A ferida no ego
Creio que foi a Iniciativa Liberal que trouxe para o espaço público, já há bastante tempo, a constatação melancólica de que na hierarquia do desenvolvimento Portugal estava a ser ultrapassado em produto por cabeça, expresso em paridades de poder de compra, por países da antiga Cortina (que, para este efeito, o jornalismo costuma designar como da Europa de Leste, embora fiquem na Central. Centros da Europa há muitos, consoante os critérios, mas os mais consensuais são na Lituânia, República Checa ou Polónia, coincidentemente dois dos países que já nos ultrapassaram e outro que assim fará).
A ideia fez o seu caminho e como é normal reapareceu na corrente campanha. Um dos bordões do PS, de que Centeno fez um uso liberal antes de ser substituído por outros aguadeiros, é o do crescimento acima da média, e Costa, que deve recitar ao espelho meia dúzia de números que lhe incutem no bestunto, tem esse sempre presente. A média europeia, essa, é puxada para baixo pelo desempenho medíocre da Alemanha, Itália e França, economias que têm um peso enorme e cuja comparação connosco é pouco útil; e quem tem, como nós, problemas de atraso para resolver diz-nos adeus.
De resto, é praticamente impossível, qualquer que seja o assunto, todos os indicadores serem maus, e a esquerda em geral, e o PS em particular, especializaram-se há muito em selecionar os lisonjeiros para papaguear: tal país cresce muito, é? Pois a desigualdade ainda cresce mais; a dívida pública líquida cresceu, foi? Mas a ilíquida diminuiu em relação há três meses, ou um ano, ou o que der jeito; há fome na Venezuela? Que exagero, os índices de colesterol na população dos maiores de 50 anos são dos melhores do mundo; continuamos a ter emigrantes e a população está a diminuir? Ora bem, isso nada tem a ver com a emigração do passado, actualmente são jovens formados que são bem a prova de que valeu a pena o grande investimento na educação e afastam aquela imagem deprimente que havia dos portugueses dos bidonvilles; e há países que estavam muito atrás de nós e que agora nos dizem tchau? É por causa da história, disse Costa a Rio no debate porque o focus-group ainda não tinha lido este tipo, que fez um catálogo completo de desculpas, ou Costa ainda não tinha memorizado. É pela educação, disse o intelectual Pacheco a Lobo Xavier no último “O Princípio da Incerteza”, como causa de fundo, e de Passos Coelho como causa próxima (Passos teve uma grande presença naquele programa porque Pacheco esteve seriamente doente entre 2011 e 2015, ano em que a sua passite passou a crónica).
É provável que este assunto, o do relativo atraso, não se vá embora, qualquer que seja o resultado das eleições, seja porque não haverá um governo dito de direita seja porque haverá mas sem força e, provavelmente, também sem convicção. De modo que esta ferida no nosso ego colectivo sarar é que não vai.
Vamos portanto desentendermo-nos. E como o assunto é sobretudo economia é bom ver o que diz a esquerda demente porque uma parte do argumentário será recuperada pela esquerda charneira, razão pela qual vou comentar o que diz o moço acima referido, que dá aulas (!) de economia. Por comodidade, transcrevo em itálico parte do que escreve.
Na UE, todos os novos Estados membros passaram por um período de rápido crescimento económico nos anos que se seguiram à integração. Tal deve-se a três motivos principais: a abundância de fundos de coesão, a liberalização dos movimentos financeiros internacionais e os fluxos de investimento estrangeiro (que exploram as novas oportunidades de investimento e de produção a baixos custos).
Isto aconteceu também a Portugal na década e meia que se seguiu à entrada na então CEE, em 1986. A este nível, Portugal não compara nada mal com os oito países da Europa de Leste que aderiram à UE em 2004: destes, só a Polónia teve uma taxa anual de crescimento superior à portuguesa nos 15 anos posteriores à integração europeia. Quem julga que os elevados ritmos de crescimento dos países de Leste se vão manter ad eaternum enquanto a economia portuguesa estagna não presta muita atenção à história do crescimento económico.
Sem ir conferir (nem isto nem o resto dos factos alegados), a conclusão lógica é que todos estes países irão em devido tempo ter o nosso desempenho medíocre. O que implica uma espécie de condenação: os países ordenam-se segundo um arranjo imutável tributário de factores geoestratégicos e culturais e crescem a partir de uma base baixa e depois estagnam. A tese é infirmada, sem sair da EU e sem ir buscar exemplos antigos, pela Irlanda.
Qualquer explicação para o crescimento económico que se baseia num único factor é de desconfiar – se assim fosse, os economistas não andavam há 250 anos a tentar compreender o fenómeno. Neste caso concreto, a explicação apresentada esquece alguns dos elementos essenciais.
A ideia de que os países de Leste tinham menos condições do que Portugal para crescer é simplesmente errada. Se há coisa que se sabe sobre o crescimento económico é que este tende a beneficiar muito das qualificações das pessoas – e os países de Leste têm desde há muitas décadas os níveis mais elevados de educação entre as nações europeias.
Outro facto bem conhecido dos processos de crescimento diz respeito à importância do perfil de especialização dos países. E, ao contrário do que muitos sugerem, as economias que mais têm crescido no Leste europeu não eram pouco desenvolvidas: uma década antes de aderirem à UE (ou seja, quando ainda estavam na transição para o capitalismo), países como a Estónia, a Eslovénia, a República Checa, a Eslováquia e a Polónia tinham já um perfil de exportação mais sofisticado do que o de Portugal.
Subscrevo o primeiro parágrafo, mas o resto do texto infirma-o porque nenhuma opinião liberal na matéria se baseia num único factor (a menos que se queira entender que a liberdade económica é um factor e não um conjunto deles). Nem a liberdade económica é um factor nem o dirigismo económico porque ambos os conceitos assentam num conjunto de políticas, com graus muitíssimo variáveis, no passado e no presente. Isto ao mesmo tempo que o bom do Paes atribui aqui à educação o mesmo papel que o celebrado Pacheco: os países crescem se educados. Mas como já eram educados “há muitas décadas” e não cresciam a conclusão lógica é que a educação, por si só, não produz crescimento. Do que Portugal é um bom exemplo: dantes exportávamos cavadores e pedreiros e agora dentistas, arquitectos e enfermeiros.
Às vantagens na educação e ao perfil de especialização, alguns países do Leste somam a proximidade histórica e geográfica a economias muito mais avançadas, de cuja força tendem a beneficiar. Os casos mais óbvios são a República Checa (que se tornou uma extensão da indústria transformadora alemã) e a Estónia (que se tornou um prolongamento da economia finlandesa).
Cada país é um caso, e todos têm vantagens e desvantagens. Acaso a República Checa não se pode queixar de não ter mar? E a Lituânia, de gelar no Inverno? A nossa situação geográfica, o nosso clima, os nossos portos, o tráfico que passa ao longo das nossas costas, não são vantagens? O que Paes faz é inventar um catálogo de desculpas para o atraso, como fazem os comunistas com Cuba: ah que se não fosse o “bloqueio” (aspo porque não o é, os americanos não impedem outras nações de comerciar com Cuba) aquilo ia ser um desenvolvimento que só visto. Pois se até são muito educados e de esquerda!
Os partidos da direita acreditam tanto que o fraco crescimento relativo de Portugal se deve à “falta de liberdade económica” que a sua receita para o crescimento é pouco mais o que baixar os impostos, reduzir os custos de contexto e esperar que chova. O pressuposto é de que o crescimento depende do investimento privado e que o investimento privado depende dos custos de fazer negócios – custos fiscais, laborais, administrativos e outros.
Esperar que chova não, esperar que as pessoas façam o que sempre fazem, que é reagir ao estímulo da sua ambição e do seu egoísmo, sim. A desprezível ambição de enriquecer e o egoísmo de não ver a maior parte dos ganhos e bens ser pilhada por impostos, impedindo a acumulação de capital.
É óbvio que nenhuma economia atrai investimento se as condições de fazer negócios forem miseráveis. Mas essa não é a situação de Portugal. Em nenhum dos domínios referidos Portugal apresenta indicadores muito distintos da média europeia. O conhecimento existente não nos permite afirmar que a redução dos impostos traria mais crescimento. Quanto à redução dos salários ainda menos: o seu impacto na procura interna seria imediato, enquanto o seu efeito na competitividade da maioria dos sectores exportadores seria residual.
Os indicadores precisam de ser “muito distintos da média europeia” porque jamais se atingirá a média fazendo a mesma coisa que fazem os que não têm o nosso atraso atávico (desde o séc. XVIII, salvo erro, Paes faria bem em consultar o que na matéria diz o colega Nuno Palma e, de caminho, estudar o nosso milagre económico dos anos 60, onde a convergência era, sem ajudas, vertiginosa).
É possível e necessário melhorar muitos aspectos que afectam a vida das empresas: os custos da energia, alguma burocracia excessiva, a lentidão da justiça, entre outros. Mas estes problemas estão identificados há muito tempo e têm vindo a melhorar. Exija-se que melhorem ainda mais, claro, mas não se espere que venha daqui um salto qualitativo da economia portuguesa.
Eu, ao contrário de Paes, sempre vivi na economia que produz bens e não perdigotos, e garanto: esses problemas que diz que têm vindo a melhorar têm vindo a piorar, e muito, no plano fiscal, regulamentar, da Justiça, do sistema bancário e outros – uma pequena empresa hoje é uma entidade onde mora o Estado em todos os desvãos e uma mole de polícias, todos com certezas de como se devem dirigir as empresas que nunca fundaram mas se devem esfarrapar para lhes garantir o passadio a que se julgam com direito via impostos, manu militari.
Os principais entraves ao crescimento económico em Portugal são, em primeiro lugar, o perfil de especialização produtiva (baseado em actividades de baixo valor acrescentado e que enfrentam fortes pressões da concorrência externa) e, em segundo lugar, o elevado endividamento externo (que leva a que uma parte importante dos rendimentos gerados todos os anos seja canalizado para o exterior). Em quaisquer circunstâncias, seria sempre difícil ultrapassar estes obstáculos. No contexto português actual, estas dificuldades são acrescidas pelo facto de o país não dispor de instrumentos de política económica que outros usaram no passado – como a política monetária e cambial ou a política de comércio externo – estando o uso de outros instrumentos muito limitado pelas regras da UE (como a política orçamental, as empresas públicas ou as compras públicas).
Paes Mamede a ministro da Economia, já. Que ele tira o país da EU e, com um grupo de amigos empreendedores apoiados pelo Estado, lança 17 empresas que serão, a prazo, líderes europeus no ramo. Que os actuais empreendedores portugueses são na realidade burros, como se prova por não votarem no Bloco, e os estrangeiros cegos por não se virem cá instalar.
A direita defende a redução da presença do Estado na economia, vendo-a como um problema e não como parte da solução. Também este discurso é simplista. Na verdade, o Estado está sempre presente – como produtor, regulador, comprador ou prestador de serviços – e é sempre indispensável. O que distingue a direita liberal é a noção de que o Estado deve manter uma distância higiénica das empresas privadas, limitando-se a regulá-las de forma a promover a concorrência (ou simulá-la, quando ela não pode existir). Mas a história do desenvolvimento económico mostra-nos que a mudança estrutural e o reforço das capacidades produtivas dos países exigiram sempre um Estado muito mais interventivo, contribuindo activamente para a acumulação de conhecimentos e competências, e apoiando de forma estratégica sectores que se revelavam em cada contexto mais promissores. Isto aconteceu em países com regimes políticos muito distintos, em circunstâncias históricas diversas. É esta a história da Inglaterra da dinastia Tudor, dos EUA desde a independência até hoje, da Alemanha, da Coreia do Sul, do Taiwan, da China e de tantos outros.
Ui, que altos voos historiográficos. Cada um dos exemplos não o é, diz Paes, de liberalismo de espécie alguma, nem de empreendedores, nem de fiscalidades modestas, nem de crescimentos exponenciais que depois abrandaram, nem de criatividade, nem de situações de tal modo diversas que qualquer generalização é um passo maior do que a perna. Não: estava lá o Estado e este é, como se sabe, o alfa e o ómega de todas as coisas. Mas, ó querido ensaísta, o Estado esteve sempre: antes, durante e em todos os casos de sucesso e de insucesso. E sem D. João II a gesta dos Descobrimentos talvez tivesse sido outra, mas frei Anacleto Louçã até no séc. XV, se fosse rei, haveria de orientar o reino para um buraco.
O problema de Portugal hoje não é Estado a mais nem Estado a menos. O problema é ninguém parecer saber muito bem o que fazer com o Estado e como – e aqui o problema não é só da direita. Mas isso fica para outra ocasião.
Que não vou comentar quando o estudioso se aliviar das suas cogitações. Para o peditório do asneirol costumo ser muito poupado e os assuntos da Venezuela não me interessam por aí além. Olhei para este arrazoado não porque viesse embrulhado em muitos números (um tique da classe, que os costuma usar para ilustrar preconceitos), que serão infirmados por oficiais do mesmo ofício que se deem ao trabalho, mas porque alguns argumentos fazem parte do que ouviremos enquanto nos preparamos para ser ultrapassados pela Roménia, onde a educação também era muito boa.