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Delito de Opinião

A ferida no ego

José Meireles Graça, 27.01.22

Creio que foi a Iniciativa Liberal que trouxe para o espaço público, já há bastante tempo, a constatação melancólica de que na hierarquia do desenvolvimento Portugal estava a ser ultrapassado em produto por cabeça, expresso em paridades de poder de compra, por países da antiga Cortina (que, para este efeito, o jornalismo costuma designar como da Europa de Leste, embora fiquem na Central. Centros da Europa há muitos, consoante os critérios, mas os mais consensuais são na Lituânia, República Checa ou Polónia, coincidentemente dois dos países que já nos ultrapassaram e outro que assim fará).

A ideia fez o seu caminho e como é normal reapareceu na corrente campanha. Um dos bordões do PS, de que Centeno fez um uso liberal antes de ser substituído por outros aguadeiros, é o do crescimento acima da média, e Costa, que deve recitar ao espelho meia dúzia de números que lhe incutem no bestunto, tem esse sempre presente. A média europeia, essa, é puxada para baixo pelo desempenho medíocre da Alemanha, Itália e França, economias que têm um peso enorme e cuja comparação connosco é pouco útil; e quem tem, como nós, problemas de atraso para resolver diz-nos adeus.

De resto, é praticamente impossível, qualquer que seja o assunto, todos os indicadores serem maus, e a esquerda em geral, e o PS em particular, especializaram-se há muito em selecionar os lisonjeiros para papaguear: tal país cresce muito, é? Pois a desigualdade ainda cresce mais; a dívida pública líquida cresceu, foi? Mas a ilíquida diminuiu em relação há três meses, ou um ano, ou o que der jeito; há fome na Venezuela? Que exagero, os índices de colesterol na população dos maiores de 50 anos são dos melhores do mundo; continuamos a ter emigrantes e a população está a diminuir? Ora bem, isso nada tem a ver com a emigração do passado, actualmente são jovens formados que são bem a prova de que valeu a pena o grande investimento na educação e afastam aquela imagem deprimente que havia dos portugueses dos bidonvilles; e há países que estavam muito atrás de nós e que agora nos dizem tchau? É por causa da história, disse Costa a Rio no debate porque o focus-group ainda não tinha lido este tipo, que fez um catálogo completo de desculpas, ou Costa ainda não tinha memorizado. É pela educação, disse o intelectual Pacheco a Lobo Xavier no último “O Princípio da Incerteza”, como causa de fundo, e de Passos Coelho como causa próxima (Passos teve uma grande presença naquele programa porque Pacheco esteve seriamente doente entre 2011 e 2015, ano em que a sua passite passou a crónica).

É provável que este assunto, o do relativo atraso, não se vá embora, qualquer que seja o resultado das eleições, seja porque não haverá um governo dito de direita seja porque haverá mas sem força e, provavelmente, também sem convicção. De modo que esta ferida no nosso ego colectivo sarar é que não vai.

Vamos portanto desentendermo-nos. E como o assunto é sobretudo economia é bom ver o que diz a esquerda demente porque uma parte do argumentário será recuperada pela esquerda charneira, razão pela qual vou comentar o que diz o moço acima referido, que dá aulas (!) de economia. Por comodidade, transcrevo em itálico parte do que escreve.

Na UE, todos os novos Estados membros passaram por um período de rápido crescimento económico nos anos que se seguiram à integração. Tal deve-se a três motivos principais: a abundância de fundos de coesão, a liberalização dos movimentos financeiros internacionais e os fluxos de investimento estrangeiro (que exploram as novas oportunidades de investimento e de produção a baixos custos).
Isto aconteceu também a Portugal na década e meia que se seguiu à entrada na então CEE, em 1986. A este nível, Portugal não compara nada mal com os oito países da Europa de Leste que aderiram à UE em 2004: destes, só a Polónia teve uma taxa anual de crescimento superior à portuguesa nos 15 anos posteriores à integração europeia
Quem julga que os elevados ritmos de crescimento dos países de Leste se vão manter ad eaternum enquanto a economia portuguesa estagna não presta muita atenção à história do crescimento económico. 

Sem ir conferir (nem isto nem o resto dos factos alegados), a conclusão lógica é que todos estes países irão em devido tempo ter o nosso desempenho medíocre. O que implica uma espécie de condenação: os países ordenam-se segundo um arranjo imutável tributário de factores geoestratégicos e culturais e crescem a partir de uma base baixa e depois estagnam. A tese é infirmada, sem sair da EU e sem ir buscar exemplos antigos, pela Irlanda.

Qualquer explicação para o crescimento económico que se baseia num único factor é de desconfiar – se assim fosse, os economistas não andavam há 250 anos a tentar compreender o fenómeno. Neste caso concreto, a explicação apresentada esquece alguns dos elementos essenciais.
A ideia de que os países de Leste tinham menos condições do que Portugal para crescer é simplesmente errada. Se há coisa que se sabe sobre o crescimento económico é que este tende a beneficiar muito das qualificações das pessoas – e os países de Leste têm desde há muitas décadas os níveis mais elevados de educação entre as nações europeias.
Outro facto bem conhecido dos processos de crescimento diz respeito à importância do perfil de especialização dos países. E, ao contrário do que muitos sugerem, as economias que mais têm crescido no Leste europeu não eram pouco desenvolvidas: uma década antes de aderirem à UE (ou seja, quando ainda estavam na transição para o capitalismo), países como a Estónia, a Eslovénia, a República Checa, a Eslováquia e a Polónia tinham já um perfil de exportação mais sofisticado do que o de Portugal.
 

Subscrevo o primeiro parágrafo, mas o resto do texto infirma-o porque nenhuma opinião liberal na matéria se baseia num único factor (a menos que se queira entender que a liberdade económica é um factor e não um conjunto deles). Nem a liberdade económica é um factor nem o dirigismo económico porque ambos os conceitos assentam num conjunto de políticas, com graus muitíssimo variáveis, no passado e no presente. Isto ao mesmo tempo que o bom do Paes atribui aqui à educação o mesmo papel que o celebrado Pacheco: os países crescem se educados. Mas como já eram educados “há muitas décadas” e não cresciam a conclusão lógica é que a educação, por si só, não produz crescimento. Do que Portugal é um bom exemplo: dantes exportávamos cavadores e pedreiros e agora dentistas, arquitectos e enfermeiros.

Às vantagens na educação e ao perfil de especialização, alguns países do Leste somam a proximidade histórica e geográfica a economias muito mais avançadas, de cuja força tendem a beneficiar. Os casos mais óbvios são a República Checa (que se tornou uma extensão da indústria transformadora alemã) e a Estónia (que se tornou um prolongamento da economia finlandesa). 

Cada país é um caso, e todos têm vantagens e desvantagens. Acaso a República Checa não se pode queixar de não ter mar? E a Lituânia, de gelar no Inverno? A nossa situação geográfica, o nosso clima, os nossos portos, o tráfico que passa ao longo das nossas costas, não são vantagens? O que Paes faz é inventar um catálogo de desculpas para o atraso, como fazem os comunistas com Cuba: ah que se não fosse o “bloqueio” (aspo porque não o é, os americanos não impedem outras nações de comerciar com Cuba) aquilo ia ser um desenvolvimento que só visto. Pois se até são muito educados e de esquerda!

Os partidos da direita acreditam tanto que o fraco crescimento relativo de Portugal se deve à “falta de liberdade económica” que a sua receita para o crescimento é pouco mais o que baixar os impostos, reduzir os custos de contexto e esperar que chova. O pressuposto é de que o crescimento depende do investimento privado e que o investimento privado depende dos custos de fazer negócios – custos fiscais, laborais, administrativos e outros. 

Esperar que chova não, esperar que as pessoas façam o que sempre fazem, que é reagir ao estímulo da sua ambição e do seu egoísmo, sim. A desprezível ambição de enriquecer e o egoísmo de não ver a maior parte dos ganhos e bens ser pilhada por impostos, impedindo a acumulação de capital. 

É óbvio que nenhuma economia atrai investimento se as condições de fazer negócios forem miseráveis. Mas essa não é a situação de Portugal. Em nenhum dos domínios referidos Portugal apresenta indicadores muito distintos da média europeia. O conhecimento existente não nos permite afirmar que a redução dos impostos traria mais crescimento. Quanto à redução dos salários ainda menos: o seu impacto na procura interna seria imediato, enquanto o seu efeito na competitividade da maioria dos sectores exportadores seria residual. 

Os indicadores precisam de ser “muito distintos da média europeia” porque jamais se atingirá a média fazendo a mesma coisa que fazem os que não têm o nosso atraso atávico (desde o séc. XVIII, salvo erro, Paes faria bem em consultar o que na matéria diz o colega Nuno Palma e, de caminho, estudar o nosso milagre económico dos anos 60, onde a convergência era, sem ajudas, vertiginosa). 

É possível e necessário melhorar muitos aspectos que afectam a vida das empresas: os custos da energia, alguma burocracia excessiva, a lentidão da justiça, entre outros. Mas estes problemas estão identificados há muito tempo e têm vindo a melhorar. Exija-se que melhorem ainda mais, claro, mas não se espere que venha daqui um salto qualitativo da economia portuguesa. 

Eu, ao contrário de Paes, sempre vivi na economia que produz bens e não perdigotos, e garanto: esses problemas que diz que têm vindo a melhorar têm vindo a piorar, e muito, no plano fiscal, regulamentar, da Justiça, do sistema bancário e outros – uma pequena empresa hoje é uma entidade onde mora o Estado em todos os desvãos e uma mole de polícias, todos com certezas de como se devem dirigir as empresas que nunca fundaram mas se devem esfarrapar para lhes garantir o passadio a que se julgam com direito via impostos, manu militari. 

Os principais entraves ao crescimento económico em Portugal são, em primeiro lugar, o perfil de especialização produtiva (baseado em actividades de baixo valor acrescentado e que enfrentam fortes pressões da concorrência externa) e, em segundo lugar, o elevado endividamento externo (que leva a que uma parte importante dos rendimentos gerados todos os anos seja canalizado para o exterior). Em quaisquer circunstâncias, seria sempre difícil ultrapassar estes obstáculos. No contexto português actual, estas dificuldades são acrescidas pelo facto de o país não dispor de instrumentos de política económica que outros usaram no passado – como a política monetária e cambial ou a política de comércio externo – estando o uso de outros instrumentos muito limitado pelas regras da UE (como a política orçamental, as empresas públicas ou as compras públicas). 

Paes Mamede a ministro da Economia, já. Que ele tira o país da EU e, com um grupo de amigos empreendedores apoiados pelo Estado, lança 17 empresas que serão, a prazo, líderes europeus no ramo. Que os actuais empreendedores portugueses são na realidade burros, como se prova por não votarem no Bloco, e os estrangeiros cegos por não se virem cá instalar.

A direita defende a redução da presença do Estado na economia, vendo-a como um problema e não como parte da solução. Também este discurso é simplista. Na verdade, o Estado está sempre presente – como produtor, regulador, comprador ou prestador de serviços – e é sempre indispensável. O que distingue a direita liberal é a noção de que o Estado deve manter uma distância higiénica das empresas privadas, limitando-se a regulá-las de forma a promover a concorrência (ou simulá-la, quando ela não pode existir). Mas a história do desenvolvimento económico mostra-nos que a mudança estrutural e o reforço das capacidades produtivas dos países exigiram sempre um Estado muito mais interventivo, contribuindo activamente para a acumulação de conhecimentos e competências, e apoiando de forma estratégica sectores que se revelavam em cada contexto mais promissores. Isto aconteceu em países com regimes políticos muito distintos, em circunstâncias históricas diversas. É esta a história da Inglaterra da dinastia Tudor, dos EUA desde a independência até hoje, da Alemanha, da Coreia do Sul, do Taiwan, da China e de tantos outros. 

Ui, que altos voos historiográficos. Cada um dos exemplos não o é, diz Paes, de liberalismo de espécie alguma, nem de empreendedores, nem de fiscalidades modestas, nem de crescimentos exponenciais que depois abrandaram, nem de criatividade, nem de situações de tal modo diversas que qualquer generalização é um passo maior do que a perna. Não: estava lá o Estado e este é, como se sabe, o alfa e o ómega de todas as coisas. Mas, ó querido ensaísta, o Estado esteve sempre: antes, durante e em todos os casos de sucesso e de insucesso. E sem D. João II a gesta dos Descobrimentos talvez tivesse sido outra, mas frei Anacleto Louçã até no séc. XV, se fosse rei, haveria de orientar o reino para um buraco. 

O problema de Portugal hoje não é Estado a mais nem Estado a menos. O problema é ninguém parecer saber muito bem o que fazer com o Estado e como – e aqui o problema não é só da direita. Mas isso fica para outra ocasião. 

Que não vou comentar quando o estudioso se aliviar das suas cogitações. Para o peditório do asneirol costumo ser muito poupado e os assuntos da Venezuela não me interessam por aí além. Olhei para este arrazoado não porque viesse embrulhado em muitos números (um tique da classe, que os costuma usar para ilustrar preconceitos), que serão infirmados por oficiais do mesmo ofício que se deem ao trabalho, mas porque alguns argumentos fazem parte do que ouviremos  enquanto nos preparamos para ser ultrapassados pela Roménia, onde a educação também era muito boa.

Electrotecnia para totós

José Meireles Graça, 05.03.20

Quase meio século de democracia já deveria ser suficiente para se concluir que o regime, por si, não garante desenvolvimento económico. As ditaduras também não, infelizmente – não faltam ditaduras economicamente falhadas, assim como bem-sucedidas.

Que a nossa democracia falhou, sob aquele ponto de vista, só não é evidente para quem se deixe anestesiar pelo progresso entretanto realizado, que todavia não foi suficiente para nos alterar significativamente o lugar na hierarquia da riqueza das nações, e esqueça o preço, que ainda não pagámos, a que o módico de desenvolvimento registado, e com o qual o regime todos os dias se felicita, foi obtido: maior dívida de sempre na nossa história, decapitação do capitalismo nacional tão radical que não há dinheiro privado português para deter bancos ou grandes empresas, ausência de investimento que não seja público, e deste que não seja com apoios europeus, crescimento agónico e um longo etc. E isto mesmo sob a chuva de milhões com que desde 1986 as instituições europeias nos compram a fidelidade, sobretudo a da patética classe dirigente – os dirigidos vivem na esperança do próximo aumento de dez euros e abraçam com entusiasmo o desígnio nacional, que consiste em irmos todos para empregados de mesa, camareiros ou emigrantes.

Boa parte desta evolução decorre de circunstâncias históricas, geográficas, culturais, e tem o selo da inevitabilidade; e outra de escolhas que temos vindo, e continuamos, a fazer.

Dito de outro modo: Portugal não descola da cauda da Europa porque é governado à esquerda. E é governado à esquerda porque a maior parte dos cidadãos, porque dependem directa ou indirectamente do Estado, não concebem diminui-lo, teimoso imobilismo que a opinião dos gurus da economia lisonjeia e reforça.

Gurus da economia são os economistas. E não há jornal, debate televisivo ou combate político onde não pontifiquem um ou vários dos sacerdotes da seita, quase sempre se distinguindo por um asneirol opinativo que despreza os ensinamentos da História, que ignora ou treslê, e que embrulha os raciocínios em palavreado académico onde o parti-pris partidário cripto-comuna ou social-democrata se traveste de argumento científico-matemático.

Consideremos este artigo: o autor acha que seria útil dizer bem dos serviços públicos que funcionam bem, e não compreende que se enfatize “o que de menos bom se passa nos serviços públicos portugueses”.

Ahah, isto deve querer dizer que, se um doente morre numa sala de espera, se deve realçar que isso apenas sucede a muito menos de 1% dos atendidos; que, se por uma sentença se esperar mais de dez anos, dever-se-á salientar que a maior parte dos processos leva menos tempo; que, se uma escola privada tem bons resultados e uma pública maus, isso se deve à selecção de alunos que a primeira faz, e a segunda não; e que, se há muitos assaltos num certo sítio, há muitos mais em que praticamente não há nenhuns.

Este palavreado do Portugalzinho torrãozinho de açúcar, das autoridades zelosas, do funcionalismo dedicado, tresanda a salazarismo, salvo pelo facto de que Salazar queria um Estado pequeno e forte, e esta gente pretende-o grande e fraco. O respeitinho que não há nas salas de aula, onde deveria haver, quer Mamede que exista no mundo dos crescidos. Faz sentido: meninos habituados à exigência, à disciplina e à competição, podem quando adultos reivindicar uma sociedade desigual baseada no mérito; e a igualdade de todos perante o Estado omnipresente casa bem com cidadãos veneradores, dependentes e obrigados.

Naquilo que os serviços funcionam “menos bem” os males corrigir-se-iam se não tivesse havido “duas décadas de estagnação salarial, restrições à contratação e falta de investimento público, [que] limitam a capacidade de resposta de qualquer serviço”. Ou seja, do que precisamos é de mais despesa pública e, presume-se, mais impostos.

E, já se vê, não há qualquer diferença entre a condição de funcionário público e a de trabalhador do sector privado, nem nenhuma razão objectiva para que os desempenhos respectivos sejam essencialmente diferentes.

Claro que há diferenças: se não houvesse poder-se-ia tranquilamente nacionalizar todo o sector produtivo privado, e não se notaria qualquer diferença no resultado. Mas os exemplos abundam do clamoroso falhanço em todos os lugares em que esse passo foi dado. E é precisamente por isso que a esquerda moderna passa o tempo à procura do Santo Graal: nacionalizar e impostar o mais que pode sem matar a iniciativa privada, e tentar encontrar um ponto de equilíbrio, porque é o sector privado que sustenta o público, e não o contrário.

O principal mecanismo que explica o superior desempenho do privado sobre o público é a concorrência, que impiedosamente destrói o estagnado, o ineficiente e o retrógrado; e o que leva o empreendedor a correr o risco de falhar é a perspectiva de se tornar mais rico do que a sua condição de partida, ou seja, a ambição da desigualdade.

Isto deveria ser óbvio. Mas não é. Diz o moço, com argúcia: “Para estes [actores privados], dizer mal do sector público não é um exercício de análise - é uma manobra de propaganda, com olhos postos nas oportunidades de lucro”.

Credo, lucro!, que horror! – que é mais ou menos o mesmo que um engenheiro electrotécnico querer corrente eléctrica sem diferenças de tensão.

Dá aulas de economia e é a milionésima demonstração de que quem sabe faz e quem não sabe ensina.

De graça

José Meireles Graça, 24.01.20

Ricardo Paes Mamede é um economista marcadamente de esquerda, uma contradição nos termos: se é de esquerda, em Portugal, é um engenheiro de redistribuição; a redistribuição, se pode beneficiar o consumo, não beneficia o investimento privado, a menos que houvesse mesmo assim acumulação de capital, que não há porque tanto os cidadãos com rendimentos altos como as empresas são impiedosamente pilhados; sendo de esquerda, privilegia o investimento público, a intervenção dos poderes públicos na vida económica (e na outra, já agora) e as múltiplas e sufocantes variedades de desincentivo ao empreendedorismo, à livre iniciativa e à independência do cidadão face ao Estado, que julga o alfa e o ómega de todas as coisas.

Contradição porquê? Porque definindo economista como o indivíduo que estuda os mecanismos da criação de riqueza, a simples abordagem desse assunto no pressuposto de que eleitos e nomeados têm na matéria uma clarividência que falta ao decisor individual inquina-o irremediavelmente, por grande que seja a parafernália técnica e erudita de que se rodeie o iluminado.

Os economistas, se forem de esquerda, não são economistas – são outra coisa qualquer. Não perceber isto implica aceitar como razoável a existência de economistas comunistas – um caso limite, mas que não impede floresçam, e bem apetrechados tecnicamente – como se alguma vez uma sociedade comunista pudesse resultar numa economia de bem-estar e com altas taxas de progresso material.

Não abundo no ponto – quem precisar de que se lhe o explique não está em condições de entender a explicação.

Pois bem, o simpático moço recomenda a criação de uma agência para resolver o problema de não haver uma adequada avaliação da forma como se torra o dinheiro dos contribuintes. No caso, e pela maior parte, trata-se do contribuinte estrangeiro, dado que Portugal tem o pacífico direito, que não contesto, de esbulhar. Mas já aceito mal que o único, ou sequer principal, problema dos fundos que aqui aterram seja a falta de avaliação.

Nas palavras dele: “Vários destes problemas poderiam ser resolvidos se existisse em Portugal uma entidade pública com responsabilidades específicas de avaliação, dotada de recursos e de autonomia de acção”.

Típico: o Estado gasta mal e muito, portanto do que se faz mister é gastar um pouco mais com funcionários improdutivos a fim de se gastar melhor. E, é claro, quando se constatar que o enquadramento falhou (falha sempre, a tal agência tomaria providências para se transformar numa câmara de propaganda de políticas públicas do poder do dia) a solução seria… um novo departamento.

E então, quais são os apoios para os quais se reclamam relatórios de avaliação? “Incluem-se aqui os apoios às empresas, à ciência e tecnologia, ao ensino e formação profissional, à empregabilidade, ao combate à exclusão social, ao tratamento de águas e resíduos, à descarbonização, à protecção do litoral, à modernização administrativa, às infraestruturas de transportes, a equipamentos culturais e desportivos, ao desenvolvimento local e rural, entre outros”.

Ora bem, proponho-me com grande generosidade fazer eu próprio a avaliação, válida para o passado e o futuro, destes “apoios”. Por partes:

Desde os tempos longínquos da adesão à CEE que se queimaram incontáveis milhões no apoio às empresas. Nunca ninguém explicou, nem é possível explicar, por que razão foram apoiadas umas empresas e não outras. Não é que não houvesse critérios, é que um conjunto de apparatchiks não pode avaliar, através de um projecto de investimento, senão a qualidade do próprio projecto, não o mérito do investimento. E isto para ser caridoso, isto é, para fingir que acredito que nunca houve outros factores, inconfessáveis, que fizeram parte da equação. As empresas podem ser apoiadas sim – com impostos baixos e simples, diminuindo a carga burocrática em obrigações declarativas e outras, cerceando os poderes demenciais das autoridades fiscais, e de múltiplas outras formas gerais e universais, não casuísticas. Subsídios? Não são necessários.

Sei quase nada sobre os apoios à ciência e tecnologia, mas alguma coisa sobre o meu país e a sua cultura. Não há amiguismo, promoção de estudos e investigações ocas no âmbito sobretudo das ciências sociais, profissionalização de “investigadores” que vão saltando de uns projectos inúteis para outros inconclusivos, para outros deletérios, para outros fajutos? Não? Então é deixar estar, também não devemos estar a falar de muito dinheiro.

De ensino e formação profissional estamos conversados. Que é preciso ser prodigiosamente cego para não perceber que por formação profissional se entende aquela actividade que consiste em gente que geralmente não sabe do que fala a fingir que ensina gente que finge que aprende coisas que de todo o modo não servem para nada. Existe formação profissional necessária e útil, e às vezes coincide com a que as autoridades promovem: a que surge naturalmente pela necessidade das empresas, definida por quem as lança e dirige, não por quem é incapaz de as fazer nascer e apenas sabe administrar, de paleio, o que não tem a responsabilidade de fazer sobreviver.

O apoio à empregabilidade não sei bem o que é. Formar gente com habilitações que o mercado requer? Isso é tarefa do sistema de ensino, e o artigo não é sobre o sistema de ensino. Logo, deve ser o sistema de incentivos a que as empresas empreguem gente de que realmente não precisam, ou precisam mas não contratariam sem apoios específicos. Nem vou elaborar sobre a quantidade de distorções que isto causa, desde logo no processo: gabinetes a elaborar candidaturas que podem ser aprovadas ou não, decisões arbitrárias, financiamento da concorrência desleal, etc. etc.

O resto dos meritórios propósitos listados remete para o palavreado voluntarista dos programas partidários: Combate à exclusão social? Ah, já sei, umas centenas de casas para sem-abrigo, cuja construção é adjudicada a um empreiteiro amigo. Tratamento de águas e resíduos? Percebo, subsídios a câmaras municipais para lhes sobrar dinheiro para rotundas, festarolas e pistas desertas de ciclismo. Descarbonização? Compreendo, aquelas tretas da menina Thunberg. Protecção do litoral? Estou a ver, uns molhes aqui que vão provocar erosão noutro lado, reposição de areia onde falta para que falte de onde se tirou.

Modernização administrativa, infraestruturas de transportes, equipamentos culturais e desportivos, desenvolvimento local e rural?

Em todas estas matérias do que estamos a falar é de investimento público, que o eleitorado avalia no país e na autarquia, reelegendo ou despedindo os seus pastores. E têm aqui lugar os meios de comunicação social, as oposições, os críticos (os hipercríticos, como eu, são utilíssimos, não desfazendo) e as redes sociais. Que avaliam – de graça.