Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Pessoa

José Meireles Graça, 18.03.23

Andei durante bastante tempo a ler a monumental biografia de Pessoa por Richard Zenith e entretanto tomei conhecimento no blogue Malomil da polémica em torno dela e do confronto com a outra (O Super-Camões), de João Pedro Jorge.

Inclino-me a pensar que Zenith é um bom pilha-galinhas de ideias, baseado estritamente no que António Araújo e JPG dizem, não em conhecimentos sobre os arcanos da vida e obra pessoanas e de seus estudiosos, que não tenho. António, por sua vez, levou para o Expresso a defesa que fez do seu camarada naquele blogue, o que parece estar na origem do seu saneamento.

Excepto o último ponto, nada disto me impressionou muito. Polémicas de literatos são tradicionalmente acres e dar razão a Fulano e não Beltrano, num assunto destes, é mais questão para dirimir por peritos – os leigos aderem às razões do que é mais convincente.

De resto, quem apreciar polémicas pode ir às de Camilo. Existe pelo menos uma recolha, de Alexandre Cabral, em vários volumes, que é uma barrigada de riso garantida.

Agora, um tipo ser escorraçado de um jornal por delito de opinião, não sendo original (a Alberto Gonçalves já aconteceu o mesmo por ser alegadamente reaccionário, e a alguns outros pelas mais variadas razões) é surpreendente em se tratando do Expresso. Este é o melhor espelho do regime, o que implica no caso que costuma fingir que é isento e independente (não é uma coisa nem outra), donde não se percebe nem a gravidade do que António Araújo disse nem o inusitado da reacção.

Adiante, que isso tudo (a polémica, o saneamento) é lá coisa do aquário lisboeta, e eu daquele jornal leio três ou quatro colunas de opinião, o resto que se dane.

Sucede que Pessoa está no meu escassamente povoado altar, onde aliás é o único poeta. E quem, como eu, jamais leu um livro de poesia de cabo a rabo, por gostar sobretudo de prosa, pode bem ver uma poesia dele por dia (até no Facebook isso é possível) e tropeçará decerto mais tarde ou mais cedo na melhor coisa que já foi escrita sobre a infância, o passado, o presente e a alma, seja lá isso o que for, que todos temos.

E então a biografia, que tal? O autor encantou-me, logo na introdução, com a boutade de que os quatro maiores poetas portugueses do séc. XX seriam Fernando Pessoa e os seus três principais heterónimos (cito de cor, foi mais ou menos isto); e aparentemente na vida de Pessoa nenhuma pedra fica por levantar, nenhum amigo por nomear, nenhum lugar por identificar, nenhuma relação familiar sem esclarecimento e nenhum pormenor da vida íntima, das toilettes, dos hábitos, por esclarecer.

É um monumento e não lamento, antes estou grato, pelas muitas horas que pude passar na companhia de Pessoa.

A Natureza, porém, fez-me implicativo. E como o autor se aventura por caminhos que se me afiguram controversos, vou já dizendo que há em todo o livro uma obsessão com sexo que me parece dispensável. Richard Zenith cita recorrentemente (até obsessivamente) dois ou três poemas homoeróticos, e a amizade com António Botto, bem como a inconseguida relação com Ofélia, como provas, entre outras, das pulsões homossexuais de Pessoa, e em tudo vê indícios da sua sexualidade ambígua. Conclui com óbvio desgosto, porém, que tudo leva a crer que nunca traduziu essas alegadas pulsões em actos e que, tudo somado, o que se pode dizer é que Pessoa morreu virgem e seria, em termos práticos, assexuado.

Isto leva-a a desconsiderar sumariamente uma entrevista em que quem era suposto saber contava que Pessoa frequentava discreta e assiduamente um bordel, testemunho que João Pedro Jorge não descarta.

O autor é americano, o que aliás conta para a difusão da obra e da figura de Pessoa – as coisas são o que são. E não se subtrai, a meu ver, à obsessão que demasiados naturais daquele país têm com questões ligadas à sexualidade. Diz a certo ponto que Pessoa foi exposto muito cedo à língua e à literatura inglesas (e americana) e que isso o influenciou decisivamente; e que se a sua família tivesse tido meios para o mandar estudar numa universidade inglesa teria sido provavelmente um académico e crítico ilustre, mas não o poeta universal que veio a ser.

Ambos os pontos são razoáveis e bem defendidos. Agora, achar que o seu perfil sexual, fosse qual fosse, é factor determinante na genialidade da sua obra, deixando implícito que se fosse heterossexual pai de família não teria atingido as esferas a que chegou – come on, é o caso de dizer.

Opinião sumária, a minha? Decerto. Mas o livro é carote (30 €, na versão que escolhi), tenho direito.