Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Comer (11)

Sem pressa, no Clube Naval da Ericeira, onde o peixe é rei

Pedro Correia, 19.08.23

C Naval 5.jpg

Verão, para mim, é sinónimo de peixe em termos gastronómicos. Assado, cozido, estufado. Em escabeche, em caldeirada. Mas sobretudo grelhado: cherne, garoupa, robalo, dourada, sargo, solha, peixe espada - o que houver vindo da lota. Em zona balnear, de preferência. Com mar à vista.

Assim fiz, assim tenho feito, num dos meus poisos favoritos: o Clube Naval da Ericeira. Situa-se em zona adjacente ao porto de pesca da vila que tão generosamente me acolhe há um par de anos. 

Condição obrigatória: chegar cedo. Vai-se formando fila à porta, a partir do meio-dia e pouco. Ouvem-se conversas de circunstância dos frequentadores habituais, sábios conhecedores do que ali se petisca.

Impera a boa disposição. O tempo convida a relaxar.

Não é espaço para sofisticações. Nem para aquela comida da moda - com fusões, tofu, muita rúcula, muita espuma que parece ser da barba, fruta tropical misturada com leguminosas e tretas do género.

Tudo clássico, à moda antiga. Pratos do dia escritos a giz num quadro, as gaivotas rondando quase como animais domésticos.

Alargando o olhar, confirmo: aqui o mar é mais azul.

      C Naval 6.jpg Clube Naval 2.jpg

Há choco à lagareiro, sardinha assada, carapaus. Nos pratos de carne, nem reparo.

Vou para o linguado grelhado: é o que me está a apetecer. Ali ao lado os pescadores reparam as redes, secam peixes em estendais, trocam dois dedos de conversa: a faina do dia está cumprida. 

A casa já encheu. 

Vem para a mesa um jarro de vinho branco - fresco, não gelado. Como mandam as boas regras. Em sequência lógica, surge um queijinho fresco com o magnífico pão local. Confirmo: estou numa das zonas do País onde há melhor pão.

Lição fundamental à mesa em férias: mastigar bem, saborear, aproveitar cada momento prolongando o prazer de partilhar refeições sem agenda profissional para cumprir. Há quem não saiba desligar-se do ritmo laboral, sem perceber como é indispensável fazer pausas para que o trabalho renda plenamente. 

Clube Naval 1.jpg

Chega então o linguado. Vem como gosto: grelhado no ponto certo.

Em Portugal, quase todos se gabam de saber grelhar peixe. Estão profundamente equivocados: abundam os locais, alguns até com fama, em que a grelha mal calibrada ou um cozinheiro negligente secam o peixe, retirando-lhe o suco natural.

Aqui há manifesta competência nesta função: excepto as espinhas, nada se desaproveita deste elegante bicho que há menos de 24 horas nadava no oceano. Até a pele. 

Casa muito bem com as batatinhas cozidas com casca, o feijão verde que serve de complemento e a salada fresca temperada com abundante azeite, um golpe de vinagre, umas gotas de limão.

Clube Naval 3.jpg

A praia, ali a dois passos, pode esperar. A tarde é longa, há sol até depois das oito. 

Nada de pressas, como se tivéssemos todo o tempo do mundo.

Faz parte da magia do Verão: é quando mais vezes somos invadidos pela doce ilusão da eternidade. 

Hei-de voltar ao Clube Naval. Tem lugar cativo no meu roteiro gastronómico. Ponto de romagem sempre que as saudades do bom peixe apertam.

Doses fartas. A preços imbatíveis.

Por mais vezes que regresse, a conclusão é sempre a mesma: daqui nunca saio desiludido.

 

C Naval 4.jpg

Chefe Evaristo, "in memoriam"

Pedro Correia, 21.12.22

img_828x523$2021_09_02_18_49_20_285378.jpg

 

Morreu o chefe Evaristo Cardoso, que em 1974 fundou o Solar dos Presuntos - templo da gastronomia minhota no coração de Lisboa. Inesquecível, o seu cordeiro à moda de Monção. Sem esquecer o folhado de vitela, a paelha de porco preto com gambas e mexilhões e o cabrito no forno com batata assada e arroz de forno.  

Chefe em português, não em francês. Cozinheiro e empresário de restauração da mais genuína cepa nacional.

Este sim, merecia honras de Panteão.

Em Fão, no "Rita Fangueira"

jpt, 09.11.22

2.janela.jpg

(A Norte do Trancão [4])

Domingo já basto percorrido, eu feito andarilho desde a quase alvorada, entre passadiços, dunas e marés vivas, fui transportado até ao que me foi afiançado ser "referência" local, em plena Fão. A instituição em causa era o "Rita Fangueira", há pouco transitado para novas instalações, sito agora face a uma pequena praceta ribeirinha, um recanto encantador mas o qual, por si só, não suspenderia o afã crítico de amador, até porque seguia eu já esfaimado.

Começámos bem, pois apesar da hora tardia a que aportámos para almoçar a recepção foi afável, numa gentileza sorridente, mas felizmente sem pinga daquelas irritantes popularuchas familiaridades nem quaisquer ademanes altaneiros, esses que até antecipara dado que acabara de cruzar a vizinha Ofir, a qual presumi ser ainda refúgio dos descendentes daquele "dinheiro novo" do Estado Novo portuense.

Não tendo eu, nem a minha cicerone, quaisquer prosápias de analistas gastronómicos e ainda menos tendências glutonas, não procedemos a demorada análise do cardápio. E assim, amáveis clientes, acolhemos os conselhos de quem ali trabalha. Para encetar aconcheguei-me com um copo de tinto da casa, um Douro de 2019 (Fronteira) de qualidade muito mais do que aceitável para este iletrado vinícola. Desconhecedor dos costumes locais, mas de sensibilidade etnógrafa, muito notei que a taça chegou à mesa acompanhada da garrafa por encetar e de um "sirva-se, por favor", que bem entendi como um "vá-se o senhor servindo a seu gosto", modo que veio a ter o inesperado efeito de, duas horas depois, o vasilhame estar prestes a ser escorropichado, dado o alento que entretanto viera eu, a solo para aquele propósito, a receber por via dos víveres apresentados. 

O referido vinho foi inicialmente acompanhado por uma muito civilizada cobertura, saudavelmente apartada das pantagruélicas "entradas" que constam da mitografia nortenha: um par de croquetes, esquecíveis, e um outro de pastéis de bacalhau que, ao invés, justificaram a atenção. Mas o relevante foi a concisa cesta de pão, decerto que proveniente de decente padaria: algumas fatias de regueifa, na textura e sabor adequados, outras de broa e ainda outras de broa de carne, ambas assinaláveis. E tudo potenciado pelo seu acompanhamento, a extraordinária manteiga de Marinhas, um produto local digno dos maiores encómios. Ou seja, a bem dizer-se estava eu já almoçado, e bem, e ainda não haviam chegado os pratos, ali e assim verdadeiramente presigos.

6.porco.jpg

4.iscas.jpg

A nossa recatada opção recaíra sobre o prato do dia, um porco assado com castanhas, e o fígado de bovino de cebolada ("iscas", como dizemos nos Olivais e vizinhança). A minha atenção inicial incidiu sobre estas últimas - as quais estavam literalmente de "chorar por mais", e de tal forma que quase monopolizaram as minhas disponibilidades. Alguns entendidos nestas matérias propagandeiam um ideário que consagra haver uma graduação na dificuldade da confecção de alimentos e na execução das respectivas receitas. Não sei se nessas visões escolásticas as "iscas" estarão no topo mas confesso a minha surpresa, esta de perceber como um prato tão corrente - e nisso dito pouco "nobre", quiçá até "fácil" - pode ser apresentado de forma tão rara de excelsa.  Ao porco, e suas amásias castanhas, enfrentei-o já em dificuldades, até algo notórias, mas ainda assim pude constatar - e num "prato de dia" - que nos chegava exactamente como os mandamentos o ditam, sem inovações nem derrapagens. Ou seja, ambos os manjares ali estavam no estrito respeito pelos valores devidos, mas - e o que é ainda mais notável - sem quaisquer ribombos folcloristas.

10.pasteis.jpg

3.clarinha.jpg

Após isto impôs-se um breve intervalo, à esplanada na fruição de um rolo de Amber Leaf, enquanto o eficiente "colaborador" recolhia o vasto remanescente das duas opíparas "meias doses" (?), destinado a recompensar o imaginário canídeo da clientela em questão. Regressei para enfrentar a recomendada sobremesa, uma parelha advinda da confeitaria local, um excelente folhado de ovos moles de Fão, que justifica sobressair no imenso rol de artigos aparentados que a tradição conventual legou à nossa "doce pátria", e uma "Clarinha", um esplêndido pastel de gila (ou chila) também típico daquela Fão assim dulcíssima.

E desta suculenta forma terminou o repasto, que senti e recebi como excepcional. O preço desta para sempre memória? Num restaurante que me dizem renomado junto à zona de veraneio das elites económico-culturais nortenhas? Mais barato do que uma qualquer patetice italiana ou fancaria indiana na capital... 17 euros por pessoa! Algo está mal na república. E não é, garanto, em Fão.

Ao Largo da Feira

jpt, 15.07.22

Largo da Feira.jpg

Não sou muito de doces. Aliás, tenho a ideia - que me é dogma - que homem que é homem não segue dado à doçaria, a esta deixando, em risonho e justificado mansplaining, como monopólio da volúpia do belo sexo. A nós os óleos e banhas da crocante chamuça, do rústico rissol, da bacalhauzada, do entrecosto a roer. A elas - e, vá lá, aos do convento - os açúcares que amainam os espíritos. É certo, é-nos permitida, e até requerida, a mera colher de café do pudim esponsal, sinal da partilha infindável que é o amor, e mesmo a de chá na musse alheia, marca do furor lascivo do amantismo. Mas só isso...
 
Na alvorada de hoje visitei a pastelaria fina da vila. Já lá havia estado, meia dúzia de vezes, "ao pão" e café. Após uma noite insone, encetei-me, em busca de alento para o dia, com uma para mim antiquérrima dupla, a Coca-Cola e a bica. Mas tamanho era o défice próprio que lhe associei - com a impudicícia permitida pela solidão e total anonimato - um "jesuíta", bolo que terei comido com agrado na juventude impúbere.
 
E fiquei absolutamente espantado. O tal "jesuíta" é ali uma verdadeira delícia, única. Um memorável momento... E enquanto o mastigava, surpreendido, lembrei-me de que já me haviam recomendado, com fartos encómios, a pastelaria desta "Largo da Feira", em Palmela.
 
Garanto-vos, vinde ao vinho, vinde ao belo castelo panorâmico, vinde às magníficas tulipas e entremeadas do "Miradouro" virado ao (agora fustigado) Vale dos Barris. Mas passai - até para agrado das Senhoras da vossa vida - pela pastelaria "Largo da Feira" a abastecerem-se dos tais açúcares de fabrico próprio, que estes amainam mesmo os espíritos.

Coisas que as estatísticas não revelam

Paulo Sousa, 08.11.20

No domingo passado regressei a um restaurante que visito desde que a nova gerência tomou conta dele.

Na primeira visita, há pouco mais de um ano, confesso que foi com esforço que entrei naquele sitio inventado há quase uma década por alguém que do alto do seu generoso orçamento autárquico e após várias semanas a vasculhar nos recantos do seu serôdio e escasso espólio de neurónios, inventou um restaurante para “rentabilizar” as piscinas municipais, de que é anexo. Infelizmente aprender a distiguir investimento de despesa não é condição de acesso a cargos autárquicos.

Olhando apenas pelo espaço que é, e sem ninguém competente para o explorar, talvez tivesse sido viável na versão inicial do Simcity, que nos anos 80 corria em Comodore 64. Como a realidade não funciona a 8 bits, acabou por andar de mão em mão, sem nunca encontrar a fórmula certa.

Ora como não é um espaço vazio que cria um negócio, mas sim alguém que o queira e saiba preencher, foram necessários demasiados episódios até que finalmente, e depois de correr meio mundo sempre à volta dos tachos, o Chef Nuno Ribeiro chegou a Porto de Mós.

Num raio de poucos quilómetros a oferta de restauração é respeitável, mas mesmo assim e desde a primeira hora que, pela elaboração e qualidade da sua oferta, o Pescatore marcou a diferença e conquistou o seu público. Se a identidade se refere a peixe, o mote – Mar à Serra – garante oferta para todos os gostos. O estacionamento cheio foi sempre um indicador do sucesso noutras paragens e também aqui se repetiu até a filha da mãe da pandemia ter entrado em cena.

Frequentar o mais possível restaurantes honestos é uma forma nobre de contrariar os nefastos efeitos do Covid. Essa é uma luta para a qual podem contar comigo.

Foi com a fúria dessa batalha em mente que no passado domingo regressei ao Pescatore. Observar a carta exige sempre uma capacidade de escolha de impulso, pois só assim se pode abdicar de Chanfana de bocheca de porco com puré de castanhas ou de Cabrito à padeiro, por outra coisa qualquer. Abracei-me ao arroz de lingueirão, e acertei pois estava divinal.

ED5AA9BB-F02B-498D-8D05-4CB033846201.jpeg

Triste foi saber que a nossa era a segunda mesa a ser servida naquele dia.

Tendo já lançado para trás das costas a primeira vaga da pandemia, ninguém sabe o que aí vem.

Desde que os números voltaram a subir que a afluência de clientes caiu significativamente, e as medidas anunciadas pelo governo não auguram nada de bom.

Por detrás das estatísticas despejadas pela boca dos políticos e comentadores escondem-se as dores dos casos particulares, de negócios assentes em pessoas com valor e com a coragem necessária para fazerem pela vida, sem a rede que o estado dá apenas a alguns.

Não conseguiram melhor que isto?

Pedro Correia, 19.08.20

thumbnail_20200815_185206[1].jpg

 

Há muito que me espanto com a absoluta falta de talento revelada pelos nossos compatriotas quando decidem atribuir nomes aos estabelecimentos comerciais. É como se a imaginação e o bom gosto entrassem subitamente em greve por tempo ilimitado. 

Eis um exemplo: o que levará alguém a dar um nome destes a um restaurante, situado numa das artérias mais movimentadas do centro de Lagos? Sou incapaz de vos dizer se é ou não poiso recomendável. Pelo mais óbvio dos motivos: passo à distância quando encontro um charco.

Psicodrama à mesa

Pedro Correia, 18.08.20

thumbnail_20200805_124546[1].jpg

 

"Os portugueses sabem comer bem e apreciam boa comida." Oiço esta frase desde sempre e há muitos anos que a contesto.

Penso cada vez mais o contrário. E tenho a prova por estes dias. Janto num dos restaurantes que servem melhor peixe e marisco em Lagos. Fica junto à lota, os frutos do mar desembarcam praticamente do barco para a cozinha.

Aqui só como peixe, devo confessar. Apesar disso, nas mesas em redor escuto insistentes pedidos de gente a suplicar por "bitoque" e "picanha". O que me deixa estarrecido.

 

Há dois dias, um miúdo malcriado pôs-se a fazer birra, dizendo que só comia piza. Com palavrinhas doces, os pais procuravam convencê-lo que ali não havia disso: o "melhor" que se arranjava era um hambúrger.

Ao fim de muito tempo, lá acabaram num consenso: o puto acedeu mas o pai da criancinha teve de implorar por um prato "cheio de batatas fritas" para calar o palerma do filho. Que daqui a uns anos andará obeso e a competir no campeonato nacional do colesterol.

 

Enquanto este psicodrama decorria, eu degustava um petisco bem algarvio: barriga de atum, acompanhada com batata cozida e salada mista, temperada a meu gosto. Pensando: a instrução gastronómica faz parte da educação integral. Os pais que começam por falhar aqui, acabam por falhar em quase tudo.

Depois são capazes de culpar tudo e todos: o Estado, o Governo, os partidos, os políticos, sei lá o quê.

Mas a culpa é só deles - e dos péssimos exemplos que dão aos filhos.

Associativismo tuga

José Meireles Graça, 28.04.20

Há muitos anos, geria uma fábrica que se dedicava ao fabrico de móveis frigoríficos, que exportava para uma dúzia de países.

Um dia, comecei a ouvir falar do buraco de ozono e dos grandes malefícios que os gases que então se usavam em refrigeração causavam àquele precioso gás, decompondo-o.

A pressão para a substituição do gás acentuou-se e complicados procedimentos para recuperar o gás antigo e não o deixar escapar para a atmosfera, o maldito, em aparelhos velhos, foram sendo postos em prática. Entretanto, apareceram no mercado novos gases que requeriam outros compressores, outros evaporadores e outros condensadores. Tudo era mais caro e implicava investimentos, mas os móveis passaram, com orgulho, a ostentar etiquetas verdes, muito parecidas com as que a concorrência chinesa usava para o mesmo efeito sobre equipamentos com as antigas características – povo empreendedor, não queria desperdiçar os stocks que tinha, que bem os compreendia.

O problema está hoje esquecido, o buraco diminuiu consideravelmente entretanto, não sendo talvez de excluir que o ozono, ou o nível de outra porra qualquer, suba ou baixe anormalmente quando as patentes dos novos gases estiverem perto de caducar, ou quando um laboratório prestigiado vislumbrar uma tragédia ao dobrar da esquina e encontre nas seitas ecológicas eco para estas cavalgarem uma causa fresquinha.

A empresa era sócia da associação do sector. Mas já então tinha sobre o associativismo a mesma opinião que tenho hoje e, podendo sem inconvenientes de maior pôr-me ao fresco para assistir a conferências, workshops, e comparecer a confraternizações e almoçaradas, e mesmo não tendo dúvidas da grande utilidade que semelhantes convívios podiam ter para o efeito de conhecer gente com interesse para lobbying (o nome fino da cunha e do tráfico de influências), não me sobrava a paciência para ouvir teóricos da gestão, bancários, políticos, especialistas disto e daquilo e treteiros sortidos.

De modo que raramente pus os pés fosse no que fosse. Ademais, estas iniciativas do maior interesse (segundo os promotores) tinham lugar invariavelmente em Lisboa. Ora, na altura ainda não havia GPS, absolutamente necessário no meu caso por me acontecer por razões misteriosas, quando me deslocava àquela cidade por outros motivos, ir parar a Queijas.

Sucedeu que no auge da pressão para os industriais do sector se modernizarem, a tal associação enviou uma circular significando a grande necessidade, que cientificamente demonstrava com abundância de explicações, de nos livrarmos do freon, concluindo pela urgência de mudarmos (nós, os empresários) de mentalidade.

À moça que assinava o papel respondi rebatendo ponto por ponto os seus argumentos “científicos” com outros do mesmo jaez mas de fontes diferentes e antagónicas; esclarecendo que já estava a fazer as alterações necessárias, por razões estritamente comerciais; e que me recusava formalmente a permitir que me alterassem a mentalidade com a qual, à época, já convivia pacificamente há mais de três décadas.

Quando chegou a altura de renovar a pertença, declinei; e só voltei a ser sócio de uma associação (outra) muitos anos depois, numa altura em que era conveniente para ter acesso a informação que doutro modo não teria.

A Associação da Hotelaria, Restauração e Similares apresentou ao Governo, diz a SicN, uma inacreditável proposta de regras (“já validada pela ASAE”) para os restaurantes que inclui delírios como a tomada da temperatura dos clientes, a desinfecção das mãos destes, a obrigatoriedade de marcação prévia e a escolha do menu pelo telemóvel ou em tablet do estabelecimento .

Fui ver ao site para descobrir quem era esta extraordinária gente, mas não se aprende muito: a apresentação é a vulgar declaração sobre os nobres propósitos da agremiação, em prosa da escolaridade obrigatória; e as personalidades que povoam os órgãos dirigentes são naturalmente desconhecidas, mas não aparentam ser gente de avental de serviço e com familiaridade com tachos e panelas.

Vossas Senhorias não percebem o vosso papel: para estabelecer regras de saúde pública que ofendem e humilham as pessoas, ou que dão trabalho escusado, ou que implicam despesas que não seriam necessárias, ou que acrescem à carga de trabalho dos empregados, ou que limitam a quantidade de refeições que se podem servir, não é precisa uma associação: basta um grupo de burocratas qualquer da DGS capaz de copiar normas importadas de outros países, escolhidos de entre os de língua inglesa (francês não entendem e inglês também não, geralmente, mas julgam que sim) que se distingam pela minúcia da regulamentação, somar tudo, acrescentar algumas rodilhices imaginativas, salpicar com multas e fiscalizações,  e servir no legalês prolixo que o político abelhudo de serviço assina de cruz.

Uma associação empresarial, se está do lado do Estado, não está do lado certo. O lado certo é contra o Estado, no vosso caso a defender ferozmente a viabilidade dos restaurantes – os que sobrarem depois do golpe que lhes deram o medo das pessoas, as paragens compulsivas, a insuficiência dos apoios e o descalabro do turismo.

Representais os restauradores, é, anedotas tristes? Valeis ainda menos do que o advogado oficioso que ofereça, em defesa do seu cliente, o merecimento dos autos. Porque este ainda pode contar com a imparcialidade do juiz, que não tem de engolir necessariamente as fabricações do ministério público; e vós, ao Governo que diz mata!, acrescentais esfola.

Dois países dentro do País

Pedro Correia, 16.08.19

Cheguei a Coimbra a hora já tardia para o almoço, cheio de apetite. Ia com vontade de matar saudades do Zé Manel dos Ossos, mas deparei com a porta fechada: está encerrado para férias.

Virei logo ali, à Rua da Sota. Eram quase 15 horas, entrei num restaurante ainda operacional que me pareceu com bom aspecto.

- O que há? - pergunto.

- Agora já só temos o menu do dia: sopa e frango.

- Venha isso.

E veio, sem demora. Comidinha caseira, como gosto. Sopa de legumes, frango na púcara (muito bem servido). Talhada de melão à sobremesa. Um jarrinho de vinho. Mais pão (que não comi) e café (que não bebi).

Tudo incluído: sete euros e meio.

Isto na baixa de Coimbra, onde por estes dias circulam muitos turistas estrangeiros. Comprovando que, a norte de Lisboa, os preços nos restaurantes caem - por vezes vertiginosamente. Enquanto a qualidade tantas vezes aumenta.

Dois países dentro do País.

O País do trabalho sem direitos

Pedro Correia, 17.07.19

perfect-grilled-mackerel-1456790327.jpg

 

Férias no Algarve. São 18.30 quando chego a um dos meus restaurantes favoritos, sem marcação prévia. Em busca do peixe bem grelhado de que tanto gosto. 

Atende-me um empregado que bem conheço. Hoje [ontem] parece-me pouco satisfeito.

- Que se passa? - pergunto.

- Falta de folgas. Cansaço. Dias após dias sem folgar.

- Mas ontem [segunda-feira] estiveram fechados, aliás como é costume...

- Sim, mas foi o último dia. O patrão acaba de avisar-nos que durante os próximos dois meses não teremos folgas. Até 15 de Setembro estaremos sempre a funcionar.

- E vão ter alguma compensação financeira por isso?

- Nem mais um cêntimo. É pegar ou largar, disse ele.

- E ele nega-vos mesmo a folga semanal?

- Sim. Ainda tentámos que no desse meia folga, ao menos isso. Mas recusou.

 

Eis um quadro que se vai multiplicando por esse Algarve fora. Acumulam-se os clientes, acumula-se a receita, acumulam-se os lucros - e diminuem os direitos dos trabalhadores, a começar pelo mais básico: o direito ao descanso.

Até Deus, que é omnipotente, descansou ao sétimo dia. Estas entidades patronais, julgando-se num mundo em que são elas a ditar as leis, arrogam-se no direito de explorar até ao tutano quem lhes presta serviço. É o caso deste restaurante, que tem um número fixo de empregados: em vez de reforçar os quadros nos meses de maior afluência de público, adequando a oferta à procura com o recrutamento de trabalhadores temporários, estica ao máximo os recursos de que dispõe, insuficientes nesta quadra, negando-lhes contrapartidas remuneratórias ou as mais que justas folgas de compensação.

Às sete da tarde, as duas salas estão cheias e começa a formar-se fila à porta para jantar. Os empregados correm de mesa em mesa: já ao almoço ocorreu algo semelhante e terão pelo menos mais três horas seguidas neste ritmo frenético.

 

Não é difícil fazer uma estimativa perante tal afluência, multiplicando comensais diários por custo médio de refeição: a meio da semana, neste estabelecimento, já a despesa estará coberta. A partir daí, tudo é lucro. O problema é que estes patrões - que adoram intitular-se "empresários" - mostram pressa em matar a galinha dos ovos de ouro. São cada vez mais frequentes os casos de cozinheiros e empregados de mesa que, cansados de tanta exigência a tão baixo preço, procuram vias profissionais alternativas. 

Tenho um amigo, proprietário de três restaurantes em Lisboa sempre cheios, que se queixa disto mesmo:

- Eles deixam de aparecer, muitas vezes nem avisam. Temos de improvisar tudo, transferindo pessoal de um estabelecimento para outro às vezes em cima da hora de abertura.

- Porque é que vocês não lhes pagam mais? - indago.

- Eh pá, sabes, a vida está difícil para todos...

 

Segue-se o habitual rosário de queixumes da parte de quem prospera a olhos vistos mas só pretende dividir escassas migalhas desses dividendos. Em Lisboa como no Algarve.

Mesmo em férias, vou pensando: eis o País que não mora nas estatísticas nem na propaganda do "Portugal positivo". O País do lucro máximo de alguns à custa dos direitos mínimos de muitos. O País onde é possível trabalhar dois meses sem sequer meio dia de folga diária, quase em regime de servidão feudal. O País do trabalho sem direitos a que partidos que tanto invocam a "classe trabalhadora", como o BE e o PCP, fecham os olhos neste quarto ano contínuo de "geringonça".

Foi para subsidiar patrões como estes que o Governo Costa/Centeno decretou logo no início uma das medidas mais demagógicas de que há memória em anos recentes: a redução da taxa do IVA na restauração. Os restaurantes não baixaram preços nem recrutaram gente: limitaram-se a ampliar as margens de lucro. Enquanto o Estado via diminuir quase 400 milhões de euros a receita fiscal neste sector, que logo tratou de compensar por outras vias, esmifrando os do costume - nós, os contribuintes - com a maior carga tributária de sempre: 35,4% do produto interno bruto.

 

Pela primeira vez, confesso, não apreciei o peixe grelhado que comi aqui.

Ainda os animais em restaurantes

Marta Spínola, 03.03.18
Disclaimer: não me levem demasiado a sério, estou apenas num exercício de reflexão que ainda não tinha feito sobre o tema.

          ....................................

Bem sei que os projectos têm diferentes contornos, e não está em causa uma gata na mesa, um cão na cozinha. Mas é divertido pensar nos vários cenários ainda assim. 

Pergunto: quererão os mesmos lá estar? Esperar que a refeição acabe, quietos, ao lado da mesa, ou mesmo que participem recebendo bocadinhos da dita, preferirão isso a estar num espaço que lhes é familiar? E que dizer da companhia que não pediram e terão a cheirá-los, a inspeccioná-los em busca de uma amizade? Tenho muitas dúvidas que cães e gatos adorem a ideia, mas não tenho animais, não posso garantir. E não acho que tenha a ver com a educação dos mesmos, mas com a sua própria natureza. 
Além disso, conheço donos que dispensam que os seus cães estejam em sítios com outros cães, basta ver locais de férias que aceitam animais e promovem o convívio entre os mesmos: não raras vezes os donos preferem que os seus fiquem recatados no quarto. Foram de férias com eles, mas preferem mantê-los longe dos restantes animais. Num restaurante, ainda que haja uma área restrita, não será simples controlar esse convívio. 

Também penso em situações pontuais como gatos nos santos populares. Tem um lado divertido, se fosse um desenho animado, mas quantos de nós apreciarão partilhar uma sardinha com o gato do vizinho? Ou vários? Imagine-se o Castelo ou Alfama cheios de donos e gatos em noite de Santo António. Já estou cheia de pena e ainda nem começou (estou a brincar, relembro).

Na verdade, cães e gatos nem são a minha maior preocupação. Eu quero saber é se a lei abrange aquelas aves que há quem traga ao ombro, porque de papagaios e araras é que eu morro de medo. Nesses restaurantes não entro. E se tiver o azar de já lá estar, fujo. 

Sebastião, de grata memória

Pedro Correia, 11.02.18

1198678[1].jpg

 Sebastião Fernandes (1947-2018)

 

Devo esta nota a Sebastião Fernandes. Ao "senhor Sebastião" ou simplesmente Sebastião, como era assim chamado por muitos clientes que o iam acompanhando de restaurante em restaurante. Alguns desde o desaparecido Velha Goa, em Campo de Ourique - pioneiro dos estabelecimentos de comida goesa na capital, numa época em que Lisboa estava muito longe de ser o actual mostruário de gastronomia transnacional.

Na segunda metade da década de 80 fundou o Cantinho da Paz, que continua a ser lugar de romagem obrigatória para gastrónomos de diversos quadrantes. Já este século, inaugurou a Casa de Goa, de existência efémera, na Calçada das Necessidades. Nos anos mais recentes, abriu as portas do Nova Goa, entre a Avenida de Roma e o Campo Pequeno. Era lá que recebia, com a bonomia de sempre, dispensando uma palavra gentil a cada cliente.

 

Como aqui assinalei, era um dos restaurantes onde me habituei a abancar sem necessidade de pedir ementa. Sebastião conhecia a minha preferência pelo magnífico sarapatel da casa.

Em regra, chego cedo aos restaurantes: gosto de ser dos primeiros a ser atendidos, seja ao almoço ou ao jantar. Havia tempo para conversar com o proprietário, senhor de muitas histórias, desde a Goa natal de onde saiu ainda adolescente - paixão e devoção que nunca se lhe apagou da memória e dos afectos.

Conhecia muita gente - da política, da banca, da vida empresarial, do jornalismo, do desporto, dos meios artísticos e intelectuais. Sabia receber todos sem nunca trair confidências: esta é uma regra básica de quem quer singrar no ingrato mundo da restauração.

 

Almocei lá pela última vez num domingo de Dezembro. Achei-o um pouco abatido, talvez em consequência de um resfriado. Trouxe-me o sarapatel, com o delicioso arroz basmati servido à parte. O restaurante ia receber um grupo, dessa vez não houve tempo para conversarmos.

Na mesa ao lado, quatro trintonas obcecadas com dietas consultavam interminavelmente a lista, sem se decidirem. "Detestamos picante. Não queremos nada picante nem muito calórico", disse enfim uma delas, aparente porta-voz do grupo, com ar visivelmente enfastiado. Sebastião, com aquela paciência que apenas os orientais têm e a suave ironia em que são exímios, sugeriu: "Posso fazer-vos um bifinho grelhado..."

 

Faleceu há dias, de morte súbita, aos 70 anos. Manteve-se no seu posto gastronómico até ao fim - embaixador informal da bela Goa em Lisboa. Terras irmãs - unidas pela história, pela língua, por crenças e costumes. Unidas pela gastronomia, com tantas influências mútuas. Séculos antes de ter sido popularizada a palavra globalização.

Devo à grata memória de Sebastião Fernandes outra deslocação ao Nova Goa. Onde talvez pela primeira vez me estenderão a ementa. Embora eu já saiba o que irei comer. E que vinho beberei em sua invocação.

Vão-me fazer falta o seu ar bondoso e a sua palavra inspirada em relatos da antiga Goa colonial e da Lisboa de outras eras. Relatos que davam um livro que muitos gostariam de ter escrito. Eu também.

Delito à mesa (7)

João André, 03.01.17

Confesso que há muito que não tenho o hábito de ir a restaurantes. Sempre gostei de o fazer com amigos mas afazeres profissionais, ter saído de Portugal e ter por perto menos dos amigos com quem gosto de partilhar estes momentos, além da vida familiar que por vezes torna difícil a ida a restaurantes, tudo isto tem conspirado para que eu não tenha renovado os meus hábitos comensais públicos. Na falta dos mesmos, recorro a um hábito já antigo a que volto sempre que posso (ou por lá passo).

 

ze manel dos ossos 0.jpg

 

O Zé Manel dos Ossos é uma instituição de Coimbra onde não há café no final da refeição, o vinho vem à escolha de branco ou tinto, copo ou jarro (garrafa também pode ser), as paredes estão escarrapachadas de papéis de toalha de mesa escrevinhados com saudações, poemas ou outras inspirações de rotundas barrigas, a fila à entrada pode ir dos 20 minutos à hora e meia para quem chega depois das 7 da noite e o espaço dá para uma meia dúzia de mesas e pouco mais. Quem quiser sofisticação e estilo bem pode ir a outro lado.

 

Conta a lenda que tudo começou quando o Sr. Zé Manel começou a recolher os ossos de um talho ao lado e a cozinhá-los com umas ervas, sal e outros truques que só serão transmissíveis em quintas-feiras de lua cheia depois de sacrificar um gato, um lagarto e um javali aos diversos deuses da gula nos intermináveis panteões da história universal. Facto é que os ossos, além do nome, dão o carácter ao restaurante. A maioria dos pratos incluem ossos de uma forma ou outra, mas os ossos a sério, aqueles que se pedem sem dizer nada mais além do número de convivas, esses são motivo só por si para uma espera de uma hora num beco de Coimbra aos 35 °C de uma noite de Verão.

 

ze manel dos ossos 2.jpg

 

Os preços (além da qualidade) tornam o restaurante obrigatório entre estudantes, mas não se pense que enchem o espaço e o tornam impossivelmente "académico". Os simples factos de ser necessário enfrentar filas para entrar depois das 7 e meia da noite (ou tarde, depende da altura do ano), de se situar na Baixa (e fora dos circuitos habituais da Universidade) conspiram para controlar o fluxo de clientela e permitir que qualquer pessoa se sinta em casa. Uma vez dentro, há sempre o risco de o calor ser altíssimo e o espaço exíguo. Mas vale a pena aguentar tudo.

 

A melhor escolha inicial é dizer que se quer ossos. O empregado decide quanto vai trazer em função dos convivas à mesa (esqueçam as noções de doses se ali entram) e é possível ter tempo para decidir o que se vai comer. Mais uma vez, o ideal é escolher uma selecção de pratos e deixar que as quantidades fiquem à escolha da casa. Pessoalmente vou sempre pelas barriguinhas ou costeletas com arroz de feijão ou pela feijoada de javali. O vinho é despretensioso mas costuma ir muito bem com a comida e o ambiente.

ze manel dos ossos 3.1.jpgze manel dos ossos 3.2.jpg

 

Não há pressão para se sair da mesa, apesar da fila que existe à porta. Há sempre contudo a oferta de mais bebidas, como que a lembrar-nos para consumirmos um pouco mais. Mas sem verdadeira pressão: a simpatia esteve sempre presente. No final não há café. A máquina ocupa espaço e, na realidade, ninguém lá vai para isso. E beber um café poderia ter o mesmo efeito que a folhinha de menta em The Meaning of Life.

 

A melhor demonstração do restaurante ocorreu quando um dia tive um jantar com os elementos de uma banda americana (que tinham dado um concerto organizado pela Ru( na noite anterior). Nesse dia alguns dos elementos da banda dormiram tarde e almoçaram já perto das seis da tarde. Vontade de jantar: perto de zero. Umas horas mais tarde tinham-se deliciado com a comida e iam rebolando alegremente para o hotel. Passados uns anos um amigo reencontrou um deles e foi imediatamente reconhecido com as palavras: «os ossos!».

ze manel dos ossos 1.jpg

 

Resumindo: a visita ao Zé Manel dos Ossos vale sempre a pena. Sem pressas e com espaço no estômago. E escritas estas linhas, estou com vontade de marcar uma viagem a Coimbra para breve.

Delito à Mesa (6)

Francisca Prieto, 08.12.16

Vai para uns quantos anos que, quando chega Agosto, enfio os malotes no carro e trato do exílio familiar para a Costa Vicentina.

Gastronomicamente falando, o mês é intercalado por cachorros quentes na praia e, à noite, peixe escalado, do fresquíssimo, ali pescado por gente local. Acrescenta-se com frequência pratadas de percebes (ou perceves, consoante a corrente) e um ou outro churrasco caseiro, quando aparece um habilidoso capaz de dominar a labareda.

Há porém o dia da rebeldia. Várias famílias de amigos deixam os filhos ao abandono e marca-se uma mesa de estadão na Eira do Mel, o respeitado estabelecimento de restauração, sito em Vila do Bispo.

Assim que chegamos, começa o choradinho do “Leite Queimado”, uma rara iguaria, servida à sobremesa, que só há de vez em quando e que, quando há, acaba logo na primeira ronda de clientela. O objectivo primordial é assegurar, à partida, umas quantas doses que permitam acabar o jantar em beleza.

A Eira do Mel proclama-se como um restaurante de Slow Food e faz jus ao que promete, o que quer dizer que leva uma eternidade a servir uma mesa do tamanho da nossa. De maneira que, invariavelmente, vão chegando várias garrafas de vinho até que se consiga ferrar o dente nas entradas. Na altura de apreciarmos os magníficos ovos mexidos com morcela ou o camarão mergulhado em molho fenomenal, já soaram as primeiras gargalhadas guturais que ditam o tom para o resto da refeição.

Das entradas ao prato principal decorre mais um período de tempo considerável. Tanto, que dava para assistir a uma prova do Grande Prémio, com a parte da subida ao podium e tudo. Mas nós não reclamamos porque, para além de continuarmos entretidos nas degustações vinícolas, sabemos o que lá vem: uma cataplana de polvo com batata doce de fazer chorar qualquer coração mais empedernido.

Só por causa desta cataplana, a Michelin devia deixar-se de mariquices e atribuir cinco estrelas ao Chef José Pinheiro.

E é assim que, já com um par de grãos na asa, os convivas contam e recontam vezes a fio as mesmas histórias dos velhos tempos de Sagres, enquanto perdoam a longa espera e molham pão saloio no molho da panela.

No final, se há Leite Queimado assegurado, manda-se servir para acompanhar uns copitos de medronho, daqueles que não se devem beber sozinhos.

No dia a seguir há lamentos na praia, mas todos concordamos que o ritual se há-de voltar a cumprir. Afinal, temos doze meses para recuperar da epopeia.

 

Eira do mel.jpg

 

Delito à mesa (4)

Pedro Correia, 22.11.16

Gosto de entrar em restaurantes onde já sou conhecido e sabem de antemão o que irão trazer-me para a mesa sem eu ter necessidade de consultar a ementa.

É como se fizesse parte da família alargada desses estabelecimentos, onde um cliente nunca deixa de ser bem tratado mas os habitués justificam um toque suplementar de atenção.

 

solar-dos-presuntos-imagem-057[1].jpg

 Solar dos Presuntos: a melhor 'paella' de Lisboa

 

Acontece-me, desde logo, no Solar dos Presuntos. Há anos que vou lá comer sempre o mesmo prato: a melhor paella de Lisboa. Sempre acompanhada por um excelente Alvarinho, o Portal do Fidalgo. Antes de me sentar, já qualquer membro da diligente equipa de empregados bem orientada pelo maestro Pedro Cardoso sabe qual será a minha opção, sólida e líquida.

O mesmo sucede no Nova Goa, onde mantenho fidelidade ao sarapatel. Sebastião Fernandes – proprietário, anfitrião e uma das figuras mais carismáticas da restauração lisboeta – nunca precisa de me estender o menu. Nem eu preciso de lhe dizer o que me apetece mastigar.

Sinto-me lá sempre em casa. Tal como no Salsa & Coentros, que frequento desde a abertura, e onde a escolha quase invariável é o arroz de perdiz – que já não necessito de encomendar. José Duarte, patrão e timoneiro deste simpático restaurante, bem sabe qual será a minha escolha.

Ali perto, no Mercado de Alvalade, quando me sento à mesa sei que virá o inconfundível balchão de camarão – acompanhado por um jarrinho de branco da Casa Ermelinda Freitas, uma das melhores relações preço-qualidade dos vinhos portugueses. Deixaram há muito de perguntar, deixei há muito de pedir.

Acontece o mesmo no Comilão. Secundino Cardoso, alma deste marco na arte de bem refeiçoar em Campo de Ourique, sabe o que ali procuro quase invariavelmente: o admirável arroz de pato, que tenho comido mesmo quando não consta da ementa.

 

Restaurante%20Conventual[1].jpg

 Conventual: uma saudade

 

Foram-se os tempos do Conventual, que chegou a ter o melhor cozido à portuguesa de Lisboa, e do antigo Coelho da Rocha, onde rumei durante anos em busca da empada de lebre: ainda não me apeteceu regressar com a nova gerência.

Já não existe o Múni, na Rua dos Correeiros, onde o bacalhau à Gomes de Sá era imbatível.

No Bairro Alto deixou de morar o Pap’ Açorda, meu destino invariável quando me apetecia matar saudades dos incomparáveis pastéis de massa tenra. Espreitei o sucedâneo recém-inaugurado, ao Cais do Sodré, mas não fiquei cliente: pareceu-me presumido em excesso. Com doses demasiado minguadas a preços exageradamente robustos.

Os preços nada convidativos afastaram-me de outros poisos gastronómicos da capital que frequentei em tempos idos. Mas lembro ainda com um fio de nostalgia o bife tártaro do XL e a raia no vapor com alcaparras d' A Travessa.

 

portfolio-05[1].jpg

 Via Graça: os olhos também comem

 

Uns partem, outros chegam.

Por estes dias vou abancando no Ibo (lombinhos de peixe em molho de coco e coentros com puré de mandioca e batata doce) ou no Jesus É Goês (magnífico camarão recheado, imbatível nas rotas gastronómicas da capital). Nunca deixo de recomendar a piazza diavola do Come Prima. E revisito clássicos, como a Adega da Tia Matilde (arroz de frango), o Solar dos Nunes (arroz de lebre), o Poleiro (vitela barrosã no forno com arroz de salpicão) ou o velho-novo Via Graça, de onde se desfruta uma das vistas mais soberbas da capital.

De uns e outros tenciono falar aqui, nos meses mais próximos, recuperando uma série iniciada no DELITO por colegas como a Ana Vidal e o José Navarro de Andrade. Uma série que saberá ainda melhor se reflectir o saudável espírito colectivo que sempre cultivámos. As boas tradições devem manter-se.

O melhor cliente é o que ainda não chegou

Inês Pedrosa, 15.11.16

exterior.jpg

Há uns tempos aconteceu-me no restaurante Muralhas, em Óbidos: "Essa mesa não pode ser, está reservada". Perguntei se o autor da reserva tinha pedido especificamente aquela mesa para duas pessoas, encostada à parede. Responderam-me que sim. Só ficámos porque já era tarde e estávamos num desses dias celebrativos em que os restaurantes transbordam. Nunca chegou ninguém para a tal mesa que não podia ser. Nunca mais lá voltámos, claro. 

Agora foi no restaurante Prim, na Ericeira. Éramos dois, já passava das nove e meia da noite, dirigíamo-nos a uma mesa para quatro, num cantinho. A empregada disse-nos que não podia ser, porque podia ainda chegar um grupo de quatro pesssoas, e encaminhou-nos para a outra mesa disponível, para duas pessoas, ao lado dessa e praticamente colada a outra mesa ocupada. Volvidos 20 minutos chegaram mais duas pessoas... que foram encaminhadas para a simpática mesa de quatro, mais isolada, que nós tínhamos pretendido. Só não saímos porque já estávamos a comer. Mas não voltaremos, evidentemente. Para muitos restaurantes portugueses, os clientes que merecem ser bem tratados são os que ainda não chegaram. Sebastianismo gastronómico. 

 

Por que é que alguns restaurantes escolhem não converter longas filas em maiores lucros?

José Maria Gui Pimentel, 16.03.14

 

Todos conhecemos restaurantes que têm, de uma forma persistente, longas filas (às vezes todos os dias da semana). Esse fenómeno traduz um excesso de procura face à oferta e implica, à partida, que o restaurante esteja a perder lucro, pois poderia servir o mesmo número de clientes a um preço mais alto, ou, alternativamente, servir um maior número de clientes (sem alterar o preço) se optasse por expandir. Há, no entanto, alguns restaurantes que claramente escolheram não pôr em prática nenhuma dessas opções, e que têm há vários anos longas filas. Trata-se de uma peculiaridade curiosa deste tipo de negócio. Repare-se que seria o mesmo do que termos persistentemente dificuldade em comprar um determinado bem de consumo, sem que a empresa que o produz optasse por aumentar o preço ou a quantidade produzida.

 

Mas poderá este comportamento ser racional? Talvez, se o restaurante retirar algum benefício deste excesso de procura ou, alternativamente, se o aumento do preço ou a expansão do espaço puderem provocar uma queda abrupta na procura.

 

Uma possibilidade é que os clientes “fixem” a sua noção de preço-justo ao preço inicial que lhes é apresentado, o que poderia gerar um êxodo de clientes se os preços fossem aumentados, mesmo que gradualmente.

 

Outra hipótese é que o nível de procura esteja dependente do nível original de oferta, isto é, da dimensão inicial do restaurante. Este fenómeno pode ocorrer por vários motivos, seja porque um restaurante que opte por aumentar a lotação pode perder a sua aura de autenticidade, e até qualidade (criando a percepção de um serviço indiferenciado), seja porque a frequência de um restaurante pequeno, e portanto de serventia limitada, confere uma sensação de exclusividade a clientes preocupados com a diferenciação face aos demais.

 

Um outro conjunto de soluções é aventado por Gary Becker (prémio o Nobel em Economia em 1992), que põe a hipótese de que “a procura individual seja positivamente relacionada com a procura de outros consumidores”, uma vez que a subida desta faz aumentar a percepção do valor do restaurante em questão, seja por torná-lo popular, seja por atestar a sua qualidade (ou ainda, acrescentaria, por fazer aumentar a probabilidade de os alimentos serem frescos). Becker vai mais longe e sugere uma hipótese ainda mais heterodoxa: que a procura possa estar positivamente relacionada com o próprio excesso de procura (neste caso: a dimensão da fila), designadamente com a utilidade que a permanência na fila possa conferir. Por um lado, a espera em fila pode ser útil por aumentar o benefício da exclusividade, seja pela possibilidade extra para os clientes de se mostrarem em determinado restaurante, seja pelo facto de a necessidade de esperar ajudar a conferir uma aura de exclusividade que está normalmente associada a preços elevados. Por outro lado, a mesma espera em fila possibilita a camaradagem entre quem espera, o que pode ser agradável, por exemplo, para clientes do mesmo extracto social ou com outro tipo de afinidades pré-definidas. Uma outra possibilidade ainda é que o excesso de procura seja directamente benéfica para o restaurante, na medida em que ajuda a alimentar a publicidade (“boca-a-boca”) e, consequentemente, a aumentar a procura agregada.

 

Qualquer destas explicações – ou mesmo o conjunto delas – é provavelmente curta. Mas isso, acho, só torna o fenómeno mais curioso.

Um jantar em Tavira

Pedro Correia, 22.06.10

 

No ponto mais alto de Tavira, junto ao castelo, com uma vista deslumbrante. A tarde vai-se escoando lentamente, ao ritmo deste Verão que tanto tardou a chegar. Gosto de rever as olaias e as oliveiras no largo fronteiro, de ouvir o som dos sinos a assinalar a passagem das horas, de ver o céu riscado pelo labor incessante das andorinhas. Janto na larga varanda debruçada sobre a cidade num dos meus restaurantes de eleição. A Ver Tavira. Entrada: pétalas de tomate confitado com lascas de bacalhau e tapete de massa brick regado com azeite de tomilho. Leio num jornal que a frota automóvel do Estado português aumentou em 1200 veículos entre 2008 e 2009 - excelente exemplo num país em crise. Perante casos como este, como é que o Governo socialista tem autoridade moral para pedir cada vez mais sacrifícios aos portugueses, nomeadamente no plano fiscal?

A noite vai caindo. Chega-me agora à mesa o prato principal: lombinho de tamboril enrolado em bacon confitado servido com camarão e risotto de coentros com molho de caril. Outro jornal informa-me que há já quem, a pretexto da crise, queira reduzir os feriados para o número mínimo (Natal e pouco mais) e questione até as "férias pagas" dos trabalhadores portugueses. Para esta gente, que se proclama de direita, o cenário ideal é o da China, onde o Partido Comunista funciona simultaneamente como entidade patronal e comissão liquidatária de todos os direitos laborais - incluindo o direito à greve e o direito ao sindicalismo independente do poder político. Uma vez mais, os extremos tocam-se.

Mas não há só más notícias nas páginas dos diários portugueses e espanhóis que folheio em férias. Um taxista britânico acaba de receber em herança 300 mil euros de uma velhota sem família recém-falecida num lar. O homem conduziu a senhora diariamente, durante duas décadas - e ela mostrou não ser ingrata, o que nos leva não perder por completo a fé na natureza humana. Parece aquele filme, Driving Miss Daisy. Mas os enredos da vida real ultrapassam tantas vezes os da ficção. Em quantidade e qualidade.

É hora da sobremesa. Bolo de mousse de chocolate com gelado de manga e framboesa. Todas as luzes de Tavira já se acenderam. Confirmo: é uma cidade de um encanto sem par.