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Delito de Opinião

O que diz Rentes de Carvalho

«Sou tão português que até dói»

Pedro Correia, 04.08.22

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Esta semana, um pouco ao acaso, dei ordem ao comando para ir saltitando de canal em canal. Por sorte, fixou-se na RTP 3, quando começava uma entrevista a José Rentes de Carvalho conduzida por Fátima Campos Ferreira, jornalista que consegue ser mais que entrevistadora: é uma verdadeira conversadora. 

Foi talvez o melhor trabalho jornalístico que vi até hoje sobre o inspirado autor de obras que tanto me cativaram, como Montedor e Ernestina. Tendo em pano de fundo a aldeia ancestral do escritor - Estevais, no concelho de Mogadouro, emoldurada pelas milenares fragas transmontanas.

Com a sabedoria dos seus 92 anos, e sem necessidade de fazer vénia seja a quem for, Rentes de Carvalho fala livremente do que pensa sobre os mais diversos assuntos. E desenrola o fio da memória, recordando os dias remotos da infância, quando a viagem entre o Porto e a aldeia exigia doze penosas horas de comboio. Hoje não é possível: o edifício da estação ainda lá se encontra mas os carris desapareceram e o transporte ferroviário há muito abandonou aquelas paragens descuradas pelos sucessivos titulares do poder político. Na última década, Mogadouro perdeu cerca de 20% da sua população.

 

Anotei algumas frases deste homem que foi guitarrista de Hermínia Silva, exerceu jornalismo no Brasil, deu aulas e publicou livros na Holanda, conheceu celebridades como Luis Buñuel e Vittorio de Sica em Paris, e se tornou um verdadeiro cidadão do mundo. Sem esquecer a voz do sangue nem as raízes onde forjou a identidade.

Aqui as reproduzo, com o devido aplauso a este nosso prezado confrade da blogosfera, fundador e prolífico autor do Tempo Contado:

 

«No escritor, o talento está em ter muitas pepitas de ouro, que são as palavras da língua portuguesa, e aproveitar uma ou outra com jeitinho.»

«O jornalismo ensina a ser rápido e breve, a simplificar, a não fazer farfalhas.»

«Eu vivi da língua portuguesa, nasci com a língua portuguesa, alimentei-me da língua portuguesa, ensinei a língua portuguesa. A língua portuguesa deu-me tudo aquilo que tenho.»

«O que mais me prende ao meu país é a língua. As pessoas em segundo lugar, mas a língua em primeiro.»

«Sou português portuguesíssimo, até à medula. Sou tão português que até dói.»

 

Para quem não viu, fica a sugestão. Esta entrevista, inserida na rubrica Primeira Pessoa, pode ser revisitada na página digital da RTP. Bem merece.

 

ADENDA: Acabo de saber, visitando o seu blogue, que Rentes de Carvalho está hospitalizado com covid-19. Daqui lhe envio votos de boas e rápidas melhoras.

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 05.09.21

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Livro oito: Ernestina, de J. Rentes de Carvalho

Edição Quetzal, 2018

317 páginas

 

Deliciosa narrativa autobiográfica, comovente (mas nunca lamechas ou piegas) homenagem de Rentes de Carvalho à sua família - povoada de luzes e sombras, como qualquer outra. Na linha de obras como A Escola do Paraíso, de José Rodrigues Miguéis, ou do assumidamente autobiográfico O Mundo à Sua Procura, de Ruben A. E também um impressionante retrato do Portugal do seu tempo de rapaz, repleto de assimetrias: viajar do Porto a Trás-os-Montes naquelas décadas de 30 e 40, por exemplo, era como mudar de continente. 

Ernestina - publicado pela primeira vez em 1998, em homenagem explícita à mãe do autor, e alvo de sucessivas reedições - estabelece uma espécie de rima interna com Montedor, seu romance de estreia, que logo em 1968 mereceu elogios de José Saramago: «O autor dá-nos o quase esquecido prazer de uma linguagem em que a simplicidade vai de par com a riqueza (...), decide sugerir e propor, em vez de explicar e impor.»

Transmontano há muito radicado em Amesterdão, onde leccionou Literatura Portuguesa entre 1956 e 1988, sem renegar as raízes em Estevais (concelho de Mogadouro), Rentes de Carvalho tem uma obra originalíssima. Cultivando o realismo despojado de rótulos doutrinários e assumindo sem complexos a plena apetência por contar histórias. De modo tão vívido como se viajássemos com ele àqueles dias em que a pobreza dominava a paisagem quotidiana do interior rural e a inscrevia como destino inelutável, em chocante contraste com o conforto usufruído pela burguesia citadina.

«Ninguém se lembraria então de associar a estrumeira da rua e a das casas - onde os animais tinham estábulo no rés-do-chão - com as terríveis doenças que os afligiam. Poucos eram também os que escapavam às "febres", a malária que os punha escaveirados, magros como espetos, e os atormentava no pino da canícula com calafrios que nenhum lume aquecia, seguidos de ardores que pareciam os das chamas do inferno.»

Memórias? Ficção? Crónica romanceada? De tudo um pouco. Os rótulos são o que menos interessa. Isto é literatura. Portuguesa. Da melhor.

 

Sugestão 8 de 2016:

Todos os Fogos o Fogo, de Julio Cortázar (Cavalo de Ferro)

Sugestão 8 de 2017:

Prantos, Amores e Outros Desvarios, de Teolinda Gersão (Porto Editora)

Sugestão 8 de 2018:

Quem Meteu a Mão na Caixa, de Helena Garrido (Contraponto)

Sugestão 8 de 2019:

Portugal Contemporâneo, de Oliveira Martins (Bookbuilders)

Sugestão 8 de 2020:

A Ideologia Afrocentrista à Conquista da História, de François-Xavier Fauvelle (Guerra & Paz)

Rentes de Carvalho e a amizade na política

José António Abreu, 09.09.11
Rentes de Carvalho sobre a nossa ideia da amizade na política. Brilhante, como sempre. Permito-me – o desplante! – apenas uma achega: nós acreditamos que a amizade (ou aquilo que lhe faz as vezes) é importante na política por estarmos habituados a que seja importante para tudo. Por estarmos habituados a que, neste rectangulozinho deprimido e tantas vezes deprimente, as coisas se resolvam (e a formulação é propositada, já que resolver é especialidade da casa enquanto prever e planear são verbos remetidos a utilização retórica) através da relação pessoal (do favorzinho, do jeitinho, da cunha) e não da competência nem da assumpção de responsabilidades. Já era tempo de crescermos.

Blogue da Semana

Sérgio de Almeida Correia, 16.08.10

Continua a ser entre nós um ilustre desconhecido. Mas talvez seja, com José Gil e António Barreto, um dos portugueses que melhor nos conhece. Em especial, porque consegue reunir numa só visão a interioridade transmontana com o cosmopolitismo europeu e a investigação académica. Os seus textos são tão discretos quanto o seu autor, o que, vendo a sua qualidade, só abona a favor de ambos. Poucos portugueses terão feito tanto por nós, pela nossa identidade e visão do mundo, como ele fez. Lá fora. O texto que ontem republicou é a todos os títulos notável, pela sua claridade e singeleza. Rentes de Carvalho é um dos melhores. Por isso mesmo é que o Tempo Contado foge aos cânones da blogosfera. É a minha escolha desta semana.