Presumo que, cansados da tradição dos retratos a óleo de Presidentes da República, tenham decidido que o de Cavaco Silva devia ser a azeite.
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Presumo que, cansados da tradição dos retratos a óleo de Presidentes da República, tenham decidido que o de Cavaco Silva devia ser a azeite.
Da minha mesa de canto vejo-o entrar aprumado, digno, ainda bonito. Foi em tempos um homem lindo e muito disputado, segundo me contaram. Já perdeu o viço, mas ainda conserva o porte de quem foi tu-cá-tu-lá com reis e cardeais. Só os olhos parecem pedir desculpa à vida, como se tivesse abusado dela de alguma forma e agora saiba já ser tarde para reparar o erro. Tudo o que traz vestido é de bom gosto e qualidade, mas não têm menos de vinte anos as calças de bom corte, o blusão cor de camelo, a camisa de linho, os mocassins engraxados a preceito que já viram muitas meias-solas. Dirige-se ao balcão e pede um café e uma água. De garrafa? A voz do criado é mecânica, está quase na hora de saída. Não, não, da torneira, obrigado. A resposta sai urgente, quase em pânico, não vá o outro enganar-se e quebrar a tampa de plástico enquanto faz a pergunta sacramental. O homem encolhe os ombros, já se habituou às poupanças dos fregueses que ainda vão aparecendo. Mais nada? Obrigado, mais nada. Não se senta, fica a vaguear por ali como se esperasse alguém. De vez em quando olha em volta, para as mesas quase desertas. Algumas não foram limpas ainda - esperam o fechar das portas - e têm em cima guardanapos amarrotados, restos de pão e copos sujos. Um casal de namorados levanta-se e sai, abraçado e alheio a tudo. Deixaram na mesa metade do que pediram, bastam-se um ao outro e de pouco mais precisam como alimento. Saem sem ver ninguém: nem a mim, nem ao meu momentâneo objecto de interesse, nem ao criado que já tira o avental e avisa a mulher, pelo telemóvel, que não tarda a chegar a casa. Já a levantar-me também, não perco de vista, embora discretamente, aquela figura literária que me faz disparar a imaginação. Alguma coisa nele me lembra uma personagem de Märai, o declínio de um príncipe é sempre fascinante. E sou a única pessoa a presenciar uma das cenas mais tristes a que assisti nos últimos tempos: o meu solitário lord olha rapidamente em volta uma vez mais (baixo os olhos quando os dele passam por mim, incapaz de sustentar-lhe o olhar amargurado) e, ainda mais depressa, a caminho da porta recolhe dentro do blusão a meia tosta e o bolo que os miúdos deixaram na mesa. O que sinto? Sinto-me morrer um bocadinho, ali mesmo.
Uma porta que se abre para um corredor completamente vazio onde as paredes já tiveram cor mas que agora se limitam a acentuar a escuridão.
Portas fechadas que dão para divisões que afinal são casas, onde as camas são os quartos e os fogões as cozinhas.
Um espaço comum, ao fundo, despido de tudo, com um só banco.
Um homem sentado nesse banco segurando um prato numa mão e um garfo na outra.
A solidão desse homem que faz a sua refeição pensando talvez em algum sítio muito, muito longe.
Por instinto conduziu-o pelo braço. Olhos em frente, a furar médicos e enfermeiros naquele vaivém por entre aflitos, o que ela queria era segurá-lo pelo braço, porque a mão, aquela mão dele, estava ao contrário. Se ele imaginasse como lhe era insuportável segurá-lo pela mão, teria percebido porque teve ela de ser tão desembaraçada em tudo, para poder negar àqueles espectros de bata branca o espectáculo banal do seu pavor.
Depois, quando o chamaram e começaram a fazer-lhe perguntas ela recuou ao tempo em que era ele que as fazia. O que diz o teorema do valor intermédio de Bolzano? Ao tempo em que a sua preguiça o exasperava: Burra! E ela, rancorosa, a amaldiçoar aqueles jogos florais, o desafiava: Detesto matemática! (Se calhar o Freud - claro que o Freud - somaria dois mais dois).
Quando os espectros de bata branca, indiferentes ao passado que os fundia, lhe perguntaram: Quantos são 16 + 3? e ele respondeu 18, ela só por pudor não fez o pino, a ver se a realidade a seguia nesse movimento rotativo e se repunha. Para poderem os dois escapar dali incólumes. Ela de franja e de soquetes e ele, grande e forte, a levá-la dali pra fora. Pela mão.
Trocar todas as mulheres do mundo por ela até ao fim dos meus dias? Não queria mais nada! exclamou, ufano, enquanto escolhia, aos repelões, a roupa que a mãe lhe engomava todas as semanas. O contacto das sedas e viscoses, mas sobretudo o aprumo que lhes dava o ferro, fê-lo lembrar-se, por escassos momentos, da progenitora. E o seu rosto iluminou-se. Uma santa, a prova viva em como, com todos os seus defeitos, ele era capaz de inspirar um amor incondicional, genuíno. Suspirou. Ainda estava para nascer a mulher cuja generosidade rivalizasse com a dela.
Andam todas ao mesmo, soprou entre dentes virado para o espelho, a avaliar o perfil. Tornaram-se demasiado exigentes, sentenciou, a meia voz, já distraído das altercações da véspera pelo vinco que detectava, contrafeito, na camisa.
Despiu-se num ápice. Escolheu a branca, de colarinho inglês. Estava perfeita e ficava-lhe realmente bem. Sorriu, cúmplice, para o espelho. Às vezes bastava um olhar fugaz e retemperador sobre si próprio para recuperar o bom humor. Olhou o relógio. Se acelerar até pode ser que ainda a veja.
Passou-a, então, em revista, com vagares de gourmet. Olhos escuros, grandes, cabelo azeviche e longo, um belo traseiro. Faz mesmo o meu género. Sorriu com malícia. Olhei-a há dias como se não houvesse mais ninguém na rua e consegui impressioná-la, percebi bem. Resulta sempre. Ainda a sorrir, acaricia ligeiramente o lábio com a ponta do indicador. Adoro mulheres.
Num impulso sai para a escada, entra de rompante no elevador, pélvis ligeiramente projectada para a frente, como que a desafiar o destino. É hoje que a convido para um café.
Ao transpor a entrada daquele bar, sentiu-se despida. Já não tenho idade para isto, já não tenho idade para isto, repetia, metodicamente, obedecendo aos seus naturais impulsos autodestrutivos, tendência que conservava desde a adolescência e não tinha esperança de corrigir. Nada de contacto visual significativo com os poucos homens que não tinham companhia. Mau sinal, pensou ela já com vontade de se ir embora. Espero cinco minutos.
Em fundo ouviam-se os Sétima Legião: Hoje, num vento do norte, fogo de outra sorte, sigo para o sul, sete mares… Deixou-se embalar pelas recordações felizes que aquela canção lhe invocava enquanto se sentava a uma das mesas, procurando descontrair. Mas antes que tivesse tempo de posar a mala uma voz interpelou-a:
- Boa noite... Gabriela?
Reconheceu-lhe imediatamente a voz. Era muito sensível a vozes e esta tinha-a impressionando o bastante para desejar aquele encontro, apesar dos avisos da Marta: Mais fácil passar um camelo por um buraco de uma agulha…
Virou-se.
Ah, se ela fosse mosca! Parecia que a estava a ouvir: …ou é cromo, ou coiro, ou putanheiro.
- Olá, Sérgio, muito prazer.
Se ela fosse mosca já estaria neste momento a rebolar-se de tanto rir, a parva!.-pensou.
- Estava sentado ali atrás daquele pilar, por isso é que não me viste quando entraste. Quando cheguei era a única mesa disponível…
- Pois é, apesar de ser quarta-feira o bar encheu.
- Como?
- O bar encheu.
- O bar cresceu?
No blog e nos comentários que lhe deixava e depois nos emails e sms, por fim ao telefone parecia-lhe tão interessante…
Sentado à sua frente, a sua alma gémea blogosférica tentava quebrar o gelo, mas ela só pensava: Baixo, gordo, careca, desajeitado e ainda por cima surdo que nem uma porta! A sacana da Marta vai-se fartar de gozar à minha custa!
Já publicado aqui.
Instalou-se a vê-los. Àquela distância confortável dava para topar tudo. Tudo, sibilou rancoroso, quase ameaçador. Sentia que os conhecia como a palma das suas mãos. Afinal o convívio era diário. Depois do jantar, antes da novela, estudava-lhes com desdém a pose, a desenvoltura, a qualidade do discurso. Gostava do cinismo que lhe inspiravam. De os olhar de través e sentir a acutilância a subir-lhe das profundezas, como que a levantar fervura. Mas sobretudo o que gostava mesmo era de os tratar por tu: És um merdas!
Mas a Manela a "traquitar" na cozinha, aquele "traquitar" de panelas na cozinha entorpecia-o. E antes que a mandasse fazer pouco barulho adormeceu, de cerveja na mão e estômago, a lembrar a barriga em que um dia cresceu, apontado para o tecto. Acordou no final da novela, com a música do genérico, mesmo a horas de ir para a cama.
O pé, semi-automático, encaixa no chinelo à primeira tentativa. A terra não está firme. Ao fim de cinco horas de sono, não pode estar. Mas no Verão é pior, quando a luz a entontece, esplendorosa, à segunda-feira apenas para lhe prometer a terça, a quarta, a quinta e a sexta.
Levanta o estore. Lá fora o plátano despede folhas silencioso e conivente com a estação. Boa para despedimentos - ciciou com azedume para o vidro, que lhe respondeu num balão, como na banda desenhada. Enquanto a mancha de vapor se desfaz em lágrimas pensa nos colegas. Dez, ao todo. Número bonito, redondo, em vésperas de Natal.
Até ao final do mês vai sentir-se culpada, de cada vez que os encarar no escritório, por não ter sido incluída na tranche, sabe-se lá porquê. Jingle bells, jingle bells, que sensibilidade decidirem despachá-los quase no Natal.
Suspira, olha para o relógio e acelera. Tenho exactamente 45 minutos para mudar de pele.
É dia de as levar a passear. Novos e velhos igualam-se na abnegação com que as conduzem corredor acima, corredor abaixo, alheios às montras e àquele linguajar contínuo que os entorpece.
Caminham com um dos braços estendido, a cingir-lhes os ombros no que começou por ser uma atávica marcação de território e depois evoluiu para a mansa assumpção da convenção de que fica bem, ao domingo, passeá-las à trela pelo centro comercial.