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Delito de Opinião

Foi preciso esperar 66 anos

Pedro Correia, 24.04.24

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José Relvas proclamando a república, em Lisboa, a 5 de Outubro de 1910

 

A propósito do feriado nacional que amanhã se assinala tenho ouvido e lido, repetidamente, que o 25 de Abril de 1974 permitiu "devolver" ou "restituir aos portugueses" o direito de voto.

Nada mais errado. Durante quase sete décadas de regime republicano os portugueses, em geral, foram tão impedidos de exercer o voto como durante a monarquia constitucional. O rotativismo monárquico assentava no voto masculino censitário, atribuído apenas a detentores de certos rendimentos. Isto prolongou-se, no essencial, pela década e meia inicial de regime republicano - com o direito de voto restringido a homens alfabetizados com mais de 21 anos e contribuintes líquidos, o que deixava de fora cerca de 80% dos potenciais eleitores.

Da monarquia para a república transitaram alguns dos piores vícios do sistema: votos arrebanhados por caciques locais, eleições "amanhadas", vencedor conhecido de antemão. Escritores tão diversos como Eça de Queiroz e Júlio Dinis, nos seus romances, deixaram-nos sugestivos testemunhos deste fenómeno.

 

No essencial, há 114 anos, só mudou a designação do regime e os nomes dos partidos. O próprio Presidente da República, entre 1910 e 1926, não era eleito por sufrágio universal, sendo escolhido por um colégio eleitoral muito restrito, formado pelos representantes das duas câmaras do parlamento.

Houve uma excepção, quando Sidónio Pais instituiu a efémera "República Nova" alargando o direito de voto aos homens maiores de 21 anos, sem excluir os analfabetos, e instituindo o sufrágio directo para a Presidência da República - eleição que ele próprio, sem opositores, venceu em Abril de 1918 com cerca de meio milhão de votos entre 880 mil recenseados. Ao ser assassinado, oito meses depois, tudo voltaria ao mesmo. Até ao golpe de 28 de Maio de 1926, que iniciou um longo período de ditadura republicana em Portugal.

 

É, portanto, errado aludir-se à devolução ou restituição do sufrágio universal, que entre nós só vigorou pela primeira vez em 1975. E mesmo a eleição para a Assembleia Constituinte, realizada a 25 de Abril desse ano, ficou condicionada pela existência prévia de um pacto que os partidos políticos foram obrigados a assinar com o Movimento das Forças Armadas - garante da "legitimidade revolucionária", segundo o jargão da época -, reconhecendo a presença tutelar dos militares junto das instituições políticas. Três forças partidárias que recusaram subscrever este pacto - Aliança Operário-Camponesa, Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado e Partido da Democracia Cristã - foram, por este motivo, excluídas das eleições.

Só a 25 de Abril de 1976, quando os portugueses puderam escolher livremente - e sem anátemas a partidos políticos - o primeiro elenco da nova legislatura, coincidindo com a entrada em vigor da Constituição, ficou cumprido na íntegra o desígnio dos pioneiros republicanos, idealistas e sonhadores, do início do século XX. Foi preciso esperar 66 anos.

Ausentes

Pedro Correia, 03.04.24

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BE e PCP decidiram ontem não comparecer à cerimónia de posse do XXIV Governo Constitucional, no Palácio Nacional da Ajuda.

Esta ausência simultânea dos dois parceiros do PS na defunta geringonça revela muito. Nada abonatório para ambos os partidos, que ocupam hoje apenas nove dos 230 assentos na Assembleia da República.

Falta de estatura institucional, falta de sentido de Estado, falta de espírito democrático, falta de ética republicana.

Pensamento da semana

Pedro Correia, 02.12.23

Quando me perguntam se sou republicano ou monárquico, costumo responder: sou republinárquico, por vezes monarquicano.

Por outras palavras: a questão da forma do Estado não se colocou às pessoas da minha geração. Colocou-se, isso sim, a questão do sistema político. E tanto há democracia em regimes monárquicos como em regimes republicanos. Mas não esqueçamos que quase todos os sistemas totalitários do século XX foram republicanos. Talvez não seja politicamente correcto sublinhar isto, mas é verdade.

 

Este pensamento acompanha o DELITO DE OPINIÃO durante toda a semana

 

Os nomes de reis e presidentes

Pedro Correia, 17.03.23

  

 

Ao longo de 770 anos da monarquia portuguesa, houve apenas 16 nomes no cargo supremo do Estado – 15 masculinos e um feminino.

Concretamente, sentaram-se no trono seis reis de nome Afonso, outros seis de nome João e cinco reis chamados Pedro. Nomes de monarcas foram também Sancho (dois reis), Dinis (um), Fernando (dois), Duarte (um), Manuel (dois), Henrique (um), Sebastião (um), Filipe (três), José (um), Miguel (um), Luís (um) e Carlos (um). Além de duas rainhas chamadas Maria, que ascenderam ao trono por morte ou abdicação de seus pais, D. José e D. Pedro IV.

A implantação da república, há cem anos, permitiu elevar à chefia do Estado alguns nomes próprios que seriam inimagináveis num monarca. Só a república nos deu TeófilosSidóniosBernardinosÓscaresHiginos e Américos. Só em república alguém chamado Aníbal atingiu o cume da pirâmide do Estado. E o mesmo pode dizer-se de Marcelo, que nunca foi nome de rei.

Mas o nome mais republicano, aparentemente, é António – único com que foram baptizados presidentes dos três ciclos republicanos ao longo deste quase século. Na I República houve António José de Almeida (1919-23), único presidente que completou o seu mandato durante os anos inaugurais do regime. No Estado Novo, pontificou o presidente António Óscar Fragoso Carmona (1926-51), o de mais longo mandato durante a ditadura. E no regime subsequente ao 25 de Abril de 1974 já vamos em três chefes do Estado com esse nome: António Sebastião Ribeiro de Spínola (1974), António dos Santos Ramalho Eanes (1976-86) e Aníbal António Cavaco Silva (2006-2016).

Curiosamente, sendo António um nome tão português, nunca houve um rei António, legalmente reconhecido como tal, embora D. António, prior do Crato, tenha chegado a ser proclamado monarca em 1580 por sectores do povo, inconformados – ao contrário das supostas elites – com a anexação a Espanha. Já Manuel é um nome comum a reis e presidentes: o primeiro Chefe do Estado em república foi Manuel de Arriaga (1911-15), o último da I República foi Manuel Teixeira Gomes (1923-25). E também tinha esse nome o primeiro líder do regime ditatorial – o marechal Manuel Gomes da Costa (1926).

 
  
 

Nenhum presidente português terá sofrido tanto no exercício do mandato como o almirante João de Canto e Castro. Não só porque ascendeu ao poder quando era ministro da Marinha, na sequência da trágica morte de Sidónio Pais, baleado na estação do Rossio, em Dezembro de 1918, mas também porque era monárquico. E viu-se forçado a reprimir a revolta monárquica de Janeiro de 1919, restabelecendo a legalidade republicana contra as suas convicções mais íntimas. O seu mandato durou dez meses. Morreu 15 anos depois, totalmente retirado da vida política.

No século XIV, Portugal esteve quase a ter uma rainha chamada Beatriz: era a filha única do rei D. Fernando, falecido em 1383. Mas as cortes de Coimbra negaram-lhe essa pretensão, entregando a coroa a uma nova dinastia, protagonizada pelo Mestre de Aviz, D. João I. Outros príncipes reais faleceram antes de chegar a reis: D. Afonso (seria o VI), filho de D. João II, em 1491; D. Teodósio, primogénito de D. João IV, em 1653; D. José (seria o II), filho de D. Maria I, em 1788; e D. Luís Filipe, filho de D. Carlos, em 1908.

Joaquim Teófilo Fernandes Braga (1915), Bernardino Luís Machado Guimarães (1915-17; 1925-26), Sidónio Bernardino Cardoso da Silva Pais (1917-18), José Mendes Cabeçadas Júnior (1926), Francisco Higino Craveiro Lopes (1951-58), Américo de Deus Rodrigues Thomaz (1958-74), Francisco da Costa Gomes (1974-76), Mário Alberto Nobre Lopes Soares (1986-96) e Jorge Fernando Branco de Sampaio (1996-2006) foram os outros chefes do Estado republicanos, Acrescidos do actual titular, Marcelo Nuno Duarte Rebelo de Sousa, cujo mandato teve início em 2016.

Nenhum Sancho, nenhum Dinis, nenhum Duarte. Nem Henrique, Filipe, Miguel ou Carlos. E sobretudo nem vestígio de Maria: até hoje não houve nenhuma mulher na chefia do Estado republicano.

Neste ponto a monarquia estava mais avançada.

 
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Imagens: D. Afonso Henriques (1); Manuel de Arriaga (2); D. Maria I (3); João Canto e Castro (4)

Efemérides Sangrentas

jpt, 19.10.21

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Dia de efemérides. Passam hoje 35 anos sobre o incidente de Mbuzini, no qual morreu o presidente Machel e quase toda a sua comitiva. Vários amigos e conhecidos moçambicanos assinalam o facto nos seus murais de Facebook - alguns usando imagens do impressionante monumento idealizado pelo arquitecto José Forjaz para colocação no fatídico local. Acidente ou atentado?, continuam as dúvidas, as versões, as crenças, num processo de interpretação da história algo similar ao acontecido com a morte de Sá Carneiro e comitiva.
 
Por cá cumpre-se hoje o centenário do assassinato do primeiro-ministro António Granjo e de vários vultos da instauração da República, a dita "Noite Sangrenta", um dos momentos maiores do terrorismo político durante a I República, perpetrado pelo que se poderá dizer, sob anacronismo limitado, a "extrema-esquerda" terrorista de então. O Pedro Correia aqui no Delito de Opinião convoca o assunto.
 
O resto da sociedade, a corporação historiadora, os colunistas avençados, os "quadros" da função pública? Seguem fiéis militantes da higienização da I República, da produção da "amnésia organizada" sobre esse directo ascendente (republicano e maçónico) do poder socialista de hoje.
 
Nisso não só vigora o silêncio na imprensa. Mas também o popular, pois poucos (se alguns) se lembram de convocar o assunto nos seus murais. Há que preservar o mito da I República benfazeja. E para isso que faz o Estado, os seus oficiais mais importantes? Usa o dia do centenário deste brutal e tão significativo episódio para se congregar, sob o datado e anacrónico molde panteónico, em homenagem a Aristides de Sousa Mendes, morto há 67 anos, nascido a 19 de Julho e falecido a 3 de Abril. Ou seja, nem sequer há um qualquer vínculo simbólico quase inultrapassável para que a cerimónia decorra hoje.
 
Julgo que nunca tinha assistido a tão descarada manipulação da história política portuguesa. Agora venham-me dizer que é preciso derrubar a estátua do João Gonçalves Zarco. E fazer "introduções contextualizadoras" ao Frei João dos Santos...

 

O dia em que a I República morreu

19 de Outubro de 1921

Pedro Correia, 19.10.21

19-de-Outubro-de-1921-A-Noite-em-que-a-Republica-s

 

Faz hoje cem anos, ocorreu uma das páginas mais trágicas dos últimos dois séculos da história de Portugal. A noite em que o presidente do Ministério (cargo equivalente ao primeiro-ministro actual) e dois dos heróis do 5 de Outubro de 1910 foram cobardemente assassinados por uma turba armada, com óbvias ligações à facção mais radical do poder republicano e das suas ramificações, como a Carbonária e a "formiga branca".

Em poucas horas, criminosos com fardas da Marinha e da Guarda Republicana liquidaram António Granjo, António Machado Santos e José Carlos da Maia, entre outros, confirmando a república de Afonso Costa como um regime de terror, aliás fundado no duplo homicídio do Rei D. Carlos e do príncipe real, D. Luís Filipe, em Fevereiro de 1908, e prosseguido no assassínio de Presidente Sidónio Pais, em Dezembro de 1918.

Os vultos que tombaram nessa noite sangrenta de 19 para 20 de Outubro de 1921 simbolizaram o fim precoce desse regime implantado onze anos antes. Em década e meia, a chamada I República teve oito presidentes e 45 governos - qualquer deles sem a menor capacidade para exercer tarefas mínimas de condução do País. Conheceu uma junta revolucionária, diversos pronunciamentos militares, dois períodos de suspensão declarada das garantias constitucionais, atentados bombistas em sessões contínuas, censura à imprensa, presos por delito de opinião, um número infindável de crimes políticos de diversa ordem - grande parte dos quais permaneceu impune.

Viria a cair em definitivo a 28 de Maio de 1926. Mas implodira antes, nessa noite de trevas ocorrida há cem anos exactos. Uma efeméride de que mal se fala, que quase ninguém recorda, que muitos apagaram como se jamais tivesse existido - incluindo vários historiadores com agendas selectivas. 

À época, os maiores críticos da I República não eram monárquicos, ao contrário do que apregoa a vulgata, mas os republicanos mais lúcidos - como os que se reuniam em torno da revista Seara Nova, fundada também há cem anos. No fundo, poucos defendiam uma república onde a oposição era silenciada à bomba e toda a dissidência era paga com a masmorra, o degredo ou a própria vida. Ninguém hoje toleraria viver num regime semelhante a esse.

Tinha pouco mais de 15 anos quando agonizou e morreu. Mas já estava ligada à máquina desde aquela noite sinistra. E quase ninguém chorou por ela.

Ética, substantivo sem adjectivos

Pedro Correia, 27.04.21

Uma vez e outra e outra vejo repetida a estafada expressão "ética republicana". Que nunca me pareceu fazer sentido.

Ética é um conceito absoluto, não relativo. E os parâmetros éticos - como o mandamento "Não matarás" ou o imperativo categórico, de Kant - estão acima de regimes políticos, conjunturais por natureza.

Há sistemas políticos excelentes e péssimos. Mas não existe boa ou má ética. Neste contexto, é sempre oportuno recorrer à dicotomia estabelecida por David Runciman, com a sua questão já clássica: preferíamos viver na monárquica Dinamarca ou na republicana Síria?

A pergunta tem muito de retórico pois a resposta de cada um está conhecida de antemão. E ajuda a confirmar esta evidência, para mim inequívoca: ética é um daqueles substantivos que não necessitam de ser adjectivados. Quando lhe juntamos um qualificativo já estamos a desgraduá-lo.

Não de todos: só da maioria

Pedro Correia, 10.03.21

O Presidente da República não tem de ser "de todos os portugueses": esta foi uma fórmula encontrada em 1976 por António Ramalho Eanes, num contexto histórico muito específico, quando o regime democrático estava a definir os seus contornos e o País escapara à tangente de uma guerra civil que só poderia ter consequências devastadoras. Isabel II é que é a soberana de todos os britânicos, Naruhito é que é o imperador de todos os japoneses. Eis uma das diferenças essenciais entre monarquia e república: um Presidente não pode, e em muitas ocasiões não deve, esconder as suas convicções. Em Portugal compete-lhe - isso sim - cumprir e fazer cumprir a Constituição: se necessário, contra uma parte dos portugueses. Só isto. Que é tudo.

Republinárquico ou monarquicano

Pedro Correia, 06.10.20

A propósito da efeméride de ontem, quando me perguntam se sou republicano ou monárquico, costumo responder: sou republinárquico, por vezes monarquicano.

Por outras palavras: a questão da forma do Estado não se colocou às pessoas da minha geração. Colocou-se, isso sim, a questão do sistema político. E tanto há democracia em regimes monárquicos como em regimes republicanos. Mas não esqueçamos que quase todos os sistemas totalitários do século XX foram republicanos. Talvez não seja politicamente correcto sublinhar isto, mas é verdade.

Foi preciso esperar 66 anos

Pedro Correia, 05.10.20

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José Relvas proclamando a república, em Lisboa, a 5 de Outubro de 1910

 

A propósito do feriado nacional, que hoje se assinala num dia cinzento e chuvoso: tenho ouvido e lido, repetidamente, que o 25 de Abril de 1974 permitiu "devolver" ou "restituir aos portugueses" o direito de voto.

Nada mais errado. Nos primeiros 64 anos de regime republicano os portugueses, em geral, foram tão impedidos de exercer o voto como durante a monarquia constitucional. O rotativismo monárquico assentava no voto masculino censitário, atribuído apenas a detentores de certos rendimentos. Isto prolongou-se, no essencial, pela década e meia inicial de regime republicano - com o direito de voto restringido a homens alfabetizados com mais de 21 anos e contribuintes líquidos, o que deixava de fora cerca de 80% dos potenciais eleitores.

Da monarquia para a república transitaram alguns dos piores vícios do sistema: votos arrebanhados por caciques locais, eleições "amanhadas", vencedor conhecido de antemão. Escritores tão diversos como Eça de Queiroz e Júlio Dinis, nos seus romances, deixaram-nos sugestivos testemunhos deste fenómeno.

 

No essencial, há 110 anos, só mudou a designação do regime e os nomes dos partidos. O próprio Presidente da República, entre 1910 e 1926, nunca foi eleito por sufrágio universal, sendo escolhido por um colégio eleitoral muito restrito, formado pelos representantes das duas câmaras do parlamento.

Houve uma excepção, quando Sidónio Pais instituiu a efémera "República Nova" alargando o direito de voto aos homens maiores de 21 anos, sem excluir os analfabetos, e instituindo o sufrágio directo para a Presidência da República - eleição que ele próprio, sem opositores, venceu em Abril de 1918 com cerca de meio milhão de votos entre 880 mil recenseados. Ao ser assassinado, oito meses depois, tudo voltaria ao mesmo. Até ao golpe de 28 de Maio de 1926, que iniciou um longo período de ditadura republicana em Portugal.

 

É, portanto, errado aludir-se à devolução ou restituição do sufrágio universal, que entre nós só vigorou pela primeira vez em 1975. E mesmo a eleição para a Assembleia Constituinte, realizada a 25 de Abril desse ano, ficou condicionada pela existência prévia de um pacto que os partidos políticos foram obrigados a assinar com o Movimento das Forças Armadas - garante da "legitimidade revolucionária", segundo o jargão da época -, reconhecendo a presença tutelar dos militares junto das instituições políticas. Três forças partidárias que recusaram subscrever este pacto - Aliança Operário-Camponesa, Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado e Partido da Democracia Cristã - foram, por este motivo, excluídas das eleições.

Só no ano seguinte, quando os portugueses puderam escolher livremente - e sem anátemas a partidos políticos - o primeiro elenco da nova legislatura, já sob a vigência da actual Constituição, ficou enfim plenamente cumprido o desígnio de alguns republicanos, idealistas e sonhadores, surgido quase um século antes. Foi preciso esperar 66 anos.

Dois pesos e duas medidas

Pedro Correia, 11.08.20

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Juan Carlos em 1975 com o filho, o actual Rei

 

Dizem-me que alguns dos mais estridentes defensores de José Sócrates no espaço mediático, que nunca cessaram de proclamar a presunção de inocência do antigo primeiro-ministro, encontram-se agora entre os que negam esse mesmo direito constitucional ao Rei emérito de Espanha.

Tomam as imputações feitas ao pai do actual monarca por uma notória trampolineira social como se fossem verdades absolutas, jamais as questionando, e apressam-se a condená-lo na praça pública.

Negando a Juan Carlos o que sempre reclamaram para Sócrates.

 

Duplicidade de critério, dupla moral - admitindo que existe alguma. Dois pesos e duas medidas. Para esta gente, a presunção da inocência cai à medida das conveniências políticas do momento e da trincheira em que se instalam.

Gostem ou não gostem, o emérito não foi constituído arguido, sobre ele não pesa qualquer acusação, tem todo o direito de se deslocar para onde entender e de fixar residência sabe-se lá onde. 

 

Algumas carpideiras poderão acusá-lo de ser mulherengo e trair os votos de fidelidade conjugal feitos à Rainha Sofia, sua legítima mulher desde 1962.

Convenhamos que é uma crítica repassada de moralismo passadista, além de uma invasão da esfera íntima do cidadão Borbón. Aliás também aqui sujeita a duplo critério analítico: não me recordo de ouvir os queixumes destas beatas quando o antigo Presidente francês François Mitterrand foi a enterrar na presença simultânea da esposa, da amante e da filha adolescente nascida fora do longo e aparentemente feliz enlace conjugal com Danielle Mitterrand.

 

Sobra a questão do regime.

A esquerda radical, aliada aos separatistas catalães, pretende transformar um suposto caso de ilícito penal e tributário associado ao pai de Filipe VI em pretexto para proclamar a república. Parece-me algo tão absurdo como se os norte-americanos tivessem aproveitado em 1974 o caso Watergate, que levou à demissão de Richard Nixon, para iniciarem uma acalorada discussão em torno da forma de Estado, admitindo a instauração da monarquia nos EUA.

Acresce que a república esteve sempre associada ao pior da vida política espanhola nos dois curtos períodos em que vigorou, acabando por morrer de implosão. Na primeira versão durou 22 meses, entre Fevereiro de 1873 e Dezembro de 1874. Na segunda, decorreu entre Abril de 1931 e Março de 1939, embora sobre a totalidade do território espanhol só até Julho de 1936, quando eclodiu a guerra civil, que partiu o país ao meio.

Não deixou saudades em qualquer dos casos.

Penso rápido (96)

Pedro Correia, 27.02.20

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A última mulher que figurou na posição dominante da hierarquia do Estado português foi a Rainha D. Maria II, falecida em 1853.

Mais de cem anos de república, com a sua retórica igualitária, revelaram-se incapazes de gerar o que já havia ocorrido na nossa monarquia setecentista e oitocentista: uma mulher no principal plano de representação simbólica e no principal posto de responsabilidade política.

De Sidónio a Marcelo

Pedro Correia, 10.03.18

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«Precursor do que não sabemos,

Passado de um futuro a abrir.»

Fernando Pessoa, À Memória do Presidente-Rei Sidónio Pais

 

A monarquia tem uma indiscutível vantagem comparativa sobre a república no imaginário popular. As meninas e os meninos - de todas as idades - ainda hoje sonham com príncipes e princesas. O regime republicano tentou reconverter símbolos monárquicos ao inventar conceitos como "primeira dama" ou "primeiro cavalheiro", com insucesso generalizado. E, já agora, experimentem dizer a alguém de quem gostam muito: "Tu és para mim como a filha do presidente da república." A reacção será gélida ou de escárnio, compreensivelmente.

Esta vantagem existe a outro nível: um rei ou uma rainha são conhecidos, urbi et orbi, só pelo nome próprio. Sem necessidade de apelidos "legitimadores". E, em regra, nome de rei nunca deixa de estar na moda através dos séculos. Basta lembrar os nossos: do Afonso ao Luís, do João ao Duarte, da Maria ao Manuel. Digo-vos eu, que sou Pedro Miguel (ambos nomes de reis).

 

Mais de cem anos de república deram-nos dezanove chefes do Estado. Mas apenas dois conhecidos pelo nome próprio: o primeiro foi Sidónio, que não por acaso Fernando Pessoa crismou de Presidente-Rei, brevíssimo líder tombado às balas de um assassino, decorrerão em Dezembro de 2018 cem anos exactos; o segundo é o actual inquilino do Palácio de Belém.

Marcelo, apenas Marcelo. Para sempre Marcelo: assim falarão dele os futuros manuais de História.

Entrou ontem no terceiro ano do seu mandato. Que tem sido um mandato feliz, sempre próximo do comum dos portugueses, que o distinguem com a mais franca e calorosa das homenagens, tratando-o pelo primeiro nome.

Em nada diferente dos nossos reis de melhor memória.

A fina flor da República

Pedro Correia, 13.10.17

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Cinco arguidos da Operação Marquês foram distinguidos por Presidentes da República:

 

Henrique Granadeiro. Ramalho Eanes condecorou-o com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo (1979).

José Sócrates. Recebeu a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique das mãos de Jorge Sampaio (2005).

Armando Vara. Agraciado por Jorge Sampaio com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique (2005).

Helder Bataglia. Feito comendador da Ordem do Infante D. Henrique por Cavaco Silva (2007).

Zeinal Bava. Cavaco Silva atribuiu-lhe a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Empresarial (2014).

Nomes para quase todos os gostos

Pedro Correia, 05.10.16

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Ao longo de 770 anos da monarquia portuguesa, houve apenas 16 nomes no cargo supremo do Estado – 15 masculinos e um feminino. Concretamente, sentaram-se no trono seis reis de nome Afonso, outros seis de nome João e cinco reis chamados Pedro. Nomes de monarcas foram também Sancho (dois reis), Dinis (um), Fernando (dois), Duarte (um), Manuel (dois), Henrique (um), Sebastião (um), Filipe (três), José (um), Miguel (um), Luís (um) e Carlos (um). Além de duas rainhas chamadas Maria, que ascenderam ao trono por morte ou abdicação de seus pais, D. José e D. Pedro IV.

A implantação da república, faz hoje 106 anos, permitiu elevar à chefia do Estado alguns nomes próprios que seriam inimagináveis num monarca. Só a república nos deu Teófilos, Sidónios, Bernardinos, Óscares, Higinos e Américos. Só em república alguém chamado Aníbal atingiu o cume da pirâmide do Estado.
Mas o nome mais republicano, aparentemente, é António – único com que foram baptizados presidentes dos três ciclos republicanos ao longo deste século. Na I República houve António José de Almeida (1919-23), único presidente que completou o seu mandato durante os anos inaugurais do regime. No Estado Novo, pontificou o presidente António Óscar Fragoso Carmona (1926-51), o de mais longo mandato republicano. E no regime subsequente ao 25 de Abril de 1974 já vamos em três chefes do Estado com esse nome: António Sebastião Ribeiro de Spínola (1974), António dos Santos Ramalho Eanes (1976-86) e Aníbal António Cavaco Silva (2006-16).
Curiosamente, sendo António um nome tão português, nunca houve um rei António, legalmente reconhecido como tal, embora D. António, prior do Crato, tenha chegado a ser proclamado monarca em 1580 por sectores do povo, inconformados – ao contrário das supostas elites – com a anexação a Espanha. Já Manuel é um nome comum a reis e presidentes: o primeiro Chefe do Estado republicano foi Manuel de Arriaga (1911-15), o último da I República foi Manuel Teixeira Gomes (1923-25). E também tinha esse nome o primeiro líder do regime ditatorial – o marechal Manuel Gomes da Costa (1926).
 

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Nenhum presidente português terá sofrido tanto no exercício do mandato como o almirante João de Canto e Castro. Não só porque ascendeu ao poder quando era ministro da Marinha, na sequência da trágica morte de Sidónio Pais, baleado na estação do Rossio, em Lisboa, a 14 de Dezembro de 1918, mas também porque era monárquico. E viu-se forçado a reprimir a revolta monárquica de Janeiro de 1919, restabelecendo a legalidade republicana contra as suas convicções mais íntimas. O seu mandato durou dez meses. Morreu 15 anos depois, totalmente retirado da vida política.
No século XIV, Portugal esteve quase a ter uma rainha chamada Beatriz: era a filha única do rei D. Fernando, falecido em 1383. Mas as cortes de Coimbra negaram-lhe essa pretensão, entregando a coroa a uma nova dinastia, protagonizada pelo Mestre de Aviz, D. João I. Outros príncipes reais faleceram antes de chegar a reis: D. Afonso (seria o VI), filho de D. João II, em 1491; D. Teodósio, primogénito de D. João IV, em 1653; D. José (seria o II), filho de D. Maria I, em 1788; e D. Luís Filipe, filho de D. Carlos, em 1908.
Joaquim Teófilo Fernandes Braga (1915), Bernardino Luís Machado Guimarães (1915-17; 1925-26), Sidónio Bernardino Cardoso da Silva Pais (1917-18), José Mendes Cabeçadas Júnior (1926), Francisco Higino Craveiro Lopes (1951-58), Américo de Deus Rodrigues Thomaz (1958-74), Francisco da Costa Gomes (1974-76), Mário Alberto Nobre Lopes Soares (1986-96) e Jorge Fernando Branco de Sampaio (1996-2006) foram os outros chefes do Estado republicanos. Há sete meses chegou ao Palácio de Belém Marcelo Nuno Duarte Rebelo de Sousa.
Nenhum Sancho, nenhum Dinis. Nem Henrique, Filipe, Miguel ou Carlos. E sobretudo nem vestígio de Maria: até hoje não houve nenhuma mulher na chefia do Estado republicano.
Neste ponto a monarquia estava mais avançada.
 
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Imagens: D. Afonso Henriques (1); Manuel de Arriaga (2); D. Maria I (3); João Canto e Castro (4)

Depois quero saber dos outros

Sérgio de Almeida Correia, 16.01.15

Congratulo-me com a decisão e a postura assumida pela senhora Presidente do Conselho das Ordens Nacionais. Espero, aliás, que idêntico procedimento seja seguido em relação a todos os que se encontram na mesma situação ou que venham a estar. Não só por respeito pelo princípio da igualdade mas, igualmente, para que aos poucos se possa ir corrigindo a desbunda anual da atribuição de comendas e medalhas às mais obscuras personagens, protegendo-se aqueles que efectivamente as mereceram e não podem ficar no mesmo saco de quem, como se vê, não foi digno de as merecer.

E também espero que a cor política, seja ela rosa, laranja, azul bebé ou amarelo às riscas, não seja impedimento à actuação dos agentes do Estado que têm a responsabilidade de ajudar a República a recuperar, aos poucos, os seus princípios e a sua própria dignidade, deixando de ofender os portugueses e quem, como o Infante D. Henrique, não devia ter o seu nome envolvido no escândalo.

Escusava de ser assim, mas se a correcção da falta de critério, e também de algum bom senso de quem as tem proposto e atribuído ao longo de 40 anos de democracia, não pode ser feita de outra forma, então que seja assim. Já basta a choldra anual.

Referendo, república, democracia e monarquia

Rui Rocha, 05.06.14

Há dias defendi que a abdicação de Juan Carlos abre uma oportunidade para a realização de um referendo em Espanha sobre a sua forma de organização política. Alguns leitores sugeriram, a propósito, que também em Portugal devíamos ter referendo. Quem defende esta posição parece partir do pressuposto que república e monarquia têm o mesmo ponto de partida. Que, de uma certa forma, são soluções simétricas. Ora, parece-me que não é bem assim. Escolher quem representa o povo regular e periodicamente em eleições é bem diferente de ter o povo representado por quem ostenta o direito originário a um trono. Se quisermos ser realistas, amigos monárquicos, a comparação nem deveria ser entre república e monarquia, mas sim entre democracia e monarquia. Porque o que é realmente diferenciador é a distância que vai entre eleição e sucessão. A legitimidade que se renova periodicamente numa situação e na outra... não. Outro argumento utilizado em defesa da monarquia está relacionado com factos como a república, neste caso esta nossa, ter cometido três bancarrotas em cerca de quarenta anos. Aqui, novamente, o pressuposto está errado. A comparação fundamental diz respeito, repito, ao ponto de partida (exactamente, eleição vs sucessão) e não ao ponto de chegada. Que a(s) nossa(s) e as outras república(s) estão cheias de maus exemplos, insucessos e líderes pouco recomendáveis? É tão verdadeiro como dizer que a(s) nossa(s) monarquia(s) e as outras estão cheias de exemplos de corruptos, ociosos, imbecis e putanheiros. Quer tudo isto dizer, então, que é disparatada a proposta de referendo sobre a nossa actual forma de governo? Penso que não. Assim como o fim de 39 anos de reinado constituem o momento certo para permitir aos cidadãos que se pronunciem em Espanha, quarenta anos desta fase de república também são tempo suficiente para possamos debater e decidir a nossa forma de organização política. Todavia, estava capaz de jurar pelos pêlos pretéritos e futuros do bigode de D. Duarte de Bragança que os próprios monárquicos defendem, neste momento, o referendo com pouca convicção. Mas, em todo o caso, que se faça. E não pretendo terminar sem esclaracer que não tenho qualquer má vontade especial contra reis e tal. Simpatizo mais com uns do que com outros, é certo. Em geral, prefiro os de ouros aos de espadas.

Ao menos a república

José Navarro de Andrade, 06.10.12

 

Comemorar a República é uma redundância. A República é tão evidente que resiste ao ultraje da bandeira içada ao contrário, ao discurso pavorosamente anódino do Presidente, à ausência acobardada do Primeiro-Ministro e à prestimosa atenção que as televisões deram à pobre senhora que invadiu os Paços do Concelho, abrindo um notável precedente aos próximos desagradados que desejarem tempo de antena.

Na verdade os únicos que celebram decentemente a república são os monárquicos. Por uma vez alheiam-se das rancorosas questiúnculas em que andam envolvidos há 102 anos, interrompem as verrinosas disputas em torno de árvores genealógicas, pouquíssimas anteriores a 1850, ou seja mais jovens do que um pinheiro manso que está lá no quintal, e suspendem a bacoca exibição de petulâncias para as revistas cor-de-rosa.

Neste dia 5 de Outubro e ao contrário do que sucedeu há 102 anos, os monárquicos vociferam à uma certas nulidades sobre o regime, apontando a Escandinávia como o suprassumo da democracia coroada como quem diz que “democracia” e “monarquia” fossem consequência e causa indissociáveis. Mas tal como há 102 se esqueceram de engrossar o punhado de fuzis que Paiva Couceiro debalde tentou arregimentar durante todo o dia 5 de Outubro, saltitando pateticamente de regimento em regimento só para dar com portões fechados, também agora os monárquicos lusos se esquecem de elogiar as primícias de monarquias como a da Arábia Saudita, a do Brunei ou – a melhor de todas – a do Nepal, cujo príncipe herdeiro, decerto por via da excelsa educação recebida, metralhou toda a família num jantar à conta de um namorico mal aceite pela mãe – mimosos regimes estas monarquias, sem dúvida.

Repare-se na foto supra. O reizinho, sua mamã e avó roçam os veludos no estreito areal da Ericeira, prestes a embarcarem no iate real, donde partirão para sempre da nossa costa. Lá cima, no paredão, despontam as cabecinhas dos populares observando tão pungente espectáculo – em silêncio absoluto, segundo rezam as crónicas coevas. Podia lá ser mais triste a decadência última dos Braganças.

É verdade que a I República foi uma trafulhice, a II uma ditadura e esta III já não está a correr tão bem como devia. Face isto, a actual putativa cabeça coroada, não deslustrando a podridão miguelista do seus genes, e nem um pio, quanto mais uma palavra de conforto, dele temos ouvido. Fica assim provado que tudo poderia ser ainda pior, fosse Portugal uma monarquia em vez de república.