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Delito de Opinião

Ainda há heróis

Pedro Correia, 04.06.24

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Chai Ling, com 23 anos, falando aos outros estudantes concentrados em Tiananmen (Primavera de 1989)

 

No coração da remota China muçulmana, a população turcófona continua a ser remetida para guetos nos subúrbios: os melhores empregos e as melhores habitações cabem à etnia han, dominante no conjunto do país. Só existe igualdade na lei, não existe na prática: os uígures são tratados como cidadãos de segunda na sua própria terra. Que crime cometeram? Procurarem manter a identidade cultural, falando a sua língua e professando a sua religião no Estado mais populoso do mundo, onde a norma é esmagar toda a diferença.

Acontece hoje no Xinjiang, acontece há 65 anos no Tibete, aconteceu em 1989 na própria sede suprema do Império do Meio.

 

Sei bem do que falo. Faz hoje 35 anos, vivi em Macau um dos períodos mais tristes de que me lembro, quando vi esmagar a Primavera com que milhões de chineses haviam sonhado – a Primavera política, após quatro décadas de regime ditatorial, afogada em sangue naquela trágica madrugada em Tiananmen, a Praça da Paz Celestial, que nunca fez tão pouco jus ao seu nome poético. Após mês e meio de protestos pacíficos, iniciados em Abril, com a morte súbita do ex-secretário-geral do Partido Comunista Chinês, o reformista Hu Yaobang, destituído dessas funções em 1987.

Recordo as expressões festivas nos rostos de muitos chineses semanas antes, dias antes, quando toda a esperança parecia possível.

Recordo as figuras dos principais dirigentes estudantis, imagens que galvanizaram toda uma geração – jovens como Wang DanChai Ling e Wuer Kaixi, que viriam a ser perseguidos e forçados ao exílio.

Recordo a euforia popular que rodeou a chegada à capital chinesa em meados de Maio, para uma visita oficial, de Mikhail Gorbatchov, o homem que se preparava para derrubar a Cortina de Ferro e servia de inspiração ao ansiado derrube da Cortina de Bambu.

Recordo também a mobilização de uma vasta força repressiva, composta por 300 mil soldados mandatados para estancar a revolta. Recordo a proclamação da lei marcial por Deng Xiaoping (que só viria a ser levantada em Janeiro de 1990) e o afastamento do líder do partido, Zhao Ziyang, acusado de ser excessivamente brando pelos falcões da ditadura e condenado a partir daí à morte civil e à reclusão doméstica com carácter vitalício.

Recordo o silêncio de chumbo nos dias subsequentes ao massacre.

 

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Recordo sobretudo o impressionante instantâneo daquele homem sem rosto nem nome, de braços nus, enfrentando uma sinistra fileira de tanques, imortalizado pelo clique da máquina fotográfica de Stuart Franklin. Símbolo máximo da dignidade humana perante a força bruta - há 35 anos em Pequim, hoje no Xinjiang (ou Sinquião, na grafia portuguesa) que teima em ser diferente.

Quando ouço dizer à minha volta que já não existem heróis, lembro-me sempre daquele homem sem medo.

Que outro nome haveremos de dar-lhe senão esse – o de herói?

 

Leitura complementar: Stuart Franklin: how I photographed Tiananmen Square and 'tank man'

Reflexão do dia

Pedro Correia, 25.10.23

«A retórica é claramente de ódio a Israel e anti-semita. Os cartazes são de linguagem desumanizadora e de apoio à violência do Hamas. Vêem-se bandeiras do ISIS e da Al-Qaeda. Ninguém podia pedir maior apologia do terrorismo. Grita-se "morte aos judeus", usam-se cartazes com a bandeira de Israel no lixo junto ao slogan "manter o mundo limpo". Só quem considera os judeus não possuidores de dignidade humana por inteiro permanece numa manifestação onde se exibem tais opiniões.

Mas nem só de slogans em manifestações vive o anti-semitismo. Em Londres, os crimes motivados por anti-semitismo, desde o ataque do Hamas, cresceram 1350% (em termos homólogos). Uma sinagoga em Berlim foi atacada por dois cocktails Molotov. Na mesma Berlim, estrelas de David - o sinal, lembro para os mais novos, que os judeus eram obrigados a usar em braçadeiras no regime nazi - foram pintadas à porta de casas onde habitam judeus. A sinagoga do Porto foi vandalizada. Em Paris, foi queimada a porta do apartamento de um casal de judeus octogenários. (...) Em Barcelona um hotel foi atacado por manifestantes. A razão? É propriedade de um judeu. Em Toronto o alvo foi um restaurante. A razão? A mesma.

Este anti-semitismo é declarado e evidente. Atacam-se as pessoas, as casas, os negócios. Temos relatos de tudo isto vindos da Europa pelos anos 1930.»

Maria João Marques, no Público

Maior massacre em Angola foi há 45 anos

Pedro Correia, 27.05.22

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Faz hoje 45 anos, iniciava-se uma das maiores atrocidades jamais ocorridas na África lusófona. Barbaridade que as narrativas dominantes tudo fazem para ocultar, como se nunca tivesse acontecido. O chamado "golpe do 27 de Maio", nunca devidamente esclarecido, que vitimou parte da jovem elite do Movimento Popular para a Libertação de Angola - o partido que se tem perpetuado no poder em Luanda desde a independência, em Novembro de 1975.

Nessa data e nas semanas imediatas, milhares de militantes foram chacinados. Historiadores independentes e organizações de direitos humanos calculam em 30 mil o número mínimo de vítimas provocadas pelo esmagamento de uma suposta rebelião contra Agostinho Neto, selvaticamente reprimida pelas forças cubanas que serviam de guarda pretoriana ao ditador marxista-leninista e pela DISA, a sinistra polícia política que fazia do homicídio extrajudicial prática corrente.

A violenta repressão dos «fraccionistas», como eram apelidados no jargão do poder da época, pode ter causado um total de 70 mil mortos. Prolongou-se por dois anos envolvendo torturas, deportações forçadas para campos de concentração e fuzilamentos sem julgamento. Com Neto a dar rédea livre aos esbirros da DISA quando proclamou: «Certamente não vamos perder muito tempo com julgamentos. Nós vamos ditar uma sentença.»

 

Famílias inteiras desapareceram e os corpos, atirados para valas comuns, nunca foram recuperados. Incluindo o de Bernardo Alves Baptista, conhecido por Nito Alves, que a 25 de Abril de 1974 era comandante militar do MPLA na estratégica região dos Dembos e fora ministro do Interior desde a independência até Outubro de 1976. E também de José Jacinto Van Dunem e Sita Valles, pais de um bebé de três meses que viria a ser criado pela tia Francisca, futura ministra da Justiça em Portugal.

«Amarrem-nos onde forem encontrados: Nito Alves, José Van Dunem, Bakalof, Pedro Fortunato, Betino»; «Todos os fraccionistas pagarão pelos seus crimes», gritava em títulos garrafais o repugnante Jornal de Angola, fiel serventuário do regime, na edição de 31 de Maio. A 18 de Maio, em comunicado, o MPLA concluíra, num macabro aviso para o que se passaria dias depois: «Todas as organizações se depuram.»

A purga, como também lhe chamaram, incluiu matanças a sangue-frio nos cárceres e em locais como a praia das Palmeirinhas. Os mais afortunados - incluindo o actual ministro português da Economia, António Costa Silva, foram apenas vítimas de simulação de fuzilamentos.

Grande parte dos mortos não tinha sequer vínculo ao MPLA: foram apanhados no local errado e à hora errada, a pretexto da "purificação" do partido governamental, como sublinhou a Amnistia Internacional em vários relatórios.

Só em 2021 o Presidente da República, João Lourenço, pediu desculpa em nome do Estado angolano aos familiares dos assassinados, prometendo toda a colaboração das autoridades para a exumação dos cadáveres, a identificação dos restos mortais por equipas forenses e a emissão das respectivas certidões de óbito. Então com apenas 20 anos, a sua mulher, Ana Dias Lourenço, foi uma das militantes aprisionadas na sequência do 27 de Maio. 

 

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Apesar do louvável pedido de desculpas, falta fazer quase tudo. Falta, desde logo, criar uma Comissão de Verdade para que o massacre não caia no esquecimento colectivo ditado por conveniências muito selectivas. As mesmas que ainda idolatram Agostinho Neto como poeta, virtuoso humanista e «libertador» do seu povo.

A 21 de Maio de 1977, seis dias antes de esmagar os opositores, o ditador incentivou a população a «fazer um combate contra todos os fraccionistas que encontrarmos no caminho». Espécie de senha para o que logo se seguiu.

Mesmo que nenhum dos torcionários venha a pagar pela participação nestes homicídios, a memória não prescreve. Há que pôr fim à desinformação, à autocensura e aos silêncios, como alerta a Associação 27 de Maio. Há que repetir, uma vez e outra, que isto aconteceu. Uma nódoa inapagável na história do MPLA e da Angola pós-colonial.

 

ADENDA de 28 de Maio: um leitor chamou-me a atenção para este documentário realizado por Margarida Cardoso e exibido há dois dias na RTP 2: Sita - a Vida e o Tempo de Sita Valles. Vi-o na noite de ontem. Verdadeiro serviço público.

A situação na Catalunha.

Luís Menezes Leitão, 19.10.19

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Quem acha que a situação na Catalunha é um simples caso judicial, como pretende o Governo espanhol, teve ontem esta resposta. É evidente que existe aqui um problema político, que tem que ser resolvido politicamente. A visão legalista da questão — com argumentos como o de que uma Constituição de 1978 não permite um referendo em 2020 — está a conduzir a situação a um impasse que é prejudicial para todos. A Catalunha está a ferro e fogo e a própria Espanha mergulhou num bloqueio governativo (quatro eleições em quatro anos!). Por outro lado, o conflito estende-se à própria União Europeia, com os sucessivos mandados de detenção de políticos catalães exilados, rejeitados por vários tribunais europeus, e o facto de o Parlamento Europeu não estar com o número de deputados completo, uma vez que Espanha ameaça prender os deputados europeus que foram eleitos se eles forem tomar posse a Madrid. Qualquer pessoa percebe que isto é insustentável e que, a continuar-se com esta teimosia, as coisas só podem piorar.

Eu não.

Luís Menezes Leitão, 22.05.18

Há muito que acho que a situação na Catalunha ultrapassa tudo o que é admissível num Estado democrático. Governantes e deputados que se limitaram a executar o programa com base no qual foram eleitos encontram-se presos preventivamente há largos meses, como se fossem meros arruaceiros que invadiram a academia de Alcochete. O presidente da Generalitat, que obteve a maioria no parlamento, encontra-se alvo de um mandato de detenção internacional e não lhe permitiram tomar posse. Aceitaram depois dar posse a um substituto, mas depois não o deixam formar governo, pretendendo manter o art. 155, que consagra um estado de excepção, eternamente em vigor. Em Portugal há gente que procura olhar para o lado e ignorar tudo o que se está a passar, incluindo o Presidente da República que vai a Salamanca falar da "Espanha una e eterna", parecendo querer retomar a divisa franquista "Una, Grande y Libre!",  e não diz uma palavra sobre pessoas que neste momento em Espanha estão presas ou exlladas apenas pelas suas convicções políticas. Não é o meu caso. Prefiro seguir outra divisa: "Etiam si omnes, ego non". O que penso sobre a situação na Catalunha escrevi-o hoje aqui.

Um gesto simbólico.

Luís Menezes Leitão, 17.04.18

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Foi um gesto altamente simbólico os deputados catalães terem cantado a Grândola, Vila Morena, no Parlamento Espanhol aquando da visita de Marcelo. E ainda mais simbólico foi o facto de os deputados espanhóis terem feito barulho para abafar o som da canção. Na Catalunha há muitos que querem a liberdade de decidir o seu destino, enquanto que outros procuram calar a sua voz. Mas da mesma forma que no Portugal de 1974, a Grândola Vila Morena cantada pelos catalães é um hino à liberdade que nenhuma repressão conseguirá silenciar.

 

Quanto ao resto, é irrelevante que o partido que começou por ser Ciutadans e agora se converteu em Ciudadanos, para demonstrar que de catalão afinal não tem nada, esteja à frente das sondagens em Espanha. No parlamento da Catalunha há uma maioria independentista a quem está a ser negada a possibilidade de formar governo com a sistemática prisão dos deputados eleitos pelo povo, com base em acusações ridículas que em toda a Europa têm sido completamente rechaçadas pelos tribunais.

 

Os catalães têm o direito a decidir pela autodeterminação da sua região e não é toda a Espanha que pode decidir por eles, assim como não foi toda a URSS que votou a independência da Estónia ou toda a Jugoslávia que votou a independência da Eslovénia. Se acham que há menos de metade do eleitorado da Catalunha a favor da independência, nada mais simples do que fazer um referendo e tirar as dúvidas. E não vale a pena inventar ficções como a Tabárnia ou dizer que os políticos que estão na prisão pelas suas convicções não são presos políticos. Resolva-se a questão catalã num referendo como se fez na Escócia e no Quebeque, em ambos os casos contra a independência. Assim como está é que não pode ficar.

Comparações.

Luís Menezes Leitão, 31.03.18

Num post abaixo, o João André critica a comparação que fiz entre a repressão na Catalunha e a repressão que se está a levar a cabo na Rússia e na Turquia. Mas a comparação é perfeitamente justificada. A Rússia e a Turquia também são formalmente democracias. Só na prática é que não o são. A Espanha caminha rapidamente, pelo menos no que à Catalunha diz respeito, para também não o ser. Na campanha eleitoral Puigdemont avisou que os independentistas respeitariam o resultado eleitoral, mas que se iria ver se o Estado espanhol o faria. Até agora não o tem feito, colocando os seus opositores, que venceram as eleições, na prisão. Se o João André vê alguma diferença entre as medidas que os tribunais espanhóis tomaram contra Carles Puigdemont e as que os tribunais russos tomaram contra Alexei Navalny é bom que explique qual é.

A repressão na Catalunha.

Luís Menezes Leitão, 23.03.18
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A atitude de Espanha em relação à Catalunha constitui um exemplo típico de repressão, que deveria envergonhar qualquer cidadão europeu. Mas infelizmente as instituição europeias fartam-se de denunciar a repressão na Turquia e na Rússia, mas fecham os olhos ao que se passa em Espanha. Fizeram-se eleições, mas não se deixam os eleitos formar um governo, sendo convenientemente presos na véspera da investidura parlamentar. Se não quiserem ser presos, resta-lhes o exílio, uma vez que os órgãos judiciais espanhóis nem sequer se atrevem a pedir a sua extradição, dado que a maioria dos Estados não extradita por delitos políticos. Provavelmente a ideia é colocar na prisão ou no exílio todos aqueles que têm ideais independentistas, o que implica prender por delito de opinião. Como é que se pode aceitar isto num país da União Europeia em pleno século XXI?

O impasse na Catalunha.

Luís Menezes Leitão, 03.11.17

Agora o PP catalão, perante a perspectiva, cada vez mais sólida, de os independentistas voltarem a ter maioria na Catalunha, pede para nesse caso se voltar a aplicar o art. 155. Espanha começa a parecer-se cada vez mais com o Chile dos anos 70 em que se avisou que, se Allende ganhasse, seriam as últimas eleições, como de facto aconteceu durante vinte anos.

Entretanto, hoje Nuno Garoupa dá uma excelente entrevista que diz duas coisas óbvias, que só os fanáticos persistem em não querer ver. A primeira é a de que o sistema judicial espanhol está politizado e desprestigiado há muitos anos. A segunda é a de que "só há uma saída para isto. O Estado espanhol e a União Europeia têm de, dentro do seu Estado de Direito, reconhecer a possibilidade de a Catalunha referendar a independência". As questões políticas resolvem-se politicamente, não se resolvem com prisões por delito de opinião.

Delito de opinião.

Luís Menezes Leitão, 02.11.17

Não consigo compreender como é possível mandar para a prisão os governantes de um governo deposto pelo simples facto de terem executado o programa com que se apresentaram a eleições, as quais lhes deram a maioria no parlamento. Em Espanha neste momento há processos com acusações por penas gravíssimas e medidas de coacção desproporcionadas apenas por simples delito de opinião. Estes governantes estão presos porque não se consideram espanhóis e quiseram que a sua região fosse independente. E já agora, alguém acredita que as eleições convocadas ao abrigo do art. 155 vão ser realizadas adequadamente quando os líderes independentistas são previamente sujeitos à prisão ou ao exílio? Fala-se tanto nos regimes ditatoriais do leste da Europa e assiste-se sem uma palavra a estas coisas aqui mesmo ao lado.