Até que enfim que na AR se falou de algo importante
O momento em que a questão foi colocada não seria o mais adequado. A forma como foi colocada também não. E o que se seguiu não devia ter tido o relevo que teve. Não porque a questão não deva ser tratada e as regras actualmente vigentes questionadas, mas porque uma vez mais as intervenções e o padrão da linguagem utilizada continuam a deslustrar a actividade parlamentar e a desprestigiar a democracia parlamentar. Contudo, tirando esses aspectos mais formais do que substanciais, quanto ao essencial há muito que a questão devia ter sido colocada.
Todos sabem como o Partido Ecologista "Os Verdes" (PEV) nasceu. Ainda recentemente Zita Seabra, por ocasião de uma conferência promovida na Universidade Nova, a propósito das celebrações dos 40 anos do 25 de Abril, em que também participou Augusto Santos Silva, teve oportunidade de recordar a história. Isto é, a "encomenda" que lhe foi feita por Álvaro Cunhal no sentido de promover e dinamizar a criação desse apêndice do PCP. Mas não é isso que quanto a mim estará hoje em causa. Isso pertence ao passado e a nós interessa-nos o presente e o futuro.
Desde a sua gestação, tudo o que o PEV fez "sozinho" limitou-se à formalização da sua existência. Nunca participou por si em qualquer acto eleitoral que se visse apresentando listas próprias, fazendo-o sempre integrado nos alegres comboios e caravanas do PCP. Repare-se que não vejo nisso qualquer problema. Cada partido, desde que tenha existência legal e cumpra as regras, participa nos actos eleitorais como muito bem entenda.
Parece-me, no entanto, perfeitamente legítimo que se questione a representatividade de partidos que nunca se apresentaram a eleições. Não há nada que o impeça, nem creio que em democracia haja temas que não possam ou não devam ser tratados, desde que a todos interessem, o que me parece ser o caso.
Porém, o que efectivamente deverá ser questionado e reflectido é a meu ver mais vasto e traduzir-se-á em saber se as actuais regras que prevêem e regulam a criação, a actividade e manutenção dos partidos políticos são adequadas. Ou se não será tempo de se proceder à sua revisão de fundo.
A regulação dos partidos políticos por parte dos Estados, para além do aspecto propriamente legitimador[1] e regulador, apresenta uma outra vertente, pois que quando o legislador impõe o respeito por patamares mínimos para a formalização da constituição de partidos, para a apresentação de candidatos ou para a sua manutenção, está a condicionar ou a viabilizar a entrada na arena política de contendores, dessa forma também influenciando o sistema de partidos. Este aspecto pode concorrer, como já referido por alguns autores, para um aumento do potencial de cartelização dos partidos e do sistema de partidos (Rashkova e van Biezen, 2014: 268).
Quanto às finalidades das leis dos partidos, o alinhamento seguido por Katz afigura-se ainda ser aquele que melhor reflecte essa realidade. Para este autor, existirão três propósitos fundamentais na aprovação desse tipo de normas: a) O reconhecimento da qualidade do partido que irá condicionar a sua participação nos sufrágios, a alocação de recursos públicos e o papel dos partidos no governo; b) A regulação das actividades em que os partidos se podem envolver; c) A regulação interna das suas estruturas e modos de actuação que serão compatíveis com o respectivo estatuto (Katz, 2004).
O facto da nossa lei dos partidos ser uma das mais desenvolvidas a nível europeu, à semelhança do que acontece, por exemplo, com as leis da Letónia, Lituânia, Polónia, Roménia, Espanha, não faz dela uma lei actual. Pessoalmente entendo que os actuais instrumentos de regulação dos partidos políticos estão ultrapassados, sendo questionável se, por exemplo, não deveríamos, à semelhança do que acontece com outros países, obrigá-los a ter registos actualizados anualmente dos seus militantes, devendo ser fornecidas listagens completas ao Tribunal Constitucional - por onde se possa facilmente depreender as oscilações no seu número, sabendo exactamente quantos entraram e quantos saíram e não apenas os números dos primeiros - e se não deveriam ser introduzidas cláusulas que impusessem patamares mínimos de votação ou a obrigatoriedade da sua extinção caso não participassem, sozinhos ou coligados, durante um certo período de tempo em actos eleitorais. O calvário que é conseguir obter informação, que por natureza devia ser pública, junto de alguns partidos políticos com responsabilidades parlamentares, que nem sequer se dão ao trabalho de responder às missivas que nesse sentido lhes são enviadas por quem investiga e precisa da informação para efeitos académicos, ilustra bem a forma desfasada como estas coisas continuam a ser entendidas e vistas pelos próprios partidos, onde toda a informação que não lhes convém é escondida e protegida do público, de investigadores, de simples curiosos que pretendam informar-se. E mesmo em relação àqueles que disponibilizam informação actualizada sobre os seus registos de militantes, por exemplo, verifica-se que há muita informação em falta que devia ser apresentada e disponibilizada publicamente. Ainda recentemente tive oportunidade de comprová-lo. Conhecendo-se os números a nível europeu relativos ao declínio e abandono da militância, e aqueles que em relação a Portugal são conhecidos, foram-me fornecidas indicações, por parte de alguns partidos, que os transformariam em casos únicos no panorama mundial, havendo mesmo um partido em que nunca houve abandonos e o número de novos militantes somou-se sempre ao que vinha do ano anterior, como se nem uma única baixa tivesse ocorrido nos seus cadernos. Nem sequer por falecimento. É sempre a somar.
Por outro lado, também tenho dúvidas, por exemplo, sobre se as regras da capacidade eleitoral activa e passiva dos militantes não deviam ser comuns a todos os partidos. Ou se a situação contributiva dos seus militantes não deverá ser sempre pública. Um partido político não é uma associação privada ou um clube de futebol pelo que as regras de transparência que lhes são aplicáveis têm de ser naturalmente mais exigentes e corporizarem as exigências de uma cidadania mais activa e mais participada, não sendo legítimo, a meu ver, que para manutenção dos seus próprios privilégios vivam cada vez mais afastados dos cidadãos, gozando e dispondo dos recursos do Estado a seu bel-prazer, e só se lembrem dos cidadãos quando pretendem proceder a operações cosméticas de relegitimação social e eleitoral ou por razões ligadas às suas lutas internas pela conquista do poder, como ainda há pouco tempo aconteceu.
[1] - “Just as political power is seen as legitimate when it is established and exercised according to the law, which makes it legally valid, so are political parties” (Rashkova and Van Biezen, 2014: 268)
Katz, Richard S. (2004), Democracy and the Legal Regulation of Political Parties, Paper prepared for USAID’s Conference on ‘Change in Political parties’, Washington D.C., 1 October 2004;
Rashkova, Ekaterina R. e Ingrid van Biezen (2014), The legal regulation of political parties: Contesting or promoting legitimacy, International Political Science Review, Vol. 35(3), 265-274