Itália está a sofrer uma praga bíblica.
Será que podemos observar em Itália o que vai acontecer em Portugal daqui a algum tempo?
Os detalhes são demolidores e dei por mim a lembrar-me das maravilhas de Roma, cidade que visitei com alguma frequência nos últimos anos.
Não pretendo concorrer com os livros de viagens que descrevem os locais onde se tiram as melhores fotos para partilhar, mas apenas colocar por escrito memórias da cidade eterna, um sítio único.
Visitei Roma pela primeira vez de carro, vindo de Portugal. Curva após curva, dia após dia, depósito de combustível após depósito de combustível, fronteira após fronteira, lá cheguei.
O tempo era pouco e segui para o clássicos dos clássicos. Fui para a fila visitar o Museu do Vaticano. Acabei por não ver o Papa, e assim, recriar o velho ditado. Senti-me exactamente como se tivesse ido a Roma e não tivesse visto o dito.
Mas vi a imensidão de mármores e a incrível concentração de arte e de materiais nobres e raros em tão reduzido espaço. Não me foi automático mas foi possível desligar o interruptor que faz disparar as perguntas entre a mensagem da Igreja e tamanha ostentação. Graças a isso fiquei encantado com tanta beleza. A estética está associada à qualidade, à contemplação e será uma das faces de uma plenitude que ali procuraram construir.
Martinho Lutero não conseguiu desligar esse interruptor e meteu a Europa num sarilho ainda maior que o do covid-19.
Esta riqueza obscena da Igreja contrastou absolutamente com uma outra viagem a Roma em que consegui arranjar umas horas para usufruto pessoal.
Da Via Appia moderna até à Via Appia Antica a distância não é muita. Palmilhei a Antica milha a milha (a cada mil passos encontramos um marco miliário) em direcção às catacumbas da Igreja perseguida.
No tempo de Nero, no início do cristianismo, a mensagem desta nova religião antagonizava com os cânones do império, e era por isso perseguida. Todos os seus membros viviam em modo de sobrevivência, tendo alguns acabado no Circo entregues às feras.
As práticas funerárias romanas baseavam-se na cremação dos corpos e o facto de ali, nas catacumbas, se fazerem sepulturas incomodava os romanos, tornando-os por isso locais razoavelmente seguros para reunião e refúgio.
Antes de lá chegar encontra-se a Igreja de Santa Maria das Plantas mais conhecida por Domine Quo Vadis. Segundo a tradição cristã, São Pedro após a ressurreição de Cristo seguiu para Roma para evangelizar a capital do Império.
Terá sido aqui que um dia, em fuga para as catacumbas, se terá cruzado com Cristo que seguia no sentido de Roma. Perguntou-lhe: Onde vais Senhor? Domine Quo Vadis, em latim. Jesus respondeu-lhe que ia para Roma para voltar a ser crucificado. Então Pedro terá entendido que não podia voltar a negar a sua fé e terá regressado a Roma, onde foi capturado e crucificado. A pedra que Jesus terá pisado nesta aparição ficou marcada pelos seus pés e no chão desta pequena Igreja encontra-se uma réplica dessa pedra. De relance parece que tinha pé chato.
Pedro, por achar que não era digno de morrer como Cristo, pediu para ser crucificado de cabeça para baixo. O seu pedido foi aceite e isso explica as imagens associadas à sua morte, numa cruz invertida.
Ainda segundo a tradição, os carrascos de Pedro ter-lhe-ão cortado os pés para o descerem da cruz. Os seus restos mortais, que agora se encontram junto das sepulturas dos papas no Vaticano, terão sido identificados de entre outros exactamente pela falta dos pés.
Esta história inspirou o romance com o mesmo nome do nobelizado Henryk Sienkiewicz, que mereceu um busto seu dentro da capela. Ao lado do altar existe também uma imagem do português Santo António que os italianos apelidam de Pádua.
Regressemos à Via Appia Antica. A partir desta pequena igreja em poucos minutos a pé, chega-se às Catacumbas. São várias. Visitei as de São Calisto.
Lembrando a visita às riquezas do Vaticano, o contraste é total e absoluto. Não parece ser coisa da mesma religião. A Igreja das catacumbas é a Igreja perseguida, das práticas secretas, das celebrações para grupos pequenos, das sepulturas dos corpos de quem acreditava na vida depois da morte. Aqui foram sepultados os primeiros papas, cujos restos mortais só mais tarde foram transladados para o Vaticano.
No dia da minha visita celebrava-se ali uma missa, em francês, num espaço de poucos metros quadrados, que constitui a maior capela de todo aquele sistema de túneis de mais de 15 quilómetros. Ali, o espaço exíguo, a penumbra e o silêncio convidam a um recolhimento impossível junto das inúmeras e maravilhosas obras de arte da Cidade do Vaticano.
Vários séculos mais tarde, quando o Cristianismo deixou de ser uma religião perseguida, as catacumbas foram abandonadas como local de culto. Ocorreram algumas derrocadas e foram pontualmente ocupadas por fugidos à justiça e também vandalizadas.
Continuando pela Via Appia Antica para sul, os monumentos seguem-se e coexistem vizinhanças com muitos séculos de diferença. Mausoléus funerários de importantes figuras romanas quase ao lado de um restaurante ou de uma hospedaria. O slogan das autoridades romanas para este espaço é: Una strada, tante storie.
Vou tentar continuar a pôr por escrito mais notas sobre a cidade eterna que hoje vive apenas mais uma das inúmeras crises por que passou ao longo da história.