Há muitos anos, geria uma fábrica que se dedicava ao fabrico de móveis frigoríficos, que exportava para uma dúzia de países.
Um dia, comecei a ouvir falar do buraco de ozono e dos grandes malefícios que os gases que então se usavam em refrigeração causavam àquele precioso gás, decompondo-o.
A pressão para a substituição do gás acentuou-se e complicados procedimentos para recuperar o gás antigo e não o deixar escapar para a atmosfera, o maldito, em aparelhos velhos, foram sendo postos em prática. Entretanto, apareceram no mercado novos gases que requeriam outros compressores, outros evaporadores e outros condensadores. Tudo era mais caro e implicava investimentos, mas os móveis passaram, com orgulho, a ostentar etiquetas verdes, muito parecidas com as que a concorrência chinesa usava para o mesmo efeito sobre equipamentos com as antigas características – povo empreendedor, não queria desperdiçar os stocks que tinha, que bem os compreendia.
O problema está hoje esquecido, o buraco diminuiu consideravelmente entretanto, não sendo talvez de excluir que o ozono, ou o nível de outra porra qualquer, suba ou baixe anormalmente quando as patentes dos novos gases estiverem perto de caducar, ou quando um laboratório prestigiado vislumbrar uma tragédia ao dobrar da esquina e encontre nas seitas ecológicas eco para estas cavalgarem uma causa fresquinha.
A empresa era sócia da associação do sector. Mas já então tinha sobre o associativismo a mesma opinião que tenho hoje e, podendo sem inconvenientes de maior pôr-me ao fresco para assistir a conferências, workshops, e comparecer a confraternizações e almoçaradas, e mesmo não tendo dúvidas da grande utilidade que semelhantes convívios podiam ter para o efeito de conhecer gente com interesse para lobbying (o nome fino da cunha e do tráfico de influências), não me sobrava a paciência para ouvir teóricos da gestão, bancários, políticos, especialistas disto e daquilo e treteiros sortidos.
De modo que raramente pus os pés fosse no que fosse. Ademais, estas iniciativas do maior interesse (segundo os promotores) tinham lugar invariavelmente em Lisboa. Ora, na altura ainda não havia GPS, absolutamente necessário no meu caso por me acontecer por razões misteriosas, quando me deslocava àquela cidade por outros motivos, ir parar a Queijas.
Sucedeu que no auge da pressão para os industriais do sector se modernizarem, a tal associação enviou uma circular significando a grande necessidade, que cientificamente demonstrava com abundância de explicações, de nos livrarmos do freon, concluindo pela urgência de mudarmos (nós, os empresários) de mentalidade.
À moça que assinava o papel respondi rebatendo ponto por ponto os seus argumentos “científicos” com outros do mesmo jaez mas de fontes diferentes e antagónicas; esclarecendo que já estava a fazer as alterações necessárias, por razões estritamente comerciais; e que me recusava formalmente a permitir que me alterassem a mentalidade com a qual, à época, já convivia pacificamente há mais de três décadas.
Quando chegou a altura de renovar a pertença, declinei; e só voltei a ser sócio de uma associação (outra) muitos anos depois, numa altura em que era conveniente para ter acesso a informação que doutro modo não teria.
A Associação da Hotelaria, Restauração e Similares apresentou ao Governo, diz a SicN, uma inacreditável proposta de regras (“já validada pela ASAE”) para os restaurantes que inclui delírios como a tomada da temperatura dos clientes, a desinfecção das mãos destes, a obrigatoriedade de marcação prévia e a escolha do menu pelo telemóvel ou em tablet do estabelecimento .
Fui ver ao site para descobrir quem era esta extraordinária gente, mas não se aprende muito: a apresentação é a vulgar declaração sobre os nobres propósitos da agremiação, em prosa da escolaridade obrigatória; e as personalidades que povoam os órgãos dirigentes são naturalmente desconhecidas, mas não aparentam ser gente de avental de serviço e com familiaridade com tachos e panelas.
Vossas Senhorias não percebem o vosso papel: para estabelecer regras de saúde pública que ofendem e humilham as pessoas, ou que dão trabalho escusado, ou que implicam despesas que não seriam necessárias, ou que acrescem à carga de trabalho dos empregados, ou que limitam a quantidade de refeições que se podem servir, não é precisa uma associação: basta um grupo de burocratas qualquer da DGS capaz de copiar normas importadas de outros países, escolhidos de entre os de língua inglesa (francês não entendem e inglês também não, geralmente, mas julgam que sim) que se distingam pela minúcia da regulamentação, somar tudo, acrescentar algumas rodilhices imaginativas, salpicar com multas e fiscalizações, e servir no legalês prolixo que o político abelhudo de serviço assina de cruz.
Uma associação empresarial, se está do lado do Estado, não está do lado certo. O lado certo é contra o Estado, no vosso caso a defender ferozmente a viabilidade dos restaurantes – os que sobrarem depois do golpe que lhes deram o medo das pessoas, as paragens compulsivas, a insuficiência dos apoios e o descalabro do turismo.
Representais os restauradores, é, anedotas tristes? Valeis ainda menos do que o advogado oficioso que ofereça, em defesa do seu cliente, o merecimento dos autos. Porque este ainda pode contar com a imparcialidade do juiz, que não tem de engolir necessariamente as fabricações do ministério público; e vós, ao Governo que diz mata!, acrescentais esfola.