlativo. E Paulo podia ficar com Carmen? Bom, ela não iria para um convento, disso temos nós a certeza, para suspirar já lhe basta a vida, não precisa de intervenção divina.

 

Paulo tentou convencer o escritor.

Faça isto assim, vá lá. Eu até posso ficar sem a Carmen.

E ela volta para o Jaime.

De acordo.

Você é parvo ou quê? Então não gosta da mulher? Não o entendo.

 

A troca de palavras vai longa e nada se resolve, portanto a intervenção divina tem de provocar aqui uma agitação, pequeno tsunami e, a propósito, alguém toca a porta e o escritor vocifera

A esta hora? Porra.

Não olha pelo tal buraquinho de vidro espetado no meio da porta da entrada. Abre a porta num repente e Carmen mostra-se no seu esplendor.

 

Isto está a ficar um pouco doido demais, medita o escritor, mas não se faz rogado, deixa-a entrar e ali está ela, suave, num tailleur belíssimo, nova aquisição, uns saltos altos pretos de verniz. Uma bela mulher. Chata como o raio que a parta, mas bela. O escritor, por fim, achou-se capaz de compreender Paulo. Carmen era mais que uma personagem plana, oca, neurótica, afinal podia ser todo um universo. Por isso, disse

Caramba, nunca pensei que fosse assim.

Então como é que queria que eu fosse? Foi o senhor quem me escreveu, não foi?

Mas não a escrevi assim.

 

Sentaram-se os três no sofá. Carmen pediu para ele não matar a mãe. Paulo pegou-lhe na mão, o escritor comoveu-se, ouviu as badaladas do relógio da vizinha - Dona esperança, uma jóia de senhora -, era meia noite, tinha uma dor de cabeça monumental e abriu os olhos. Decidiu que afinal a história que queria escrever não era aquela. Pouco importava um ano e tal de trabalho. Fez contral + alt + delete e foram-se todos, os tais sete: Carmen, Paulo, Jaime, Carlos, Maria Luísa, Martim, Carlota e ainda o oitavo, o nosso escritor. Só porque fica bem. O leitor pode fechar a boca de espanto, foi um prazer, acredite. Bem haja por ter chegado aqui. Agora começa o mês de Agosto, vá comprar um livro.

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 18.07.16

Paulo conforta-o dizendo que as fragilidades são as impressões digitais da sua humanidade, ou do que resta dela. O escritor bebe mais um pouco e pergunta

Gosta da Carmen?

Gosto.

Quer ficar com ela?

Isso nunca vai acontecer.

 

Se Paulo fica com a Carmen, ou nem por isso, o escritor não sabe, porém, de forma súbita e atabalhoada levanta-se, parece uma diva e vislumbra-se o seu ser feminino em todo o esplendor, e grita para a sua personagem

Já sei, já sei como resolver tudo. Parece complicado mas não é, venha para a sala preciso de um cigarro. Tem cigarros? Eu deixei de fumar.

Paulo dá-lhe um cigarro de um maço que traz no bolso de dentro do casaco. O escritor pensa

Ele fumava, na história?

 

O escritor inaugura o fumo do cigarro com prazer, mas o corpo rejeita tudo aquilo, alarme, alertas, o corpo a cuspir e um ataque de tosse sem fim. A figura que faz é triste, quase ridícula, o escritor tosse, engasga-se um pouco mais, sente as lágrimas a saltarem dos olhos e, como uma criança em convulsões, há ranho que lhe sai pelo nariz. Paulo faz um esgar. É nojo, senhores, nojo do seu criador, a criatura não faz destas coisas.

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 13.07.16

 

Assim, Paulo e o escritor discutiram o enredo. Dissecaram tudo e lembravam-se de pormenores que eu já nem sabia possíveis, verificaram questões de verosimilhança (por exemplo? Bom, Jaime não podia ter a idade que se dizia que tinha, caso contrário como é que estava no liceu e o irmão, pouco mais velho, na faculdade? Coisas destas devem existir aos pontapés, a grande Agustina ria-se destas coisas, o que é sempre um bom conselho. O riso trata tudo).

 

Bom, estou a ver que não consigo convencê-lo de nada, não é? Eu gostava de morrer, não só para poupar o Jaime, mas sobretudo por estar olimpicamente farto de servir de tampão – não é uma boa palavra -, de rolha, de qualquer coisa, que impeça a loucura da minha mãe e o entendimento de Jaime de que, no fundo, é um deficiente emocional maior do que a Carmen e que até o emprego dele não existe como o afirma. Sabia disto? Tenha paciência, o senhor é apenas o escritor, não sabe nada.

 

Desta feita, em defesa do nosso escritor, é preciso dizer que este não teve tempo de terminar fosse o que fosse, portanto julgá-lo com pormenores do futuro é injusto. As personagens sabem sempre, ou muitas vezes, o que as aguarda, os escritores precisam de mais tempo para ficarem elucidados e, acontece, podem enganar-se redondamente. Afinal, o escritor não suspeitava que Paulo estava deprimido. Não era preciso ser psicólogo para chegar tão longe.

 

Paulo recusou a ideia taxativamente, até se sentiu incomodado, ele deprimido? Um profissional de saúde mental sabe quando está deprimido. Paulo estava para lá disso.

Deprimido o quê? Deprimida está a Laura, a Carmen, a Maria Luísa e ainda o Carlos, não chega num romance esta gente toda? São sete personagens, a oitava ainda não chegou, não me diga que é da polícia judiciária e vem saber quem matou quem?, e quatro estão deprimidas. Parece-me o suficiente e mais lhe digo, não entendo como é que o senhor, um escritor com tanto pergaminho (ainda se diz?), cai na esparrela de começar um romance com uma mulher neurótica, arranja uma embrulhada e não sabe como sair dela. Não pensou no final previamente? Claro que não. Arrogante.

 

O escritor anuiu, e depois, um momento de constrangimento que nunca acontece nos filmes, a sua barriga emitiu um ronco perfeitamente audível. Precisa de comer, não só por causa do ronco, mas também por ser urgente ensopar o whisky com um sólido qualquer. Paulo, ajuizado e sabedor, levantou-se e caminhou na direcção da cozinha como se a casa fosse sua

Deixe-se estar, eu faço o jantar.

 

Jantaram, não sei se se lembram do ronco, da fome, da necessidade de ensopar o whisky, mas cá estou eu para vos pôr no carril dos acontecimentos. Jantaram, dizia eu, e muito bem, porque o Paulo, além de bom ouvinte e de deprimido, é bom cozinheiro. Nunca se mencionou o facto anteriormente por estarmos indecisos, agora não faz mal, é necessário que cozinhe. E bem. O escritor louva-lhe a mão para o tempero. Abrem uma segunda garrafa de vinho tinto e Paulo ameaça

Vamos acabar com isto? Vamos resolver a história?

 

O escritor, para resolver a história, como Paulo o instigou, tem de mastigar muito e tem de rever coisas no seu passado sobre as quais ainda não falou em terapia. Sim, o escritor sabe que terá de voltar ao consultório, que remédio, é tão velho ali como o cacto que está num vaso pindérico na sala de espera. Não que o escritor alguma vez tenha posto o rabo no sofá de espera, não, sempre entrou direitinho para o consultório. Ele é uma pessoa importante, porventura o mais importante que o país produziu depois de... alguém.

 

O escritor revela então a Paulo as suas inseguranças. Está com os copos, estão os dois, portanto as palavras correm o risco de perder consoantes, mas eu vou tentar remediar a situação e fazer um resumo. As inseguranças do escritor são, por ordem aleatória

A vergonha de ser adoptado

Saber que não foi adoptado

Odiar a mãe tanto quanto a ama

Querer as cartas de volta

Ter medo do ridículo

Não ter uma porra de uma ideia sobre esta história que conta ou qualquer outra para um futuro mais risonho, uma história que dê frutos, sei lá, um ou dois prémios (com dinheiro, é evidente).

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 01.07.16

 

Tínhamos ficado onde? Não, tínhamos ficado na utilização indevida da negação para início de frases que não correspondem a uma pergunta concreta do interlocutor. Vocês estão a ver a ideia. O Paulo murmurou o tal

Não, quer dizer, sim...

e, depois, teve uma iluminação. Era melhor interessar-se pelo escritor, fazê-lo sentir-se importante.

Não me quer contar o problema das cartas?

As cartas? Como sabe das cartas?

Toda a gente sabe.

Toda a gente? Não, não.

Conte-me tudo.

 

E assim foi, o escritor meteu os fígados bons e maus contra o seu Jaime real para fora como alguém que vomita voluntariamente. Gostava de se ouvir falar, sabia que tinha um tom de barítono apropriado para intimidar, logo fazia uso da voz de forma apropriada, colocando-a como fazem os radialistas e alguns predadores. Contou como tinha sido convidado pela nobreza, uma certa nobreza, a passar uma temporada num chalé sofisticado na Suíça igualmente sofisticada. Explicou que escrevera as cartas ao Jaime por sentir compaixão. Foi a palavra que usou. Compaixão e Paulo aproveitou.

 

É o que espero de si...

podia dizer o Paulo, ainda tentou

... espero compaixão

mas o escritor estava lançado e servia-lhe bem essa ideia de que o Paulo não existia, portanto podia dizer o que fosse.

Nunca gostei de Jaime, sabe?

Nunca?

Nunca. Precisava de companhia. Era só isso, companhia. O amor é uma ilusão, todos o sabemos.

 

Foi um instante para que Paulo fizesse o paralelismo com a situação do Jaime ficcional e, a medo, perguntou quais eram as intenções do escritor. Ele sacrificava-se por todos os outros, os seis personagens do costume, Laura, Carlos, Maria Luísa, Jaime, Martim, Carlota (viram que agora comecei a enumeração ao contrário? Ele há truques). Estava o escritor a ouvir? Ele, Paulo, queria morrer.

 

Mas olhe que não me dá jeito nenhum matá-lo, Paulo, não a si. A sua personagem é aglutinadora, é o cimento bom que faz com que o caminho possa ser feito, em especial o caminho de Jaime e de Laura. Não, não o posso matar, agradeço a oferta, mas não pode ser. Confesso que ainda não sei como terminar isto, entende? Nós também temos momentos de fraqueza, sou um grande escritor mas estou muito pressionado e não consigo, não consigo, Paulo.

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Patrícia Reis, 24.06.16

As personagens, embora menos incómodas que a maioria dos mortais com os quais nos cruzamos durante uma vida inteira, também têm manias. O escritor percebeu que Paulo vinha em missão e, surpreendentemente, até por não ter nada de interessante para fazer, dispõe-se a ouvi-lo, porque não? É a sua personagem, um homem interessante, psicólogo, altruísta, tolerante, novo, bem posto. O raio da enumeração!

 

Paulo lá começa a tentar dizer ao que vem. O escritor interrompe-o com um gesto que podia ser classificado de teatral, acredita que ainda vai a tempo de lhe oferecer um whisky cujo a personagem recusa com um ligeiro aceno de cabeça, conseguem imaginar? Claro que conseguem, então é tão perto da banalidade, vá lá, façam um esforço. E Paulo começa.

Percebi que tenciona matar um de nós e venho tentar...

Mudar as minhas ideias sobre o assunto?

Se for possível?

 

Ora, possível tudo é, já se sabe, o que há é uma percepção limitado do que consideramos possível (frase atribuída ao Dalai Lama que vi na internet às três da manhã a curtir uma insónia), consequentemente será possível mudar as ideias do escritor. O Paulo sabe que será uma caminho árduo, pelo menos está convicto de que o escritor é teimoso que nem uma mula, caso contrário não teria inventado para ele, Paulo, uma vida tão... tão... qualquer coisa.

 

O escritor atira-se para a poltrona, maldiz o facto de ter deixado de fumar há uns anos – as maravilhas da acunpuntura, da hipnose, de medicamentos e, por fim, a ameaça de um cancro no pulmão que teve o condão de o afastar do tabaco de uma vez por todas – por saber que seria mais feliz se tivesse qualquer coisa onde chuchar. Hum? Pensa no que acabou de pensar para concluir que talvez esteja a ficar senil. Tem idade para isso.

 

Paulo quase que parece recolhido, como se fosse uma criança, no sofá imenso. Tem muito para dizer, tem ainda queixas e depois pedidos, mas é difícil, muito difícil, falar, ele foi construído para ser bom ouvinte, era a intenção do escritor, servia à história e, só por isso, sente-se impedido a dizer coisas inteligentes. Começa a frase como a maioria dos portugueses começa as frases:

Não, quer dizer, sim...

Não o quê, perguntam vocês? Não faço ideia, mais uma vez.

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Patrícia Reis, 13.06.16

Não gosta de beber sozinho. Gosta de morar sozinho, sobre isso não tem a menor dúvida, e nunca tivera relações longas por causa dessa ideia de estar apegado à sua casa, às suas coisas. No princípio das relações estava tudo bem, até sentia algum deleite em ver os amantes no seu sofá, na sua cama, à sua mesa. Quando a novidade passava, esgotava-se em tentativas estúpidas para manter a relação. Sempre a dizer aos seus botões, pode ser que seja desta, afinal não posso ser assim tão insuportável. Talvez não fosse, mas aqueles por quem se apaixonava passavam a ser tudo o que deriva de insuportável.

Uma vez tinha escrito um conto – há muito tempo – gozando com o fim das relações, era uma época infeliz, considerava-o agora, porque escrevia usando sempre essa coisa fatídica e cansativa da enumeração. Sim, enumerar tinha sido uma moda, havia quem a mantivesse mas esses estavam claramente fora de moda, o nosso escritor já não começava as suas histórias (com h, por favor, que com e também já não se usa) com: Da janela vi o autocarro, a mulher que atravessava a rua, o semáforo a mudar de cor e depois, numa sucessão alucinante, os rapazes de bicicleta, a porteira colocar o lixo, o taxista. Tudo era vago, idiota, banal, sem sentido. Não, ele já não escrevia assim. Agora era mais elaborado.

Falando em escrever, era essa a sua função, que diabo, estava a engonhar e empurrar com a barriga. Toma decisões, be a man, pensa e cria. Ah, o criador no seu ninho, de copo na mão, a ver se descobre como acabar o que começou. Pois. Então, tem sete personagens, embora esteja seguro que pelo mais uma terá de ser construída, mesmo que à pressa, é essencial. Um leitor disse-lhe um dia que se perdia nos livros que ele escrevia por terem demasiadas personagens. Ora, sete não são muitas, pois não? Pois.

Tem a Carmen, a parva e despeitada; a Carlota deslumbrada e interesseira; o Martim cobiçador e amoral; o Jaime ambicioso, embora preocupado; o irmão, Paulo, o atormentado e depois aqueles três, os mais velhos, Laura, a doida, Carlos, o corno, Maria Luísa, a bruxa. Quem quer morrer?, pergunta o escritor em voz alta olhando o ecrã do computador. Ninguém lhe responde.

As personagens só falam com ele em sonhos, pelos menos foi o que afiançou a uma jornalista, por acaso esperta, que o entrevistou há pouco tempo. Nunca sonhou com qualquer personagem, é evidente, mas ficava bem dizer aquele tipo de coisas e o escritor já tinha algumas mitologias que, mais uma vez, precisava de cumprir para não desiludir. Um dia teve de inventar que em pequeno queria ser bombeiro – queria agora! – porque uma jornalista o convenceu que a fotografia ficava melhor. Enfim.

E andava nessa vida de escrever dez mil caracteres, perturbado com as sucessivas mensagens e telefonemas do ex namorado, o Jaime real, não o da ficção, quando alguém teve o enorme desplante de tocar à porta. Repreendeu mentalmente o sacana que o perturbava àquela hora e, arrastando os pés, quase em slow motion, que é mais literário, seguiu em direcção à porta, que neste caso também é o desconhecido. Só porque fica bem.

Do outro lado daquele buraquinho especado na porta de entrada, aquele buraquinho de vidro que permite ver para fora, que terá um nome, existirá uma palavra, mas não tem tempo para essas minudências, pois pelo buraquinho viu um rapaz alto, bem posto, rosto sério. Vestido com um casaco que lhe pareceu de bom corte. A cor era excelente: azul. Fixou-se na cara do indivíduo. E depois pensou: olha, é o Paulo.

Então o disparate começou. Não se queixem, por favor, não façam comentários jocosos, o que é queriam? O disparate também é uma imagem de marca e o escritor precisa de dar uma reviravolta à situação, é verão (tanto ão, Nossa Senhora, a aliteração ficou pior por ter reparado na dita cuja, mais valia não ter dado por ela), as notícias são poucas e mais uma série de coisas que me escuso a escrever. O que importa mesmo é que o escritor tem razão e, do outro lado da porta, está o Paulo. O ficcional Paulo.

Entra o piano, esqueçam os violinos

Sim?

É o escritor?

Sim?

Eu sou o Paulo. Precisamos de conversar. Posso entrar?

Entre, por favor.

O escritor afastou-se elegantemente. Era um homem de bem, já o dissemos, e bem educado também. Paulo, a personagem sem espessura digna desse nome, entrou no apartamento do escritor e surgiu uma música, um piano, só porque fica bem.

O escritor manteve-se alerta, entre o perplexo e o contentamento, afinal era pai daquele homem, tinha-o criado, de certa forma cuidava do seu futuro. O Paulo. O escritor tinha orgulho naquela personagem, ele que é irmão de Jaime, a cobiçar a Carmen, a aturar as taras da mãe, a aplacar a vidinha de doentes com egos mexidos, a única razão para se fazer terapia, certo? Certo. Pois, o dito cujo, a personagem (adoro que seja no feminino!), lá está a ver se consegue articular qualquer coisa inteligente que agora mesmo me escapa.

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 05.06.16

O escritor não era incauto. Tinha mantido relações, quase que íntimas, com um advogado com bom nome na praça e - talvez - fosse verdadeiramente inteligente fazer o gesto de lhe ligar. Podia resolver o problema das cartas, as ditas cartas que escrevera a Jaime e que ele ameaçava publicar. Não utilizara esta história, nem transfigurada, no novo romance, tinha-se mantido numa tónica emocional, forte, achava ele, bom, podia não ser tão forte, mas intencional, e remetia-se à vida de sete criaturas. Tudo começara com o Jaime de olhos cor de caramelo e depois a história tinha-lhe dito: agora vais para ali.

 

Ele foi. Primeiro para dentro da cabeça de uma mulher, a detestável Carmen, histérica e porventura frígida Carmen que foi abandonada pelo Jaime ficcional e depois catrapiscada (será?) pelo irmão, o tal Paulo que, basicamente, era a única personagem que lhe agradava sobremaneira. Lá está, era um homem de bem, o tal Paulo. Era uma maldade colocá-lo na mira de Carmen, mas fazer o quê? Quando o livro for adaptado para o cinema ou para uma mini série, logo será vendida para a América Latina, onde faz tanto sucesso, pois o plot funciona e isso é que importa.

 

O escritor sente-se a perder o pé, o que se calha a ser sincero, acontece-lhe mais vezes do que aquelas que admite. Obriga-se a uma pausa para recuperar prioridades, tem de se organizar. É crucial perceber as coisas que precisa de fazer. Tem de acabar ao livro, é um facto, não vai devolver o adiantamento chorudo que a editora lhe pré-pagou, terá de entregar o romance para a feira do livro, e terá de fazer o esforço sobre humano de se deslocar à dita feira. O escritor levanta-se e anda pelo escritório, as mãos atrás das costas, pondera: ligo ao advogado por causa das cartas? Trato do livro ou simplesmente atendo o idiota do Jaime, histérico qual Carmen? O melhor será beber um copo de qualquer coisa e, a caminho desse desejo alcoólico, viu-se em pequeno numa fotografia. Ele, a mãe e as tias. Naquela época estava convencido de que tinha sido adoptado. Ele, de cabelos loiros e olhos claros, ao lado da mãe mais morena do mundo. Tinha sido enganado e isso dera azo à construção da personagem aparvalhada de Martim. Não era um bom personagem.

 

O escritor tinha a sua certidão de nascimento, aliás já fora publicado na fotobiografia feita há dez anos, ou coisa que o valha. Ali está o nome do pai e da mãe e não há a menor dúvida que não veio da Casa Pia, veio de uma clínica privada que já não existe. Talvez o pai fosse loiro. Talvez. Não podia assegurar-se de tal facto já que só possuía duas fotografias do pai, ambas a preto e branco, num dia em Coimbra, com os amigos, um dia de caçada. O que podia assegurar é que o homem tinha pinta. Traidor e imbecil, mas com estilo.

 

Cristo, que disparate pegado, tenho lá a vidinha toda metida?, vai resmungando consigo enquanto bebe um whisky e revê mentalmente a história. Claro que o melhor será matar alguém. O seu pai está metaforicamente morto, resolvido. Ou talvez já esteja mesmo debaixo do chão na cidade maravilhosa. Como saber? Não quer saber, o escritor só se interessa por ele, pela história e, claro, pela recuperação das cartas.

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Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 29.05.16

Portanto, a coisa do Jaime, a sua sobranceria, a ideia de que era capaz de ser superior e viver longe de Carmen, isto dentro do seu putativo manuscrito (que chatice, não pode dizer manuscrito se escreve num computador, ou pode? decide que pode) era apenas uma alteração mínima da realidade. Ele, o escritor, fora o Jaime na vida real, ou seja, não sairá de casa, mas dissera aquelas coisas

Nem na cama és bom.

 

A ficção tem esse grande poder salvador. Tudo se transfigura, mas se há falta de assunto, ou não existe a mínima paciência para a pesquisa e para o romance histórico, pois escreve-se sobre aquilo que se vive. É preciso ter uma vida interessante. Convém. Nem todos os escritores têm. Por exemplo, ele, o escritor, sabia que a conversa sobre os filhos servia apenas para albardar o burro à vontade do dono. Ou seja, se Carmen tem a idade que tem (que idade tem?), pois terá aquela coisa do relógio biológico e tal. O escritor é ajuizado, sabe que quem compra livros são as mulheres, por isso os filhos e as dores.

 

O telemóvel tocou de novo. Jaime. Tão chato e comprido, o Jaime que fora fascinante durante dois anos – como se ele não soubesse de antemão que nada dura mais de vinte quatro mesinhos, sendo os últimos uma boa chatice – queria coisas. Achava que tinha direitos. Fazia ameaças. Claro que existia a questão das cartas, mas o escritor convencia-se de que ele nunca se atreveria a tanto. Não iria, decerto, publicar as cartas num livro com uma capa horrenda e com um prefácio de um pensador actual. O escritor despreza livros com prefácios, se o livro precisa de explicação, então é mau, nem tem discussão.

 

Escrevera cartas a Jaime quando aceitou o convite de uma figura da realeza europeia que o convidara para passar o princípio do Inverno na Suíça. Não é possível satisfazer a sua curiosidade, lamentamos, caro leitor, estamos obrigados a algum recato e até assinámos um contrato de confidencialidade, logo não nos é possível dizer onde e com quem, podemos adiantar apenas que estava lá todo o mundo. Todo o mundo. Menos o Jaime. Por mais incrível que fosse, o convite era pessoal e intransmissível e para uma pessoa apenas: o escritor que iria “prestigiar” a grupeta afectada junto à neve.

Pois. Jaime amuara.

Queria tanto ir, mas porque não posso eu ir? Tu já não me amas, que mau que és. Vai lá estar o E.J.? Não me digas que sim que eu morro, morro. Se tu vais sem mim, morro.

O escritor, feito estúpido, em vez de ter uma ideia brilhante para uma trilogia que fosse passível de ser traduzida, pelo menos, para trezentos países, decidira passar uma hora por dia, à lareira, a escrever a Jaime. As tais cartas.

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 20.05.16

Nessa noite carioca bebeu caipirinhas a mais e acabou numa festa de alguém que conhecia outro alguém. Conheceu pessoas, mantendo a sua pose de Estado, a sua figura meio desfeita, porque a sua imagem de marca era ser um homem triste. Era sempre assim que se referiam a ele, triste, tristonho, capaz de toda a tristeza do mundo. E ele acatava, mais uma vez cumpria. Nunca se imaginou obediente, no entanto a importância do público – quer dizer, da comunicação social – levava-o a ser assim. E a comunicação social, como é bom de ver, está em todo o lado, é uma espécie de Nosso Senhor.

 

Tinha tiques que importava manter, porque estavam à espera que fizessem parte dele, assim como um casaco velho que se mantém no armário por estar feito ao corpo. Então, o escritor era triste. E não ia a festivais literários, porque haveria de ir?, era crucial não ir a festivais literários, só de pensar que tinha de aturar a mesma corja ... Suspirou e voltou a olhar para o telemóvel mudo e quieto na secretaria de mogno, coisa de excelência, comprada num antiquário em Sintra quando ainda mantinha relações com um casal de editores que se gaba de ter um palacete para aqueles lados. Eram outros tempos. Ainda conseguia conversar com o casal extraordinário, ele alto e barbudo; ela magra e esguia, com umas mãos gigantes. Volta a olhar para o telemóvel que mostra 17 chamadas não atendidas, isso sim, um luxo. O ex namorado era persistente.

 

Chamava-se, et pour cause?, Jaime e tinha uns olhos verdes infinitos. Foi isso que lhe disse quando foram apresentados na editora, o escritor pronto a assinar em série, qual máquina, livros atrás de livros com dedicatórias idiotas tipo

Um abraço

Com amizade

Era sempre isso. O assistente editorial a querer saber se ele não se importava, se fazia o jeitinho, de assinar para a mãe. Ou era para a mulher? Não sabia dizer. O certo é que Jaime, o Jaime real, estava a fumar à janela, num gabinete cuja vista dava para o local onde o escritor assinava livros para jornalistas que nunca falariam da sua narrativa, do trabalho de linguagem, da espessura (talvez profundidade seja melhor) da história que publicava então.

 

Era uma história de amor, portanto era sobre a condição humana. Riu-se, para si, por saber que quem tinha dito esta verdade absoluta sobre a forma como a literatura é vista amiúde, neste e em outros países, era apenas uma mulherzinha que, de facto, privilegiava os sentimentos e as pessoas. Agora tinha deixado de escrever, ele tinha sido informado online, horas mortas pela noite na versão solteiro de novo; a escritora que bradava aos céus sobre a condição humana anunciou ao mundo que deixou de escrever. Por não aguentar o silêncio sobre a sua obra. A sua obra.

 

O escritor voltou a rir e pensou que a designação “obra” era risível. Quantos anos tinha a moça? Pouco importava, o olhar fixou-se no fumo que saía da boca de Jaime e foi o início que depois deixou de ser início e, claro, perdeu a graça. Pediu ao assistente editorial um copo de água e, mal a criatura diligente rumou em direcção à copa da editora, onde supostamente haveria água e outras coisas (podia até comentar como ele hoje, o grande escritor, estava bem disposto; podia dizer que já tinha o seu autógrafo para a mãe, ou seria para a mulher?), abriu a janela do pequeno espaço inócuo onde estava a assinar livros. Sorriu. Tristemente. E a coisa deu-se.

....

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 13.05.16

 

E quando chegou aqui o escritor parou. Era uma dor de costas, um bloqueio. Podia – devia – matar uma das personagens? Martim fica com a herança de Carmen? Carlota torna-se banal? Tantas perguntas e poucas respostas. E, nisto, o telemóvel tocou. O escritor gemeu baixinho, o nome do ex namorado do outro lado. Iria dizer que precisavam de conversar. Iria dizer um chorrilho de disparates que ele, o escritor, dispensava. Até a voz, a hipótese teórica de o ouvir, afligia. Pensou que era um chuto na tola, como tinha ouvido no café a um gaiato com pouco mais de dez anos. Chuto na tola.

 

Até podia falar com o ex namorado, porque não?, mas um escritor é aquele que não pactua com a norma. Tinha lido aquilo algures e não percebia como ele, publicado dentro e fora de portas, a escrever todos os dias dez mil palavras, obediente, sem falhas (tinha-o dito numa entrevista e não podia deixar de cumprir, sentia que seria desonesto se não cumprisse o sacrifício das dez mil palavras. Caramba!, dez mil palavras é muito, há pareceres jurídicos mais pequenos), precisava de citar terceiros. O escritor ficou a olhar para o nome do ex namorado a piscar no telemóvel e, subitamente, sem demoras pegou na caneta e rabiscou o futuro de Carmen.

 

Embirrava com Carmen, não seria o único, estava certo disso, mas tinha esta tendência para escrever sempre sobre uma mulher depressiva. Lembrava-lhe a mãe, era o que era, e o escritor já tinha passado muito tempo a fazer psicanálise para entender que nunca se livraria da mãe, o fantasma dela, a voz dela, as suas manias, o pacote inteiro a persegui-lo até depois da senhora ser cremada. Morte. O escritor sorri. Coloca o telemóvel no silêncio, afinal para quê dar a satisfação de atender à primeira?

 

Diziam que ele era caprichoso e com mau feitio, portanto importava seguir a tendência. O escritor não tinha mau feitio, nem era caprichoso, pelo menos no seu entender. Não se sabe o que diria o psicanalista, mas isso não interessa nada para o caso. Se fizesse uma auto-análise, exercício matinal que lhe afagava o ego, o escritor diria que é uma pessoa atormentada, com uma infância difícil, sempre dentro dos livros. Não foi à guerra, como outros, não tem idade; nunca foi jornalista, também os há, é apenas um escritor pacato. Talvez não seja gentil ou um poço de delicadeza, é verdade, porém é um homem de bem. O que importa verdadeiramente é ser isso: do bem. Sorriu beatificado.

 

Imagina o seu pai. Esse alguém que o abandonou com dois anos de idade para desfrutar de outras manhas – umas manhas brasileiras, para cumprir o cliché já que a vida também isso, ou talvez seja só mesmo isso – do outro lado do Oceano Atlântico. Consta que teve mais dois filhos e o escritor, ferido e implacável, uma vez no Rio de Janeiro, a propósito da entrega de um prémio importante, escusou-se a falar desse pai. Alguém, um jornalista de um diário digital, agora é assim, o papel está caro, insistiu muito na ideia idílica de um encontro, ao fim de trinta e tal anos, com o pai, esse traidor, que agora queria, quem sabe?, ver-se numa selfie com o escritor.

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 03.05.16

Martim tinha um propósito, era um homem com um objectivo e não o diria com facilidade, estava satisfeito com a armadilha que montara e, por isso, podia-se dizer que imperava uma característica mais extrovertida. Ria alto, bebia, batia nas costas de Jaime, contava histórias cujo desenlace garantiam risos e gargalhadas. Gostava de ver a atenção pendente de Carlota e o olhar quase intoxicado de Jaime. Seria fácil estabelecer um laço e, depois, com tempo, meter-se na cabeça de Jaime, tirar-lhe com jeito, de forma quase milimétrica, não se importava com isso, toda a informação que Carmen lhe passara. Martim sabia que existiam duas fortunas e ele, apesar do pouco pedigree, de se saber o filho que não era realmente, teria acesso ao dinheiro antes da irmã. Era crucial que assim fosse. Para a sua carreira.

O problema é que Jaime era um tipo desligado dessas coisas e Carmen tudo fizera para garantir que as conversas eram sobre eles os dois, a relação, o casal. Era essa uma das razões para Jaime ter terminado tudo. Não aguentava o casulo onde Carmen o que queria ter mantido, só dela, ali confinado, sem vida digna desse nome. De repente viu-se casado e careca, com filhos e um problema de ossos, um cenário de meia idade precoce que o assustou e foi isto tudo que acabou por revelar a Martim e a Carlota, já sob o efeito de muito álcool. Carlota podia ter defendido a amiga, é verdade, mas isso daria imenso trabalho, portanto optou por afagar o braço ao Martim, na esperança de que a noite terminasse.

 

Paulo tentou convencer Carmen que voltar para Lisboa de noite era uma tolice. Foi isso que se ouviu dizer

 

É uma tolice.

Ela sorriu e explicou que preferia apanhar o comboio das sete e tal da tarde, mesmo que estivesse escuro, era possível dizer que era a tarde do dia e não ainda a noite. Ele entendia? Paulo fez que sim com a cabeça. Não sabia se lhe devia dar boleia e regressar a Lisboa também, se devia ir com a mãe ao médico – tinham posto essa hipótese – para entender o que se passava com ela, se existia a possibilidade de um diagnóstico. Sentia-se dividido e, apesar disso, teve a percepção exacta de que não podia deixar Carmen sozinha. Importava que falasse e começou a fazer perguntas.

 

Não, não, a minha avó foi quem me salvou. Estava a ouvir os meus pais ontem à noite e percebo agora que não os entendo e tão pouco os conheço. Não sei nada deles. O Martim pode ser estranho, estouvado, parvo, porém sempre o tive como um irmão e não entendo como é que o criaram e nunca lhe disseram que tem uma mãe e, já agora, também não entendo a tua mãe, como é que se dá um filho? Desculpa, não estou a criticar, ou melhor, estou, mas terás de me desculpar, não percebo algumas atitudes, eu nunca abandonaria um filho. Claro que a tua mãe era muito nova, muito mais nova do que eu sou agora, e teve o Martim e depois teve-te a ti e ao Jaime e fez a vida dela, mas mesmo assim, sabia que o seu primeiro filho estava aqui, em Coimbra. Não quero entender. Só quero voltar para Lisboa.

 

Paulo tentou reconforta-la, mas Carmen não estava convicta de que fosse possível aplacar qualquer sentimento. Tudo estava ao rubro, era uma guerra antiga e interior: Martim não pertencia, não encaixava e havia uma razão para isso. Quando conhecesse Laura, o irmão iria, por fim, encontrar um destino, porque – Carmen acreditava nessa ideia – mãe é sempre mãe. Paulo entendera que Carlos, Maria Luísa e Laura não tencionavam dizer nada a Martim. Tentou que Carmen fosse razoável. Ela disse

É o teu carro, mas se vais comigo, eu guio

 

Jaime teve pena de que a conversa tivesse sido tão curta. Gostaria que o irmão lhe explicasse mais coisas, coisas concretas, mas Paulo mantivera a ideia de que era melhor falarem olhos nos olhos. Fora essa a expressão – olhos nos olhos – e Jaime entendeu de imediato que tudo se prendia com a mãe, fosse o tudo o que fosse, Laura tinha este dom de lhes desarrumar a vida, porém desta feita Jaime estava convencido de que existia algo de grave. Paulo pareceu-lhe cansado ao telefone e, de repente, ouviu-o dizer

Vou para Lisboa agora. Levo a Carmen.

A Carmen está contigo?

Eu depois explico-te.

Pensei que tinhas desaparecido por causa da mãe, uma bodega qualquer que tivesse feito, para variar, mas estás-me a dizer que estiveste fora com a Carmen? Incrível. E tu nunca gostaste dela, Paulo.

Agora gosto.

Desde quando?

Desde a festa da tua empresa.

Mas... Olha, eu nem sei o que te diga.

Falamos quando eu chegar.

Talvez não seja preciso, não tenho nada a ver com a tua vida privada.

Não sejas parvo, Jaime.

Parvo...

Não aconteceu nada entre mim e a Carmen.

Aposto que não.

 

Paulo deixara Carmen conduzir não por opção, mas por não querer discutir. Percebia agora que o espaço de conflito na sua vida – além da mãe – estava reduzido ao consultório, no consultório os doentes podiam chorar, gritar, alguns até se aborreciam com ele e Paulo mantinha a pose. Há uns meses que tratava uma mulher que, recentemente, lhe dissera em consulta

Não tem outra cara? Só essa cara de parvo? Eu estou aqui neste disparate e não se chateia comigo? Você não é humano.

Paulo sentia-se humano. Sabia que tinha de controlar as emoções com os doentes, estava treinado para tanto. E existiam doentes de quem não gostava, a quem talvez desse dois berros mentais, porém nada transparecia. Era um bom actor. Jaime achava-o um bom actor, sobretudo agora, com a proximidade de Carmen. Não podia dizer que não gostava da ex namorada do irmão, não podia dizer que a sua intensidade o esmagava, que era um possessiva e controladora. Agora entendia-a melhor.

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 23.04.16

Quando a verdade não liberta

Laura manteve-se em silêncio, certa de que Carlos conseguiria dominar o histerismo de Maria Luísa que, depois de tanto rir, se queixava de uma dor de cabeça explosiva, pronta para berrar de dor, instável, eléctrica. Paulo não se mexia. Mantinha-se sereno e Carmen, ao seu lado, tentava não olhar para a mãe. Laura teve pena dos dois. Depois teve pena de todos. Carlos vivia com Maria Luísa por imposição do estatuto, Coimbra também tinha esse encanto. Maria Luísa castigava-o, ainda agora, por ter libertado o coração num outro território. Laura ouvia tudo com atenção. Tinha-se deixado vestir de forma apropriada pela antiga amiga e, naquele momento, só tinha vontade de rasgar o vestido azul escuro, deitar as pérolas ao chão e exigir qualquer coisa que não sabia nomear. A liberdade dela nunca fora verdadeira. Laura entendia agora que nada, nada na sua vida, era mais do que um adiar do encontro com Maria Luísa e Carlos, como se a ligação entre eles fosse essencial para um significado real.

 

Jaime conseguiu ouvir o relato do irmão com alguma dificuldade. O álcool toldava-lhe, tornando-as imprecisas. Tinha deixado Martim numa discoteca e andara até a casa, não sabia quantos quilómetros, mas muitos, pareciam-lhe muitos passos numa Lisboa fria. Quando viu a sms do irmão a pedir para ligar fosse a que horas fosse, percebeu a urgência pela forma como o coração desatou a gritar no peito. Pontadas. Repentes vertiginosos que o obrigaram a parar. Respirou fundo e ligou para o número de Paulo, o único que tinha em marcação rápida, o único que sabia de cor. Depois ouviu, atento, a história incrível de como tinha um meio irmão, não um irmão, só meio, assim o consagrava a lei portuguesa, por ser filho da mãe. Laura tinha sempre mais uma surpresa. Explicou a Paulo que tinha estado com Martim, um acaso e como se sentia enjoado, pronto para vomitar. Eram quase duas da manhã. Paulo pediu-lhe calma. Jaime quis saber onde estava.

Em casa dos pais da Carmen, com a mãe.

E a Carmen está aí? Vais ficar aí a dormir?

Paulo olhou para o lado, viu o rosto imperturbável da ex namorada do irmão a dormitar no sofá da grande sala de estar.

Laura manteve-se na cozinha, numa semi escuridão protectora que lhe agradava especialmente. Maria Luísa tomara um comprimido desfeito no chá e Carlos alegava que era imperativo conversar. Conversar longe dela, a sua mulher, a amiga de infância de Laura, um mecanismo de papel na mão com flores e casinhas.

Quantos queres?

Três.

Eram pedaços de vida que lhe surgiam, de forma inesperada, e Laura procurava algum consolo nisso, no passado. O passado como moldura de uma certa felicidade, pelo menos até ao momento em que Carlos a tinha beijado para depois a repudiar e regressar para Maria Luísa. Ela, Laura, era um desperdício e a ideia do amor fora consumada num filho que não conhecia. Os seus três maridos, relações tensas com homens com quem não mantinha contacto, não tinham tido qualquer hipótese, ela estava marcada por Carlos e por Maria Luísa, eram eles o fiel da balança dela e, sozinha, só chegava a um limiar de desequilíbrio que era permanente, era assustador.

Não era de admirar que tivesse falhado com os filhos, em especial com o primeiro, o desconhecido. Carlos fez questão de dizer que Maria Luísa tinha em Martim um centro, dedicara-se a ele com o afinco proporcional de negligência face a Carmen. Laura não se consolou com o argumento. Algo dentro dela, perturbada, zangava-se com a importância que Carlos estava a conferir à criança que tinham tido os dois. Para Laura existiam dois filhos: Paulo e Jaime. Era o que sentia e sobre isso falou com alguma brutalidade. Sobre isso e a ideia de que estava a perder a noção das coisas, esquecia-se de tudo.

 

Preciso que tomem conta de mim. O meu pai morreu com isto, lembras-te?

 

Carlos lembrava-se. O pai de Laura tinha-se desligado do mundo gradualmente. Quando chegou o dia do coração parar de bater violento, já não conhecia ninguém. A mãe de Laura despedira-se do marido sem uma lágrima, cansada. Partira nesse dia da realidade e, meses mais tarde, deixara-se morrer. Laura não falava sobre isso, nunca falara aos filhos sobre os avós, por se ter convencido que não prestavam, que não se tinham dedicado a ela. Laura optara por viver nas entrelinhas da vida de Maria Luísa por não ter um espaço que fosse possível reclamar como seu. Agora percebia que estava a chegar ao mesmo estado do pai. A cabeça começava a apagar pormenores, como pixels de uma fotografia, a realidade a desbotar, roupa suja e velha, era ela, a cabeça dela.

Carmen acordou com frio, o corpo no sofá, as pernas em cima do colo de Paulo que, de olhos fechados, não lhe parecia adormecido. A casa estava calada. A mãe tinha-se fechado no quarto e, por fim, a paisagem era segura. Olhou para o irmão do ex namorado com ternura. Havia entre eles uma ligação, não por causa de Jaime, mas por causa de Laura, a mulher que afinal podia ser que tivesse o coração de Carlos, o seu pai. Sentiu-se pronta para conversar sobre o assunto e começou a falar como se nada fosse, sem princípio.

Mas tu achas que podemos viver todos como uma família feliz? Isto é inesperado, não achas? Nunca pensei que o meu pai... Olha, talvez seja o destino.

O destino?

Sim, sermos uns dos outros.

Paulo perturbou-se com essa ideia. Depois Carmen sentou-se e sorriu. Pensou como seria beijá-la.

 

Martim mandou uma mensagem escrita a Carlota. Eram sete da tarde e, subitamente, era com ela que queria estar. Podia ter sido directo e perguntar se queria passar lá em casa, ficando evidente o propósito da mensagem. Martim, com o seu ego tão mexido quanto todas as outras vaidades, não se preocupou com o episódio no restaurante. Carlota já não se lembraria. Não fora uma afronta, estava a trabalhar. Era só isso. A vida não precisava de mais complicações. Martim decidia que tudo era passível de ser entendido dentro da moldura das suas ideias e isso chegava. Carlota, por seu turno, mantinha uma memória doce da noite que passara com o irmão da amiga, apesar dos avisos desta, das previsões catastrofistas. Leu a mensagem de Martim e percebeu a pergunta. Sim, ela queria voltar para a cama dele. Estava-se bem na cama dela.

 

Laura fez sinal ao filho mais velho, a cabeça na direcção do jardim, o olhar fixo. Paulo percebeu que era melhor segui-la. Seria possível fazer as perguntas que se acumulavam desde a noite anterior? Laura disse:

Tu não vais entender, Paulo.

Experimenta.

Morrer é fácil, perder a consciência não é fácil. Eu estou a perder a memória. Perco-me.

Não estás a exagerar?

Não viste os bilhetes pela casa? É uma forma de me tentar lembrar. Até de dar de comer aos gatos. Não consigo.

E vieste para aqui porquê?

Eles devem-me isso. Têm de tomar conta de mim.

Porque? Que disparate é esse?

 

Laura suspirou. Não era um acaso, não era um capricho. Se alguma existira uma dimensão de delírio na sua vida tinha sido há muito tempo, há mais de vinte cinco anos, aquela gravidez inesperada, o casamento apressado de Carlos e Maria Luísa. Tentou enquadrar o filho, explicar de forma sucinta, não se queria alongar. Paulo não lhe deu hipótese.

Se queres a minha ajuda, por favor, conta-me tudo.

Laura não sabia se era preciso precisar do filho. Quando era mais nova, admitia-o com facilidade, imaginava por vezes que os filhos desapareciam. Não morriam, ficavam apenas suspensos na sua existência para que a vida não lhe fosse tão pesada, para conseguir sair com os amigos, para rir às gargalhadas pela madrugada sem preocupações com horas de escola, com comida a existir no frigorífico ou nem por isso. Depois lembrava-se deles, os rostos de Jaime e Paulo, o coração encolhia e o arrependimento era gigante. Amava os filhos. Amava-os animalmente.

Laura explicou que a gravidez fora um percalço, tudo era um acidente absurdo numa via rápida sem fiscalização ou regras. A vida também era isso. Sabia hoje que era apenas uma variável na equação e pouco importava querer controlar tudo, o mundo era impossível de dor e a verdade tinha sempre dor por dentro, dor sistemática. Paulo ouviu-a no seu desvio, pensamentos soltos, ela a encarar a relva debaixo dos pés, sentada com um sossego que não lhe conhecia. A mãe tinha-se transmutado numa outra pessoa. Paulo só lhe reconhecia a vertente estrangeira, era ela e, ao mesmo tempo, era uma Laura de outro tempo em que a vida parecia ter possibilidades de sucesso. Ela contou sem mudar o tom de voz, sem hesitações, as palavras contidas. Maria Luísa deixara o namorado, Carlos, pai de Carmen e de Martim, e tinha-se encantado com alguém mais velho que a deixara com uma rapidez assustadora. Laura tinha recolhido o coração partido de Carlos, era um resto de Maria Luísa e pareceu-lhe natural tentar aplacar o seu sofrimento. Mas nada seria tão simples. Abandonada, zangada, Maria Luísa reclamou o regresso de Carlos e marcou um casamento rápido para que não fosse possível recordar que se tinha entregue a um homem que a deixara, um homem que afinal não era superior a Carlos. Laura deixou-o ir. Paulo não fez um esforço para compreender.

Entretanto, em Lisboa, Martim descobria o humor negro de Carlota. Ela faz-se difícil. Menos amorosa do que pretende, do que seria normal. Se não lhe der importância, Martim não terá a leviandade de a menorizar. Se parecer distante, ele irá atrás dela. É um jogo. Não quer que Martim perceba que só a sua mão na dela, esse primeiro toque ligeiro, ainda sem atrevimento, a desmorona. Perde o céu quando o sente perto. Isso não se pode vislumbrar. Em nenhum gesto, em nenhuma palavra. Carlota acredita que será assim. Quando o telemóvel toca é Jaime do outro lado que, num fio de voz, deixa uma mensagem esquisita. Carlota não quer saber. Martim vai acabar enfeitiçado por ela. Nem que seja preciso. Qualquer coisa.

 

Laura e Paulo foram interrompidos por Carlos. Era um momento confuso, silencioso e pesado. Não havia palavras suficientes, pensou Paulo, calado, apostado em não dizer nada. Nada o preparara para as loucuras da mãe, nem para o passado, cada dia com ela fora sempre um exercício penoso que ele, Paulo, escolhera tomar para si como um sacrifício em prol do irmão. Agora a mãe dizia-lhe que estava a perder a memória, que esse gastar das ideias e a incapacidade de fixar pormenores era real, não uma mera fantasia, que podia até possuir contornos genéticos, afinal, o avô que Paulo não conhecera deixara de ser gente assim, perdendo as ideias. Paulo lembrou-se de Jaime a dizer, há muitos anos, que o irmão estudava para ser médico das ideias.

Podia ser que Carlos tivesse mais esclarecimentos, decerto que haveria uma versão só sua e Paulo sabia como uma mulher pode ser castigadora, limitativa e outras coisas, ora Carlos estava ladeado por duas mulheres e nenhuma fácil na sua forma de existir. Paulo decidiu ali que não gostava de Maria Luísa e que não teria pudor em confessá-lo. Havia algo de perverso naquela mulher e, ele, mesmo no seu melhor feitio, na contenção de quem estudou para ser imparcial nas coisas no emocional, estava do lado oposto ao de Maria Luísa. Não gostava dela. Por entender o poder que tinha sobre a mãe dele e sobre aquele homem gentil, que lhe parecia gentil, agora a fumar um cigarro e a olhar o jardim com tristeza, uma tristeza velha.

Carmen decidiu que era hora de regressar a Lisboa, estava cansada do teatro trágico-cómico da família e agora que se sabia irmã adoptiva de um irmão que nunca gostara, Martim, preferia seguir com a vida. Apesar da ideia absurda que Paulo era uma possibilidade, depois de tudo o que chorara por Jaime, o coração partido e os insultos repetidos como uma lengalenga, Carmen só queria voltar à universidade, assistir o professor sem mérito mas com cátedra e pouco mais. Não valia a pena tentar entender os pais e, por outro lado, era incapaz de processar toda a estranheza de Laura. Não era de admirar que Jaime tivesse tanta deficiência emocional, afinal a mãe dele era um destroço de um navio sem rumo. Parecia-lhe que sempre fora assim e teve pena de Jaime. Depois de Paulo. Procurou-o com o olhar e lá estava ele no jardim, em silêncio, a cara fechada, a fingir-se adulto entre Laura e Carlos, duas criaturas presas na mitologia de uma idade adulto com mais de vinte anos.

Jaime estava aborrecido, ligou a Martim. Não sabia o motivo desse gesto precipitado, um convite para uma bebida e estavam a conversar, meias palavras, conversa sem importância, quando ouviu a voz de Carlota e perguntou:

Estás com a Carlota?

Estou. Vamos tomar um copo os três.

Ok.

Conduzindo agora sem vontade, antevia uma noite de copos frustrante e não entendia a razão pela qual tinha telefonado, a razão que o levara a sugerir um encontro que não fosse um exercício típico de homens que não têm mais nada para fazer. Tinha o que fazer. Podia olhar para Carlota. Ver-lhe os lábios a abrir e fechar e prender-se nisso, sem ter em conta qualquer outra coisa. O que Jaime queria era entender o que fazia a caminho daquele encontro e por que carga de água é que Paulo não lhe respondia às mensagens.

Carlota viu-o primeiro. Jaime estava ao fundo do bar, numa mesa encostada à janela, fumava um cigarro e, como todos os solitários, brincava com qualquer coisa no telemóvel ou via notícias. Lembrou-se que Carmen tinha o hábito de jogar majong no telemóvel, peças que procuravam o seu companheiro, Carlota nunca entendera. Agora era tempo para sorrir e, pendurada em Martim, fazer-se entender com Jaime de uma forma amigável, porque, quem sabe?, podiam todos ser amigos. Uma coisa era certa, não tencionava olhar para Jaime com qualquer nota de interesse. Estava, aliás, ofendida com o interesse súbito, que lhe pareceu ser súbito, com que Martim encarava a hipótese de se encontrarem com Jaime.

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 31.03.16

Carmen voltou a casa dos pais para passar o fim de semana. Não sabia o que a esperava mas sentira na voz do pai uma pressa qualquer por definir e percebeu que era importante ir. A instabilidade que a mãe lhe provocava era uma guerra antiga, guerra dela, Carmen, interior, indizível, forte e sem tréguas, nunca seria a perfeição que a mãe entendia como padrão de elevada categoria, nunca seria como o irmão. Martim era mais. Sempre mais mesmo quando era menos. As vagabundagens de Martim não se assemelhavam em nada à vida de Carmen, as asneiras eram múltiplas, as falhas teriam o condão de compor uma lista imensa. Apesar disso, a mãe preferia-o. Era o seu menino.

Carmen debatera-se na adolescência com esse amor maior que, parecia-lhe, era um poder que Martim tinha, subjugando a mãe ao que fosse. A avó era o único porto seguro para Carmen e lembrava-se, ainda agora, de lhe escrever bilhetes com uma caligrafia inaugural, desejando sonhos felizes, dizendo que a amava. A avó correspondia sempre. Quando Carmen chegou aos doze anos, a avó foi internada, ninguém lhe explicou o que era, ninguém tinha essa preocupação com “as crianças”. A avó regressou débil, muito mais velha. Carmen teve dificuldade em processar essa constatação de velhice, a primeira: nada é eterno, a minha avó não estará sempre comigo. Atormentou-se com ideias de morte e fez planos de fuga caso a avó não sobrevivesse. O cansaço instalou-se, os movimentos eram mais lentos, mas a avó manteve-se, até Carmen fazer vinte e três anos, a avó manteve-se ali, uma bolha segura para a qual a menina que ela tinha sido podia voltar. O pai concedia-lhe esse privilégio de estar com a avó.

A mãe não comentava a relação da filha com a sogra, talvez porque a sua própria mãe não estivesse disponível. A avó materna de Carmen morrera pouco tempo antes dela nascer. Via-lhe as fotografias e interrogava-se se gostaria tanto dessa avó roubada ao tempo. A mãe nunca lhe contava nada sobre esse lado da família, Carmen tinha apenas uma avó, portanto. A mesma que encarava Martim com uma certa contrariedade, facto que Carmen explorou com alegria uma vida inteira. Ele tinha a mãe, ela tinha a avó. E nenhum tinha, verdadeiramente, o pai. O pai não era um homem para se ter, pouco dado aos afectos, sempre sério, mantinha-se ausente por opção e mesmo quando a mãe perdia a compostura com qualquer detalhe da vida quotidiana, o pai limitava-se a dizer

 

Menos, Maria Luísa. Menos.

 

Carmen chegou a Coimbra era o fim da tarde. O corpo denunciava o cansaço e, dentro dela, a ansiedade crescia. Uma espécie de guerrilha entre a cabeça e o corpo: a cabeça a debitar perguntas, a reviver momentos, frames da vida; o corpo a pedir o regresso a casa, a Lisboa, numa agonia de antecipação centrada no rosto da mãe, Maria Luísa. Não podia correr para casa da avó, não podia sentir-se feliz de novo. Pensou ainda em Jaime e na forma como não estavam um no outro, nunca tinham estado. Enganara-se. Iludira-se. Ele era agora uma imagem difusa. Era uma das suas especialidades. Carmen voltou à sensação que a diminuía, não saber lidar com o todo da sua vida. E com o menos que sentia ser.

Paulo fez a auto-estrada com irritação, com a ideia absurda de estar apenas a ser um filho perseguidor, um mini marido, controlador. No dia anterior, uma paciente tinha-lhe dito que o filho mais velho era uma espécie de marido, ele que controlava as contas, os jantares, os humores da mãe, mesmo tendo apenas treze anos. Paulo ouviu a mulher com atenção, era o que fazia sempre, ouvia com atenção. Talvez nunca tivesse dado à mãe, a Laura, essa possibilidade. Estava demasiado zangado com ela. Consigo. Importava perceber que acatara o exercício de ser quem Laura precisava que ele fosse, mesmo que isso fosse, por si só, uma castração. Paulo conduzia dentro dos limites da lei e até isso o enjoava, ser certinho e aplicado. Carregou no acelerador e chegou a Coimbra em menos de uma hora. Onde procurar Laura, era outra questão.

Carlos percebeu que teria um problema, uma aflição, um pesadelo quando decidiu ir fumar à janela. Maria Luísa odiava o cheiro do tabaco, com odiava quase tudo que o implicava directamente. Carlos geria o silêncio. Há anos que o fazia, portanto era quase automático. Esquecia-se do som da sua voz a ressoar na casa gigante. À janela viu a mulher e percebeu que não era só uma mulher. Laura. Do outro lado da rua, estava Laura, a mãe do seu filho, a mulher que não lhe diria maldades com a rapidez de Maria Luísa, mas que o odiava, só podia ser assim: o ódio forrava a memória de tudo, em especial do que ele, Carlos, não conseguira fazer. Laura teria apenas ódio por ele, ele que ainda se recordava do toque da pele dela, a cova do ladrão no pescoço, a forma como o corpo dela mergulhava no seu.

O táxi parou junto à casa dos pais e Carmen teve uma hesitação. Pagou e agradeceu, sentindo que o taxista contabilizava os seus gestos, que o homem veria com desagrado a sua forma de suspirar. Fechou a porta do táxi e encarou a casa. Viu o pai à porta, esperava-a. Não. Uma mulher passou por perto, roçou-lhe o ombro, abriu a porta do jardim e disse

 

Olá Carlos.

 

O pai quase que sorriu, Carmen pareceu-lhe ver um sorriso.

Lisboa encerrava um nevoeiro cruel. A luz tinha desaparecido. Carlota mirava as estatuetas que estavam na estante e considerava o ridículo de comprar artesanato. Ou qualquer outra coisa. Sentia-se deprimida e não percebia. Não se percebia. Ligou a Carmen que a informou da sua ida a Coimbra. Pouco adiantou sobre o seu estado de espírito, Carmen que fosse em paz. Ligaria a Martim? Não, isso é que nunca.

Martim analisou com atenção o Facebook de Carlota. Surpreendeu-se com o número de fotografias da irmã. Carmen pareceu-lhe uma desconhecida, sentimento que não lhe provocou nenhuma arrelia, era assim desde sempre. A irmã abraçada à Carlota era apenas um corpo de uma mulher. Não a odiava. Era-lhe indiferente. Como os pais lhe eram indiferentes. O pai ligara a dizer que talvez fosse de ir a Coimbra, a mãe, enfim, a cabeça da mãe, estava pior.

 

Vai perder tudo

 

disse o pai e a frase não suscitou nada no coração de Martim.

 

Tentou o telemóvel da mãe várias vezes. Laura manteve-se desligada

 

O número para o qual ligou não tem voicemail activo

 

Paulo percorreu a cidade sem saber onde ir. Impotência, frustração. Estava perto de desistir quando deu de caras com Carmen em plena Praça da República. Ela estava ali. Numa esplanada, alheada de tudo, a ver o horizonte sem focar nada. Tinha uma tristeza quase esmagadora. Paulo percebeu que existiam camadas distintas em Carmen e que podia passar uma vida inteira a tentar perceber. Quando se aproximou não houve qualquer sobressalto. Ficaram em silêncio. Paulo esqueceu-se da mãe. Laura perdeu-se.

 Tudo se precipitara. Carlos não esperava Laura, nunca tinha esperado e estava convicto do ódio, por isso ficou incapaz, perdido de palavras. Atrás de Laura, viu a filha e encolheu-se. Tudo se precipitara, pensou de novo. Carlos tentou ser gentil. Carmen passou por eles célere, como quem intui o desconforto do pai. Não disse nada. Havia algo que a impedia de cortar aquele fio entre o pai e a mulher desconhecida. Entrou em casa, largou a pequena mochila com uma muda de roupa e saiu. Caminhar seria o melhor.

 

Estou sozinha, Carlos. E preciso de conversar com quem me conhece.

E eu conheço-te, Laura?

Se não tu, quem?

A Maria Luísa conhecia-te bem. Agora não sei...

Ela nunca me aprovou.

Ela nunca te perdoou a liberdade, Laura.

 

Maria Luísa estava deitada. Os olhos semicerrados. Parecia uma senhora dentro de uma tela barroca, as rendas da camisa de dormir, o folho do lençol, a cama em dossel. Tudo estava parado no tempo. Maria Luísa mantinha uma das mãos junto ao peito e via-se um cristo redentor de ouro, pendurado no seu pescoço. O silêncio dominava a cena e Carlos, indiferente, já não absorvia nada e tão pouco se cuidava nos esforços para não fazer barulho. Entrou no quarto com à-vontade. Laura ficou à porta.

Paulo sentou-se e pediu um café. Carmen sorriu ligeiramente. O telemóvel de Paulo estava aos berros dentro do casaco e temeu que fosse a mãe, precipitou-se para o apanhar, era Jaime. Colocou o aparelho no silêncio e, por fim, conseguiu sentir-se descansado. Era curioso como Carmen tinha esse poder sobre ele. Não compreendia como se tinha permitido sentir um certo desgosto por aquela mulher quando namorara com Jaime. A sua fragilidade tinha-o irritado. Agora comovia-o. Ela disse

 

Tive de fugir de casa.

Como os adolescentes?

Sim. Por isso mesmo, terei de voltar.

Eu ando à procura da minha mãe.

Ah.

 

Foi, de repente, a frase

 

Eu ando à procura da minha mãe.

 

e Carmen percebeu quem era a mulher com quem o pai parecia querer conversar a sós, aquele olhar de quem diz, por favor, sai daqui que a levara até ao centro, fora isso: sai daqui. A mulher era a mãe de Jaime e de Paulo, era tão evidente que era a mesma, apesar de Carmen só conhecer Laura de fotografias que tinha visto no computador de Jaime. Ponderou se deveria dizer alguma coisa, mas optou por uma manobra que, de imediato, lhe pareceu cruel: levaria Paulo para casa com ela. Um convite para jantar.

 

Estava à tua espera.

Não estavas, mas eu aqui estou.

Não, Laura, estava à tua espera.

Tu nunca esperaste por ninguém.

Tu enganaste-me. Eu precisava de ti e fugiste e mentiste.

É o que faço.

Não é. Fazes outras coisas e agora ficas comigo, não ficas?

Fico.

 

Carmen não precisou de se esforçar para convencer Paulo de que um jantar em casa dos pais era o programa ideal. Ele não conhecia bem Coimbra, a mãe podia ter ido para outras paragens. Caminharam os dois de braço dado, um gesto antigo. Quando Carmen abriu a porta, Paulo viu uma senhora ao cimo das escadas, vestido azul escuro, colar de pérolas. Foi preciso focar, obrigar o cérebro a ir mais rápido, para vislumbrar a mãe naquelas roupas. Carlos surgiu da sala de estar e perguntou

Conhecem-se?

 

Jaime tentou telefonar a Paulo. Tocou, tocou e nada. O silêncio do irmão incomodou-o. Sentiu-o como uma traição, tornou-se pequeno, infantil, capaz de ser injusto e amuar. Controlou-se. A casa da mãe vazia, Paulo desaparecido, a assistente dele, no consultório, a explicar que não sabia, não tinha como. Jaime decidiu que era melhor espairecer, tentar não pensar nisso. Na mãe. Em Paulo. Estava incapaz de destrinçar a realidade à sua volta e tinha um pressentimento, a ideia de um mau pressentimento. E, nesse momento da decisão de se alhear, ouviu

 

Jaime? Certo?

 

Martim estendeu-lhe a mão e abriu um sorriso que surgiu inesperado. Jaime sabia que Carmen odiava o irmão. Não era um ódio recente, era visceral. Ela tinha dito

Ele não pertence. Sabes o que é viver com uma pessoa que não encaixa?

Jaime sabia. A mãe era a maior lição de vida sobre pertencer ou não pertencer, sobretudo a parte de não encaixar. Martim hesitou e depois perguntou

 

Bebemos um copo?

 

Jaime acenou de forma imperceptível, nem sim, nem não, mas Martim já tinha decidido que tomariam algo, fosse o que fosse. Jaime, perdido, entrou num lobby de hotel, seguindo as passadas aceleradas de Martim. Temia o pior.

 

Calculo que a minha irmão não tenha falado de mim.

 

Martim disse a frase sem qualquer ressentimento, cada palavra dita de forma clara, sem hesitação, num tom de voz que não o denunciava. Jaime sorriu. Não tinha nada para lhe dizer. Rodou o copo de whisky na mão. Martim não precisava de retorno, bastava-lhe público.

 

A Carmen é... Não sei bem, conheço-a mal. Sei que nunca me gramou. Sou o irmão mais velho de quem a mãe gosta. A Carmen tem falta de mãe.

 

Jaime voltou-se para a imagem de Laura e, como sempre, associada à mãe estava Paulo, o irmão salvador.

Paulo fixou-se na imagem estranha da mãe, refeita com a roupa delicada de Maria Luísa. A voz pareceu-lhe diferente. Os anéis tinham desaparecido, o cabelo estava apanhado. A mãe estava sobre o efeito de algo que Paulo não entendia. Depois Maria Luísa falou e Paulo deixou-se prender pelo espanto da outra mulher, a desconhecida frágil, de roupão, que encostada a Laura, sorria idiotamente. Ela disse

 

Carmen, trouxeste um amigo? Que bom, querida.

 

Laura passou pelo filho e não o olhou. Não era ela. Paulo manteve-se calado, sempre calado, incapaz de entender, perplexo com tudo, a casa, o cenário, as personagens. Podia pedir para sair, podia. Não fez nada. Encaminharam-se para a sala de estar e Carmen pegou-lhe na mão. Tudo era estranho.

Maria Luísa tinha uma maneira especial de falar, um tom de voz baixo que obrigava ao silêncio e os olhos dela eram hipnóticos. Carlos e Laura fixavam-na e, ao mesmo tempo, fixavam-se. Estavam frente a frente, Maria Luísa a meio, no sofá. Carmen não conversava com ninguém e Paulo observava. Era como estar numa sessão de cinema. Paulo descobria a mãe, e dentro da mãe outra mãe. Por fim, perguntou

 

Conhecem-se há muito tempo?

 

Carlota passeou no facebook a ver se se metia feliz, se conseguia chegar a uma fórmula de sossego e se deixava contaminar por alguns posts daquelas pessoas que estão sempre a alardear felicidade, verdadeira ou falsa, tanto lhe fazia, não as conhecia, apenas lhe apetecia um mundo mais cor de rosa, ou​ talvez mesmo só​ ver se ​conseguia. O facto de Carmen estar fora era apenas um contratempo. Queria dizer-lhe que as asneiras não têm previsão e que não tem mãe para lhe fazer avisos adolescentes. Nada disso. Está sozinha. Com o seu corpo a borbulhar uma ideia de vida, lá dentro. Carlota vê os gatos e os cães, os gifs com John Travolta, e tenta, tenta desesperadamente, não chorar. Não se revê nesse destroço imprevisível de querer tirar do peito uma angústia que não corresponde a quem é. Carlota faz um esforço, limpa o rosto, pensa-se forte e feliz e depois desiste.

 

Carlota passeou no facebook a ver se se deixava contaminar por alguns posts daquelas pessoas que estão sempre a alardear felicidade, verdeira ou falsa, tanto lhe fazia, não as conhecia, apenas lhe apetecia um mundo mais cor de rosa, ou​ talvez mesmo só ver se ​ conseguia chegar a uma fórmula de sossego. O facto de Carmen estar fora era apenas um contratempo. Queria dizer-lhe que as asneiras não têm previsão e que não tem mãe para lhe fazer avisos adolescentes. Nada disso. Está sozinha. Com o seu corpo a borbulhar uma ideia de vida, lá dentro. Carlota vê os gatos e os cães, os gifs com John Travolta, e tenta, tenta desesperadamente, não chorar. Não se revê nesse destroço imprevisível de querer tirar do peito uma angústia que não corresponde a quem é. Carlota faz um esforço, limpa o rosto, pensa-se forte e feliz e depois desiste.

 

Laura olhou o filho do outro lado da mesa, havia um silêncio quase confortável, apesar de Maria Luísa pontuar com uma outra pergunta. Carlos não a olhava nunca, tão pouco respondia, permanecia fixado em Laura, em suspenso, capaz de dizer qualquer coisa a qualquer momento mas sem o fazer. Carmen arrependera-se já de não ter explicado que Paulo era filho de Laura, incomodada com o silêncio entre os dois e esse anúncio de ligação. Havia algo perturbador em tudo aquilo. O pai tinha-lhe dito que a mãe não estava bem e, de repente, a mãe parecia ter rejuvenescido e dirigia-se a Laura com um entusiasmo pouco habitual. Paulo repetiu a perguntar que tinha ficado por se saber. Como se tinham conhecido? E tinha sido há muito tempo? Laura começou a responder, hesitante, mas Maria Luísa disse que contaria a história e contou.

Paulo e Carmen perceberam coisas distintas. Maria Luísa não se enganou em nada, a percepção de cada um estava limitada à informação prévia que possuíam e, por isso, tinham perguntas a fazer, mas não conseguiam. Maria Luísa imponha um silêncio. Era o seu palco. O pai de Carmen, Carlos, levantou-se para ir fumar. Laura manteve-se, imperturbável, desconhecida para o filho, incapaz de o olhar directamente. Paulo percebeu que a mãe tinha um passado mais desfeito do que alguma vez imaginara e que Maria Luísa era quem a dominava, era aquela a pessoa que podia colocar Laura no sítio certo. Carmen, por seu turno, só se encantou com a amizade antiga, tão visceral, de grande pertença e identificação e teve pena do pai, ele que não fazia parte daquela relação umbilical que Laura tinha com a sua mãe.

Havia ali vários enganos e um mal estar crescente. Laura sabia que iria rebentar, fazer explodir a bolha da decência e manchar o resto do serão com palavras que seriam outra guerra, um conflito desconhecido de Paulo ou de Carmen, uma história antiga que a ligava a Maria Luísa e a Carlos. Estragar a harmonia era a sua forma de estar e, reclamando uma liberdade que Maria Luísa condenava, Laura explicou o inexplicável.

 

Nós somos os pais do teu irmão, Carmen. Eu sou a mãe, Maria Luísa é a mãe adoptiva. Carlos é o pai. Martim é teu irmão, Paulo.

 

Maria Luísa, em sobressalto, mexendo-se de repente, encarou Paulo com surpresa. Houve uma interrupção no correr do tempo, ficaram todos suspensos e, por fim, Carmen riu, riu de forma histriónica, sem qualquer elegância.

 

Muito bem, muito bem. Portanto, não foi incesto por pouco.

 

Carlos, regressado à sala nesse instante, interrogou.

 

Incesto?

 

Prático, recuperado do espanto e da dor, Paulo explicou que Carmen namorara o Jaime, seu irmão, filho de Laura e, desse vez, foi Maria Luísa quem se riu até que as lágrimas começaram a surgir no olhos azuis transparentes.

 

Não foi incesto, mas foi por pouco. O teu pai não é o pai do Paulo ou do Jaime.

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 24.02.16

Quando a memória já não é a mesma; os actos falhados pesam; e a memória regressa; e o perdão do passado que não serve o futuro; e quando se é enterrada viva; e a desgraça pode ser maior; e a noite foi só deles; a ausência de Laura parte o silêncio; uma mentira é melhor; a família morre

 

Carmen não se queria encontrar com Jaime, não podia sequer imaginar o que seria esse estar frente a frente depois de tudo. Ainda lhe doía o

Nem na cama és boa

Ou teria sido de outra forma? O tempo mostrava-lhe que, apesar da dor, o coração tinha recuperado e a memória recusava-se a devolver exactidões. Jaime sugeriu o encontro. Ela respondeu

Não, Jaime, não faz sentido, depois de tudo não podemos ser amigos e, repara, é uma situação criada por ti.

Não me portei bem, eu sei.

Pois sabes, não és parvo. Compreendo que estejas em baixo, mas eu não sou um confessionário ambulante. Fala com o teu irmão.

Não posso falar com o Paulo.

Carmen esteve quase para gritar que não tinha nada a ver com ele, com o irmão, com a potencial causa de um desconforto que não se prendia, decerto, com ela. Podia deixá-la em paz? Por favor. Não gritou. Acatou e sentiu-se fraca. Marcaram um jantar.

Jaime desligou o telemóvel e mandou sms ao irmão dizendo

Vou jantar com a Carmen. Quem sabe?

Não percebeu, ou não quis perceber, que o gesto era como um outdoor luminoso a dizer

Não lhe tocas. Já não é minha, mas não lhe tocas.

Paulo, por seu turno, percebeu tudo e escreveu a Carmen, via Facebook

Já sei que vais jantar com o Jaime. Ele está chateado por causa da nossa mãe, não lhe ligues. Não lhe dês importância, Carmen, ele só te irá fazer mal.

Apagou a mensagem. Paulo sabia mais. Sabia melhor. Não era possível manipular a situação. Teria de ver Carmen e perceber. Antes, porém, era urgente entender o que fazia a mãe em Coimbra.

Laura rondou a casa. A mesma palmeira solitária, a laranjeira ao fundo e ainda uma buganvília rosa tímida, despida de graça. Por instantes, conseguiu sentir o odor da casa, um perfume único que a transportou para a infância. Sabia que tudo estaria na mesma. Os ruídos da madeira, o terceiro degrau das escadas para os quartos teria uma mancha preta incompreensível. Maria Luísa estaria ali e Carlos também. Não a olhariam com carinho, antes com perplexidade, Laura podia apostar, e um sentimento contraído de hostilidade que se materializaria em simpatia de circunstância, na melhor das hipóteses. Sentiu um arrepio de frio e ajeitou o casaco.

Não tinha qualquer hipótese de ser aprovada. Maria Luísa iria verificar cada centímetro quadrado do seu corpo, o rosto pesado, as rugas, os cabelos brancos a despontar selvagens, as mãos com unhas rentes e Laura seria de novo uma menina apanhada em falso. À memória delas a rir, a partilhar brincos e sapatos, imagens devolvidas no espelho de corpo inteiro, no conforto do quarto menineiro de Maria Luísa, tinha-se substituído a outra: Laura deitada, a chorar, o menino nos seus braços e Carlos a dizer

Perdoa-me, perdoa-me...

Maria Luísa não a perdoaria. E, como castigo, primeiro gesto de rebeldia que veio a aprimorar, Laura limpou o rosto e, com imensa dificuldade, sentou-se na cama e proferiu a sentença

Leva-o tu, Carlos. Dá-o a Maria Luísa, para que não pensem que passou estes meses todos em casa sem razão. Eu sei que fiquei aqui como quem está enterrada viva. E tudo porque tu não tens coragem para ser alguém. Nem é para ser um homem, Carlos, é coragem para ser uma coisa viva.

E ele não a olhou, ela com os braços estendidos, o menino adormecido, um cueiro de algodão branco, mínimo, mínimo.

Leva-o, Carlos, leva o bebé daqui que eu não o quero. Pega nele e na tua mulher e vão a Lisboa, quando voltarem podem dizer que Maria Luísa o teve. Ninguém acreditará, é evidente, mas os comentários acabarão.

Ele quis perguntar porquê. E para onde é que ela podia ir. Afinal, Laura não tinha como viver sem a ajuda deles. Ela riu-se, maldosa, já sem o filho nas mãos, a ver aquele homem, o pai da criança, pela primeira vez. Carlos era insuficiente. Maria Luísa equivalia ao máximo da crueldade, mas Carlos era pior, um súbdito dela, a viver no terror de a agitar. E era isso que ele dizia

Não a quero agitar

Como se Maria Luísa fosse um moinho de vento frágil, em precariedade permanente, a correr um qualquer perigo que mais ninguém via, mas que Carlos assumia como sendo real e só ele podia travar tudo.

Carlos não se conteve quando, no fogo de uma noite de verão, pegou na mão de Laura e fugiram para a garagem dos pais dele. O corpo dela era um território antecipado, Carlos tinha sonhado com tudo o que podiam experimentar se se experimentassem um ao outro. Um mês depois casou com Maria Luísa, Laura foi a madrinha e dama de honor em destaque, já que era a única. Martim nasceu nove meses depois. Laura nunca soube como se chamava o seu filho, entregou-o ao pai, naquela tarde em que nasceu, e deixou Coimbra. Tinha-lhe parecido que seria para sempre. Afinal não.

Paulo cirandou pela casa. Estava tudo com aquele ar de desleixo

​a que a mãe se habituara. A rebeldia passara a uma depressão que a mantinha no letargia sem qualquer energia. Ele sabia que não servia apenas medicá-la, era preciso mais do que isso. Laura sempre se recusara a fazer terapia.

Tu não sabes nada do que eu passei, Paulo, não vou fazer terapia. Cheguei aqui. Estou aqui. A vida é isso.

No quarto encontrou vestígios do último homem com quem a mãe estivera. Não fazia um esforço para o recordar, porém teria de reconhecer que tudo piorara quando ele abandonara a casa, a relação. Laura explicara

Nunca deu. Arrastámos isto para nada.

O “isto” era o plural composto pelos dois.

A vida amorosa de Laura era, no mínimo, rica, assim o entendia Paulo que não queria mais pormenores e, ao mesmo tempo, parecia não se livrar deles. Havia alturas da vida da mãe que permaneciam na escuridão. Apesar de liberal, de extrovertida, Laura mantivera os seus segredos.

Paulo verificou o frigorífico, não deixou nada. Fechou a porta, um saco do hipermercado na mão esquerda com restos e o coração inquieto. Teria de informar Jaime que a mãe não estava, tinha partido numa viagem. A primeira hipótese, sempre a melhor, dizia-lhe a experiência, seria mentir. Assegurar que sempre tivera conhecimento da intenção de viajar e que a ajudara. A segunda era somente admitir que não tinha ideia onde a mãe estava.

Laura, com cinquenta e nove anos, não podia estar perdida na paisagem. Por outro lado, Coimbra não era tão grande assim. Paulo não entendia a escolha por aquela cidade. Que soubesse não havia ali nenhuma ligação. Mas podia estar errado, o que sabia afinal da mãe? Nunca os deixara com os avós, era como se não existissem. Laura costumava atirar-lhe com a frase

Não prestaram para mim, não prestam para vocês.

E, os três, apenas os três eram uma família, como se viessem do nada, nenhuma raiz fundadora, nenhuma origem.

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 10.02.16

 

Quando o inesperado acontece; Laura abandona a cidade; Martim ignora Carlota; Carlota deixa que a emoção domine; Carlota deixa que a emoção domine

 

O silêncio não tinha uma dimensão possível de se medir. O tempo congelou. Ouviu-o respirar do outro lado da linha, porventura um suspiro, a noção exacta do disparate cometido. Carmen precipitou-se de forma juvenil

Olá, estás bem?

Não. Não estou.

Posso ajudar?

Ninguém pode.

Jaime, estás muito dramático, diz lá o que se passa.

Não tenho ninguém com quem falar.

Tens o teu irmão, o Paulo.

Saíste com ele.

Sim.

Foi bom?

Sim.

Jaime esperava outro tipo de resposta. Levantou-se e observou a vista hedionda que a cidade tinha naquele ângulo, apenas um espelhar da sua perturbação, cores esbatidas, lixo, contentores.

Ao mesmo tempo, Laura, do outro lado, apanhava um táxi e seguia para o comboio Mandou uma sms ao filho mais velho. Paulo iria perceber que ela levantara dinheiro na caixa automática, que abandonara a casa. Era um polícia da sua vida. Da pior forma, mas era. A mensagem dizia

Vou passar uns dias a Coimbra. Não te preocupes, tenho lá amigos. Diz ao teu irmão que está tudo bem. Não te zangues, Paulo.

Carlota não entendeu a seriedade do cumprimento, formal, quase gélido. Teria Carlota dito alguma coisa? Não, não podia ser. Martim olhou-a, quase indiferente, para surpresa dela, e cumprimentou-a com um ligeiro aceno de cabeça. Não se levantou, não lhe dispensou três segundos, continuou a falar com o seu interlocutor, um homem de fato que comia uma enorme posta de bacalhau. Martim estava a trabalhar. Carlota não era trabalho. A indelicadeza, contudo, magoou-a, ela que ainda sentia na pele a ponta dos dedos dele naquela noite de impulsos e pouca razão.

Não sabe o que lhe passou pela cabeça, tinha-se como uma pessoa capaz de se controlar, até mesmo controlada, se fosse sincera consigo própria. Atravessou a sala do restaurante como se fosse uma passarelle, muito direita, elegante nos seus saltos altos e parou junto de Martim.

Não me falas ao almoço? Só de noite?

Carlota... eu...

Deixa estar, Martim, a tua irmã explicou-me tudo. Ou quase tudo.

O momento de glória seria o segundo em que voltaria as costas. Porque seria então que se sentia tão frágil, os olhos a reclamar lágrimas. Estava demasiado sensível, nem parecia ela. Carlota saiu do restaurante. Já não conseguia almoçar.

Martim não percebeu a ousadia ou o gesto de confronto de Carlota como uma chamada de atenção, apenas como um incómodo. O que o perturbou foi a menção a Carmen, a irmã tão certinha, tão cheia de sabedoria, afinal uma professora assistente na universidade. Nunca entendera irmã. Talvez por não ser sua irmã. Criaturas de ventre distinto.

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 04.02.16


Quando noves fora nada;  Laura culpa Paulo; o passado é identitário; o passado é estável; Laura e Carlos pertencem a Maria Luísa; a história de amor começa; o amor é cruel e depois cego; Laura fica com os pedaços; a fuga é a melhor opção; Jaime não sabe o que fazer; a realidade é um acto falhado


Nada. Jaime contabilizou as coisas passíveis de caber no nada por oposto ao infinito. Carmen teria beijado Paulo? Paulo teria afogado a cabeça nos cabelos dela, no perfume – sempre o mesmo – que ela usava? Saiu para a rua à procura de jantar para a mãe. Os cenários que a sua cabeça construía para o irmão e para a ex namorada eram um combustível que alimentou a sua existência durante alguns dias.

Paulo encarou a mãe. Frio. Quase glaciar na escolha das palavras e, em especial, no tom, começou a desfiar o rosário das queixas que ela não podia fazer a Jaime. Como se Laura fosse uma criança, tivesse diminuído e tão pouco fosse matéria humana capaz de se afundar na tristeza.

Tens de crescer. Isto não dá, percebes?


Laura percebia que assim seria mais difícil. Todos os dias seria mais difícil. Não encarou o filho, incapaz de lhe dar os dois berros que gostaria de ter força para dar. Falhara com ele de uma forma estrondosa, era o seu pior erro. Nunca o deveria ter tido, mas depois de ter abandonado o primeiro filho, como teria sido se não tivesse sentido Paulo a crescer-lhe das entranhas? Na altura, sabia, estava convicta, de que era essencial escolher a gravidez e o papel de mãe para cumprir com alegria. Não houve espaço para tanto, mas não podia dizer que a culpa fosse dele, de Paulo. Compreendia que, injustamente, o culpava. Ele não era o seu primeiro filho, mas teria de fazer as vezes de.

Que tipo de mulher chega aos sessenta anos sem sair de casa? Como é que se deixou enredar por uma situação tão pouco digna? Não saberia responder. Laura sonhava. Às vezes, sonhava com Coimbra, andava no parque da casa dos pais de Maria Luísa, subia às árvores com a ajuda de Carlos, tinha quinze anos e era feliz por ser feliz com eles. Havia no ar o cheiro do pão acabado de fazer, do jasmin e do riso deles. Os três. Juntos.

Coimbra era a moldura perfeita porque Laura vivia no passado como quem vive dentro de um livro preferido. Sente-se confortável. Há uma estabilidade na memória e, se esta falha, Laura é hábil, recorre ao mais provável. O “ pode ter acontecido assim” é uma lengalenga de enorme conforto e ela consegue visualizar mesmo o que não viveu. Carlos dizia-lhe, com um meio sorriso, numa antecipação do que seria o futuro, a existência de Laura:

Sofres de excesso de imaginação.

Laura ria-se e os dois, tão novos, longe dos dias mais atormentados, deixavam-se ficar à porta da biblioteca, impacientes, a conversar com certa pressa, atropelando as palavras até à chegada de Maria Luísa. Ela que os dominava. Ela que os tinha. Eram dela. Apenas dela.

Maria Luísa conheceu Laura com quatro anos. Tinham ambas o mesmo bibe azul escuro com gola branca, fita vermelha à volta dos bolsos espalmados na frente, restos de rebuçados, migalhas de bolachas. Laura nunca tinha visto ninguém que estivesse dentro do ideal de Beleza. E ninguém era imune aos olhos azuis imensos de Maria Luísa. Os cabelos certos, em caracóis, a perfeição do sorriso. Pensar que era a sua melhor amiga enchia-a de orgulho e manteve-se nesse estado de graça, um amor platónico feito de cedências e silêncios, escondendo qualquer potencial de rebeldia, até à adolescência.

Carlos surgiu mais tarde. Tinham quase quinze anos. Ele mudou-se com a família para Coimbra, ocupando a vivenda ao lado da casa dos pais de Maria Luísa. Por esta altura, Laura fazia parte, não se excluía de nenhum evento, festa ou celebração. Pouco importava de onde vinha. A família sem os pergaminhos de tantas outras não afastara Maria Luísa. Laura pertencia-lhe. As roupas que usava cabiam a Laura à justa, mas era para ela que iam antes de chegarem aos serviços de acção social da igreja onde ouviam a Palavra de Deus aos domingos. O mesmo aconteceu com Carlos, com o amor de Carlos.

Os olhos de água de Maria Luísa deixaram-no num fio qualquer de suspensão, olhava para ela e não queria respirar, queria sentir o coração na garganta. Carlos amou-a de imediato, como alguém que reconhece o caminho de casa às escuras, às cegas. Maria Luísa, apaixonada por um colega mais velho, uma fantasia que se podia cumprir, as famílias conheciam-se, pertenciam ao mesmo meio, desfez o coração de Carlos em poucos dias. Laura apanhou os pedaços.

Laura não se esconde debaixo dos lençóis como fazia em pequena quando tinha medo de ficar sozinha em casa, noites frias de inverno, a mãe a ir trabalhar às quatro da manhã para a panificadora que ficava do outro da cidade. Agora é uma mulher adulta e procura pensar-se assim: adulta. Por isso, arrasta-se pela casa, depois de ter deixado a cama num desalinho, sem vontade de nada até que... um repente, um plano, um formigueiro de entusiasmo ou de expectativa, até que a ideia se cristaliza na sua cabeça e sabe que é tarde, que vai fazer a mala e partir para Coimbra. Talvez não volte. Quem sabe? Pega numa moldura onde os dois filhos sorriem. Eram tão novos e tão pouco contaminados por ela que o choque dessa percepção quase que a trava. Laura ouve-se dizer

O que foi que lhes fiz?

Jaime regressa ao trabalho intranquilo. Não se consegue concentrar, perde a noção do tempo, deixa-se estar em frente ao computador. Tanto pensa na mãe como no irmão, depois em Carmen e na falta que não lhe faz. Carlota não lhe atende o telemóvel e o Facebook espelha o desinteresse total que o planeta respira de momento, ou é futebol ou coisas parvas, já não tem idade. Jaime quer mudar o mundo. Pelo menos o dele. O primeiro passo talvez seja voltar a falar com Carmen? Esta ideia surpreende-o.

Carmen não esperava ouvir a voz de Jaime, estava distraída, a rever exames de alunos, ao mesmo tempo em que pensava que os moldes da educação estavam errados, mas quem era ela para o dizer? Pegou no telemóvel de forma automática e ouviu
Carmen?
Sim?
Sou eu. Jaime.
Ah.

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 19.01.16

Quando há mais na equação; Laura expulsa os filhos; Jaime toma uma atitude; Carmen não sabe que pensam nela; a gentileza marca o momento

 

Carlota tentou apaziguar a versão de Carmen. Afinal, os irmãos estão sempre em lados opostos. É quase uma inevitabilidade. E o mesmo se pode dizer da competição. Carmen abanou a cabeça, fumava mais um cigarro e olhava para lá da amiga. Não queria explicar a maldade que sabia existir em Martim, queria apenas que Carlota não caísse na tentação de voltar a estar com aquele homem, um desconhecido.

Jaime e Paulo mantiveram-se na varanda a conversar durante algum tempo. Laura fingia dormir e atormentava-se com ideias esmagadoras, estranhas, cenários que era capaz de fazer desde miúda. Por momentos, a lucidez chegava-lhe como uma estalada e sabia que tinha culpa do estado das coisas, que não podia dizer ao mundo que tudo iria ficar bem. O melhor seria expulsar os filhos como, na verdade, tinha feito anteriormente. Evitar quem se ama para não ver reflectido o pior que existe dentro da nossa pele, pensava Laura.

Laura continuou no sofá e Jaime beijou-a na testa.

 

Vou buscar jantar, mãe. O Paulo fica aqui.

 

Nem um som. Apenas o estremecer das pálpebras, a noção de que existia a possibilidade de ser ouvido. Jaime estava confuso. Queria perguntar ao irmão a razão pela qual tinha saído da festa com Carmen, a ex namorada dele para quem Paulo só tinha adjectivos qualificativos negativos, mas a mãe, o estado da mãe, não lhe permitia. Ou talvez sim, por isso perguntou, virando-se para Paulo.

 

E a Carmen?

Ainda no restaurante, enfrentando as palavras de Carlota como alguém que evita um confronto, Carmen sente-se num cenário de guerra afectivo. Não pode dizer tudo, não sabe como, e tão-pouco se atreve a fazer perguntas. Nunca sente que mereça, seja o que for, muito menos que pensem nela com carinho ou com alguma percepção maior, elevação, inteligência, beleza. Sabe que driblou de forma eficaz o irmão do Jaime, tem a certeza de que sim, mas teria sido ela ou o álcool?

Paulo fora gentil, teria de admitir que a palavra acertada era essa: gentil. Bom ouvinte, incapaz de uma interjeição que a obrigasse a parar o discurso que, subitamente, lhe parecia crescer dentro do peito, um esgar, ou um vómito, pronto para ser expulso. A necessidade de expor, de dizer, falar sem controle, numa velocidade estranha e ele, sem interromper, atento, olhando Carmen nos olhos, à espera. Não podia dizer ao irmão que tinha cometido um erro, a ex namorada era, afinal, uma mulher interessante. Por isso, respondeu a Jaime com poucas palavras, sem desviar o olhar da televisão muda do apartamento da mãe:

Carmen? Não sei. Porque perguntas?

Saíram juntos da festa...

Isso não foi nada

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 12.01.16

Onde a ironia toma conta; Laura compensa o vazio; os recados estão pela casa; o silêncio é a solução;tudo não passa; a vergonha pode impedir a acção; Paulo ouve uma doente; a mãe quer salvar o filho mais novo; uma confronta e a outra segue o mesmo modelo; o mar é infinito; tudo ainda pode acontecer; se esclarece o básico;

ficar pendurada é a realidade; o verbo confrontar não se desfaz;  se conhece melhor a peça; Jaime berra sem dizer nada; Martim é personagem principal;  a traição é fundadora; um acidente é fatal; a conversa é recordada; o futuro é um lugar imediato

 

Paulo podia ligar a Carmen mas para isso seria preciso ter o número de telemóvel da ex namorada do irmão, a ex namorada de um período longo, mesmo muito longo. Mas ele preferira ignorá-la. Maldizê-la. Não quis ver nada de bom em Carmen e, de ressaca, incapaz de dormir, bebendo cafés duplos na pastelaria do costume, a tentar acertar quantas consultas podia desmarcar, sentiu-se infantil. Precisava de saber o número daquela mulher.

Jaime tinha dois dias de férias. Estavam marcados há muito tempo. Deitara-se tarde, andara por aí e, pelas duas da tarde, tomou duche e decidiu que precisava de ver a mãe. Não havia nenhuma razão. Geralmente, visitava-a ao sábado, uma vez por mês. Não era muito, não era pouco, era o possível. Paulo raramente ia. Falavam ao telemóvel, explicava-lhe o irmão como se fosse natural. Jaime sabia que Laura lhe tinha falhado há muito tempo – porventura falhara aos dois, mas Jaime preferia não o entender assim. Estacionou a dois quarteirões da casa da mãe.

Laura não estava preparada para nenhuma visita. Não era sábado. A casa estava a desfazer-se, os dois gatos miavam à volta da tijela de água. O cabelo estava por lavar. O odor que saía dela era algo incompatível com a ideia que se tem de uma mãe. Jaime olhou à volta e percebeu várias coisas. O terceiro marido não vivia ali. Por todo o lado, em vários móveis, estão fixos post it com frases como

 

Comer

 

Lavar os dentes

 

Dar de comer aos gatos

 

Sábado Jaime

 

Era o caos. Laura tentou não olhar o filho mais novo, apressou-se a retirar algo de cima do sofá, um monte de coisas que Jaime não entendeu o que eram. Entre eles o espaço para palavras tinha sido eliminado. Incapazes de dizer. Confuso, Jaime deu água aos gatos. Tirou o casaco e começou a arrumar. Não sabia o destino da maioria das coisas e esse desentendimento com o mundo da mãe, levou-o a um caos ainda maior: cada gaveta era uma surpresa, um susto. Um cheiro repugnante vinha de algures. Laura manteve-se no sofá e, por momentos, fez-se adormecer.

Havia comportamentos distintos dentro dela. Era capaz de distinguir os ruídos do filho que arrumava a casa. Sentia um dos gatos, provavelmente o Baltazar, que se aninhara perto do seu corpo. Não precisava de se esforçar muito para relembrar os filhos a brincar na praia. Teriam cinco anos, talvez seis. Sim, o Paulo já andava na escola, era um menino bem comportado, sempre atento ao irmão. Tinha exigido dele o que ninguém podia imaginar e isso, só isso, a consumia com uma culpa que era galopante. Não passava, desobedecendo a essa crença universal de que tudo passa.

Jaime considerava se deveria telefonar ao irmão. Afinal, era o especialista, como é que ele dizia? Especialista em saúde mental. O que seria isso, numa equação exacta, lógica, matemática, Jaime desconhecia. Ser saudável era ter o colesterol equilibrado, não era estar isento de pensamentos, ideias, impulsos negativos. Saúde mental. Matutou no termo enquanto fazia a cama da mãe de lavado. Tinha a máquina da roupa já cheia, teria de esperar. A visita prolongar-se-ia até ao infinito. Jaime sentiu-se infeliz. Quis telefonar ao irmão. Teve vergonha.

Paulo tentava explicar à sua paciente que o melhor seria rever a matéria dada. Na verdade, o que lhe apetecia dizer era

 

Conheço a sua tipologia de ginjeira.

 

Mas não o disse. A mulher à sua frente ainda tinha auto-estima. O casaco combinava com a mala, os sapatos de salto alto estavam impecáveis, não eram sandálias de borracha. Podiam ser. Ela não era ainda um farrapo, era apenas alguém que precisava de uma reorganização, de ver a vida através de outra janela, outra perspectiva. E foi isso que Paulo foi afirmando, aqui e ali interrompendo o discurso perto do lacrimejante, até que passaram os sessenta e cinco minutos, os minutos da sessão e a tolerância, e teve de se despedir.

 

Laura, no sofá, pegou no telemóvel e escreveu

 

O teu irmão está cá. A casa está uma desgraça. Eu também. O teu irmão vai ficar desfeito, tens de o vir buscar. Desculpa.

 

Não esperava uma resposta. Paulo era demasiado contido para responder, como se as palavras nunca coubessem realmente no sentido pretendido. Laura ficou só à espera que chegasse. Jaime continuou a arrumar. Silencioso.

Uma das teorias de vida que as unia: enfrentar. Carmen e Carlota já tinham perdido a conta ao número de vezes que relataram, nos tais almoços regulares, os confrontos com A ou com B, a necessidade de ver e analisar o problema. De falar sobre. Fosse o que fosse. Não lhes restava, portanto, grande hipótese, não podiam defraudar o seu próprio objectivo de frontalidade. Era preciso confrontar os acontecimentos.

Carlota chegou mais cedo. Queria ter a certeza de estar sentada, de ver a amiga chegar, de perceber como estava, como iria ser a conversa. Na presunção de que a conhecia como a palma da mão. Presunção idiota, claro, já que Carmen estava sentada no restaurante, na mesa do costume, a fumar um cigarro e, ao contrário do que tinha imaginado, não usava os óculos escuros para esconder um mar infinito de mágoa ou de raiva.

 Carmen ergue-se para a beijar. Um gesto banal, costumeiro, sem agressões. Havia algo de diferente, Carlota não saberia dizer o quê e, de repente, o empregado já estava a sorrir e a dizer coisas, Carmen fez o pedido, olhando a amiga só para ter a validação necessária.

 

Hoje, para variar, acho que bebemos um copo de vinho tinto. Alentejo de preferência.

 

Que tal?

O quê?

O meu irmão?

Bem... Quer dizer, só estive com ele na noite da festa, nem sabia que era o teu irmão.

E se soubesses teria feito alguma diferença?

Não, acho que não.

Pois, ainda bem.

E tu saíste com o Paulo? Ele não te odiava?

Odeia-me menos.

Ah.

 

Paulo pediu um uber. Recebeu uma sms a dizer que o motorista Hugo estaria à porta do consultório dali a quatro minutos e quatro minutos era manifestamente pouco para o que precisava de fazer, porém não se apressou. A ideia de a mãe destruir mais um dia era-lhe insuportável. Pensava em Jaime perdido na casa desleixada​. No tempo que passaria a explicar que a mãe tinha uma depressão diagnosticada, que o terceiro marido a tinha deixado há mais tempo do que ela aceitava ou dizia. Laura disfarçava sempre

 

Não, não, estou sozinha. Há muito trabalho, sabes? Ele tem de trabalhar.

 

Paulo acatou durante uns meses. Depois recebeu uma chamada da gestora de conta da mãe, conta que tinham os dois no mesmo banco, desde sempre, parecia-lhe, embora ainda conseguisse recordar o dia preciso em que lhe dissera

 

Mãe, vamos a abrir uma conta no banco os dois, para que não fiques pendurada.

 

Pendurada, Paulo?

 

Pendurada, mãe.

 

Carlota estava preparada para um ataque. Carmen imaginara uma amiga tagarela, a fazer graças sem riso, a empatar, porém tinham despachado no primeiro assalto as palavras mais duras. Carlota teria achado piada a Martim. Paulo odiava Carmen um pouco menos e, embora não tivesse​ dito a ninguém, ficara com a certeza, ao ver​ o tal V irritante que o Facebook coloca nas mensagens lidas, que ela lera a ​mensagem que lhe escrevera​

 

Carmen. Ficaste bem? Não te liguei, não tenho o teu número. Beijo Paulo

 

Não percebeu exactamente a necessidade da assinatura. Percebia nas entrelinhas uma justificação e isso fê-la sorrir. Adiava o momento de responder por inépcia, por não ter as palavras certas. Carmen teria partilhado este acontecimento com Carlota sem hesitação. Haveria um burburinho quase adolescente e uma troca de possibilidades. Concluiu que a amizade não estava aí, nessa dimensão feliz das confidências. Seria preciso manter o confronto, para que ambas conseguissem regressar ao um estado normalizado de serem uma na outra aquilo que sempre tinham sido.

 

Carlota fechou os olhos e suspirou. Disse:

 

Vamos ficar mal, uma com a outra, por causa do teu irmão?

 

Tu não conheces a peça.

 

Não. Tens razão. E agradeço a tua sms.

 

Tinha de te avisar.

 

Bolas, Carmen, pegavas no telemóvel, dizias qualquer coisa na festa...

 

Desculpa.

 

Não faz mal.

  

Carmen tentou explicar à amiga. Tinha recordações antigas e essas surgiram com facilidade. Carlota percebeu de imediato que havia ali uma competição: superar o Martim era o jogo solitário de Carmen desde miúda. Não gostava daquele lado imprevisível, sempre fora controlada; não apreciava a facilidade com que Martim se livrara de todas as chatices e trabalhos, ela trabalhava que nem uma louca; não percebia as opções de vida do irmão, culpava-o de viver uma vida boa sem mérito, baseado apenas na presunção de que ela era, implicitamente, melhor. Carlota percebeu tudo. E manteve-se em silêncio.

Quando chegou a casa da mãe, Laura fingia dormir no sofá, Jaime estava sentado na poltrona, a televisão sem som. Paulo fez-lhe um gesto quase imperceptível, um código entre eles que era claro: precisavam de conversar. A varanda do quarto de Laura era o local mais seguro e ambos o sabiam. Paulo abriu a varanda e puxou de um cigarro. Jaime olhou-o e conseguiu conter-se para não perguntar em voz alta, para não desatar aos berros a exigir uma explicação para aquela vivência caótica da mãe, como se tivesse sido, em qualquer altura da vida, de outra forma.
 

O que queres que te diga? Tem uma depressão. E o tipo foi-se embora.

 

E não me dizias nada?

 

Jaime, as coisas entre nós, a mãe e eu, são sempre mais complicadas e não quis que te...

 

Ah, poupavas-me.

 

Pois, Jaime, é o que faço desde que existes.

 

Obrigado por mo recordares.

 

Não é isso. Tu sabes.

 

Não, Paulo, não sei.

 

A nossa mãe tem problemas. Será sempre um problema.

 

Mas tu vais ajudar?

 

Claro.

 

Martim gostava da ideia de se saber mais do que outros. O mais inteligente, o mais sábio, o mais. O comparativo de superioridade era-lhe essencial. Acreditava que o facto de projectar uma imagem de vencedor lhe permitia viver assim, de jogo em jogo, recolhendo as fichas, encaixando sucessos, validando-se através da miséria dos outros. Os outros com tanta coisa que falha. A conversa cansada das mulheres sempre cansadas. Os traumas de infância deste e daquele. As fobias e as doenças, nunca esquecer as doenças.

  

Martim tinha-se preparado para ser um super herói sem questões. Tratava-se de ser a personagem principal do seu filme.

Carlota não era mais do que uma mulher numa noite. Era-lhe indiferente para lá do prazer ou da sedução. Incapaz de se comprometer, Martim nunca amara ninguém. O ódio era-lhe mais conveniente e isso podia agradecer ao pai e à mãe. À traição do pai e da mãe.

A memória é mestre nos enganos. Ao longo dos anos, Martim testemunhou branqueamentos, esquecimentos, lapsos de histórias, reconstruções. Aprendeu a detectar omissões e mentiras teria uns cinco anos. Foi quando ouviu, por acidente, sem ter essa intenção, a conversa que mudaria a forma de ver o dia seguinte.

 

Ele nunca saberá.

 

Não acho uma decisão acertada. Não temos...

 

Desculpe, sou mãe dele e não há mais conversas.

 

Maria Luísa, por favor, seja razoável. Não há uma única fotografia dele em bebé, da gravidez.

 

Existem as da Carmen, podemos sempre mentir, por favor...

 

O Martim vai descobrir.

 

Não tem como.

 

Martim dispôs-se a compreender. Apesar dos poucos anos, iria fazer seis, diziam que seria passar o verão, e ele teria idade para ir para a escola. Os sonhos com outra casa pareceram-lhe exactos. Não eram construções. Ele não pertencia àquela espaço. Tivera outro colo e havia ainda a lembrança ténue de um sorriso que se abria e partia numa gargalhada, o corpo dele a voar para cair nos braços de alguém.

 

Quando a melhor defesa é o ataque

 

Os pais de Martim e de Carmen era, assim, pais biológicos dela, pais adoptivos dele e o mundo não sabia. O facto de ter descoberto a mentira com seis anos de idade fez com que Martim se tornasse, no mínimo, uma criança difícil. Estava zangado e não entendia, queria que lhe explicassem e ninguém o fazia. Era agressivo e fazia exactamente o contrário lhe pediam. Quando tinha ocasião destruía as coisas da irmã, Carmen, e batia-lhe. A miúda ficava a vê-lo arrancar cabelos às bonecas e não percebia como é que a mãe não o castigava. Martim atacou tudo e todos até chegar à suprema arrogância de optar pela indiferença.

...

Patrícia Reis, 15.12.15

Onde a ironia toma conta; Laura compensa o vazio; os recados estão pela casa; o silêncio é a solução

 

Paulo podia ligar a Carmen mas para isso seria preciso ter o número de telemóvel da ex namorada do irmão, a ex namorada de um período longo, mesmo muito longo. Mas ele preferira ignorá-la. Maldizê-la. Não quis ver nada de bom em Carmen e, de ressaca, incapaz de dormir, bebendo cafés duplos na pastelaria do costume, a tentar acertar quantas consultas podia desmarcar, sentiu-se infantil. Precisava de saber o número daquela mulher.

Jaime tinha dois dias de férias. Estavam marcados há muito tempo. Deitara-se tarde, andara por aí e, pelas duas da tarde, tomou duche e decidiu que precisava de ver a mãe. Não havia nenhuma razão. Geralmente, visitava-a ao sábado, uma vez por mês. Não era muito, não era pouco, era o possível. Paulo raramente ia. Falavam ao telemóvel, explicava-lhe o irmão como se fosse natural. Jaime sabia que Laura lhe tinha falhado há muito tempo – porventura falhara aos dois, mas Jaime preferia não o entender assim. Estacionou a dois quarteirões da casa da mãe.

Laura não estava preparada para nenhuma visita. Não era sábado. A casa estava a desfazer-se, os dois gatos miavam à volta da tijela de água. O cabelo estava por lavar. O odor que saía dela era algo incompatível com a ideia que se tem de uma mãe. Jaime olhou à volta e percebeu várias coisas. O terceiro marido não vivia ali. Por todo o lado, em vários móveis, estão fixos post it com frases como

 

Comer

 

Lavar os dentes

 

Dar de comer aos gatos

 

Sábado Jaime

 

Era o caos. Laura tentou não olhar o filho mais novo, apressou-se a retirar algo de cima do sofá, um monte de coisas que Jaime não entendeu o que eram. Entre eles o espaço para palavras tinha sido eliminado. Incapazes de dizer. Confuso, Jaime deu água aos gatos. Tirou o casaco e começou a arrumar. Não sabia o destino da maioria das coisas e esse desentendimento com o mundo da mãe, levou-o a um caos ainda maior: cada gaveta era uma surpresa, um susto. Um cheiro repugnante vinha de algures. Laura manteve-se no sofá e, por momentos, fez-se adormecer.

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 09.12.15

Onde a ambição é a hipótese real; vencer a família é o ponto de ordem; Paulo faz as perguntas; Carmen se esconde num casulo de fruta; Jaime se perde na desistência; o dia seguinte é o cliché do costume até...; há um amanhã

 

Carlota pensava o mesmo. Estavam de acordo sem o saberem. Apesar daquela coisa entalada entre os dentes – seria alface? Um pedaço de um charuto? -, Martim tinha algo que lhe agradava sobremaneira. Talvez fosse a ambição assumida. Lembrou-se de algumas histórias que Carmen tinha contado. Talvez fossem exagero. Ou ciúme. Carmen não podia conviver com um irmão com sucesso, teria de o superar e ela, como se sabe, não tem ambição para tanto.

Paulo teria de discordar. A ambição de Carmen – na perspectiva de profissional de saúde mental – estava focada apenas numa perspectiva da vida: emocional. Carmen queria superar todos os fantasmas, esquecer o impacto do irmão, a sua figura sempre vencedora, e provar-se que, como tantas outras mulheres, o amor da mãe e do pai era dispensável. Carmen queria vencer e sobre isso foi discorrendo enquanto bebiam bellinis de pêssego, escolha sui generis, que Paulo não entendeu ter sido possível. Ela falava calmamente.

 

Desculpa, Carmen, mas a família é assim tão importante? Não és uma adolescente.

 

Sou. É estúpido dizer que sim, mas sou. Depois da minha avó ter morrido, a porta ficou semi-aberta. Só me restam os meus pais e o meu irmão, só eles é que podem testemunhar que venci.

 

É uma forma derrotista de colocar as coisas? És tu a fazeres um papel trágico? Ou de diva?

 

Partimos para as ofensas?

 

São perguntas.

 

As perguntas ofendem, Paulo.

 

A cabeça estava entornada com álcool. Queria fumar cigarros, ela que não fumava, queria falar mais sobre as maldades da mãe, a sua coleção de anéis comprados a prestações, sobre as piroseiras do irmão que continuava a levar mulheres para dormir na casa de Coimbra como se a casa da avó, agora fechada, fosse uma pensão. Estava disposta a despir-se para aquele Paulo tão sério e engravatado, tão profissional, tão pouco bebido.

 

A noite podia seguir longa, desmultiplicada, espelho das realidades de todos eles. Ficava o silêncio de Jaime, um homem sem festa, companhia ou possibilidade de reconciliação com o irmão. O que os afastava não era uma mulher, Carmen ou Carlota. Não, era a mãe, era a estranheza da mãe que um aceitava e o outro repudiava, embora inconsciente. Seria uma falha? Talvez um cansaço, desistência.

 

Carlota acordou na cama de Martim e quase teve vontade de rir. Os lençóis eram de cetim, pirosos, cinzentos quase prata escuros. O corpo dele mantinha o ritmo da respiração profunda de quem bebeu de mais, ou seja, o corpo inteiro ressonava. Carlota voltou a conter o riso e saiu da cama sem se preocupar com potenciais ruídos. Pegou no telemóvel e tinha uma sms de Carmen

 

Espero que a tua noite tenha sido tão boa quanto a minha. Fica o aviso: não há pior do que o meu irmão.

 

Carlota tinha publicado no Instagram algumas fotografias, semi desfocadas, dos diferentes bellinis que tinha bebido. Guardara uma fotografia de Paulo, havia um certo sorriso no seu rosto, algo que lhe parecia familiar, aquela genética que a levava a recordar certos momentos com Jaime. Não tinham dormido juntos. Estavam demasiados bebidos, Paulo mandara vir um táxi e tinha-a deixado à porta de casa, dizendo

 

Ficas bem, Carmen?

 

Liga-me amanhã. Informo-te.