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Delito de Opinião

Presidente sofre

Paulo Sousa, 25.06.24

Em resultado das dinâmicas da Guerra Fria, ou do espírito daquele tempo se assim preferirem, a forma como Jean-Bedel Bokassa chegou ao poder, e o exerceu, nunca pareceu importar à França, antiga potência colonial da República Centro Africana. O perigo soviético, cuja influência avançava em África ao ritmo de cada nova independência, justificava que se olhasse para o lado de forma a poder assegurar influência neste imenso território pejado de riquezas minerais.

Em 1969, Charles De Gaulle nomeou Bokassa como chefe de Estado, chefe de governo, presidente do partido único e ministro centro-africano da Informação, recebendo-o oficialmente para jantar no Eliseu. Reconhecido por tal generosidade, o antigo combatente que na Segunda Guerra Mundial se colocou ao lado das Forças Livres Francesas, entendeu tratar o presidente francês por “papá”. “Não me trate por papá!” terá dito De Gaulle embaraçado. “Oui, papá” terá respondido Bokassa.

Trago aqui este episódio em desagravo do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, que igualmente embaraçado, terá recebido um email de um maluco qualquer, que lá por ser não sei o quê de uma Câmara de Comércio não sei de onde, o desatou a tratar por pai para aqui, pai para ali, se o pai puder ajudar, obrigado pai… dá mesmo vontade de dizer que vá chamar pai a outro! Ao que uma pessoa se sujeita para poder servir o país. Ninguém lhe dá o devido valor, é o que é.

A leviandade jornalística

Alexandre Guerra, 07.06.18

Lia-se esta Quinta-feira um título no Observador que dizia o seguinte: “Militares portugueses acusados de ‘crimes contra a humanidade’ na República Centro Africana.” Uma informação destas, pela sua gravidade, levou-me a ler a notícia de imediato e, curiosamente, constatei que, afinal, aquele título, além de enganador, é pouco condizente com o que está, efectivamente, escrito no texto. Por um lado, ainda bem, já que mantém intacta a reputação de elevado profissionalismo que os militares portugueses têm demonstrado nas várias missões internacionais que têm desempenhado, seja sob a badge da ONU, da NATO ou da UE. Por outro lado, não percebo a razão que levou o jornalista a optar por um título que, de certa maneira, está muito pouco (ou nada) “defendido” e que poderia afectar, injustamente, a reputação daqueles soldados ao serviço da MINUSCA, e que não reflecte o espírito daquilo que a notícia objectivamente diz. Além disso, ao enfatizar em título “crimes contra a humanidade”, está-se a empolar um dos mais hediondos crimes que pode ser praticado por um ser humano.

 

Mais à frente no texto percebe-se de onde vem o “crimes contra humanidade”. Vou limitar-me a transcrever a passagem, porque vale a pena perceber a “credibilidade” (ou falta dela) da “fonte” e a leviandade com que se propagam estas coisas: “Nas imagens postas a circular nas redes sociais são visíveis largas centenas de pessoas (os testemunhos diretos falam em 20 mil) que participam numa marcha, algumas das quais empunhando bandeiras da RCA e de França. À frente do cortejo, numa faixa branca, lê-se: 10 de abril de 2018 no PK5 (Bangui) e 30 de maio de 2018 em Bambari, os contingentes ruandês e português da MINUSCA [a missão das Nações Unidas no país] cometeram graves crimes contra a humanidade”. Sim, o leitor leu bem. A “fonte” é o que está escrito numa faixa durante um cortejo de contestação de populares e daí parte-se, imprudentemente, para o título: “Militares portugueses acusados de ‘crimes contra a humanidade’ na República Centro Africana.”  

 

É verdade que no já longo histórico das missões militares internacionais, sobretudo aquelas sob comando da ONU, têm acontecido alguns episódios poucos dignos e, nalguns casos mesmo, de atrocidades e violações de direitos humanos. Por vezes, por acção, noutras situações, por omissão. Situações que têm afectado em particular a reputação da ONU e que o Secretário-Geral Antonio Guterres definiu como prioritárias no seu mandato. Perante isto, qualquer pessoa conhecedora minimamente do que tem sido as missões dos "capacetes azuis", sejam elas de “ peace enforcement” ou de “peacekeaping”, terá sempre que admitir a possibilidade de existirem eventuais abusos no terreno por parte das forças internacionais estacionadas em determinado palco de operações.

 

Ora, a questão é que dificilmente se acredita que os militares portugueses possam ter cometido os crimes de que são acusados na tal “faixa” e replicados no título da notícia do Observador. Na verdade, e atendendo à complexidade do teatro de operações na República Centro Africana, e ao que se vai sabendo, a actuação das forças portugueses tem sido de enorme competência e profissionalismo, à semelhança, aliás, do que tem acontecido noutros palcos de conflito. Daquilo que se lê (e vê) na própria notícia do Observador, e também do conhecimento teórico que se tem daquele conflito e das dinâmicas vis da região, mais facilmente se acredita na manipulação e instrumentalização das populações indefesas, através da intimidação (prática muito comum nestes cenários) e da contestação artificial, servindo interesses de determinados grupos. As reacções oficiais do Estado-Maior General das Forças Armadas e da ONU vão nesse sentido.

 

É claro que este tipo de notícias remete-nos para uma outra questão que tem a ver com a “morte” da reportagem de guerra. Porque, na verdade, tendo em conta a presença de um contingente significativo de militares portugueses num palco tão complicado, como é a República Centro Africana, o que as redacções já deveriam ter feito há algum tempo era ter enviado jornalistas para o “terreno”, de modo a fazerem reportagem a sério, trabalho de investigação e apuramento de factos.