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Delito de Opinião

Uma imagem do Estado a que isto chegou

Paulo Sousa, 16.12.20

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A conferência de imprensa da DGS de ontem foi liderada pelo Dr. Rui Portugal. Sabemos que a Drª Graça Freitas está infectada com o Covid19, tendo sido por isso substituída por um dos seus Subdirectores-Gerais.

A sua intervenção foi transmitida pela televisão e seguiu directamente para as redes sociais onde foi gozada até à exaustão.

Independentemente do teor das piadas, o que retive foi que este senhor, juntamente com a Drª Graça Freitas, serão dedicados servidores públicos, e não duvido que estejam a empregar o melhor das suas capacidade no combate a esta pandemia. No entanto não pude deixar de me questionar se estas serão as pessoas mais habilitadas para transmitir aos portugueses, com a clareza que se impõe, a informação que importa. Serão estes os técnicos de saúde pública mais capacitados para liderar a DGS, ou apenas os melhores que o Estado consegue atrair e manter nos seus quadros?

Como se podem atrair e manter motivados quadros qualificados? Sabemos que no actual enquadramento legal isso não é possível. E não estamos a falar necessariamente de mais dinheiro mas sim de uma re-organização focada numa correcta gestão de recursos humanos.

Anos e anos de reformas adiadas, motivadas por taticismo político e por ideologia, colocaram o interesse público no fim das prioridades. Quando nos rimos do Dr. Rui Portugal, da mesma forma que nos ríamos da Drª Graça Freitas, estamos no fundo a rir de nós próprios e da nossa incapacidade de nos levarmos a sério.

Mais motivos de orgulho

Sérgio de Almeida Correia, 17.11.15

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Em Novembro de 2012, o primeiro-ministro que já está com guia de marcha, Passos Coelho, anunciava uma "nova fase" de redução da despesa através da reorganização das estruturas e funções do Estado, isto é, "uma transformação para melhor e não uma compressão ou redução daquilo que existia até agora", feita "em nome do interesse comum de todos os portugueses". Muitos acreditaram, outros deram-lhe o benefício da dúvida, alguns, como eu, escaldados por mais de duas décadas de uma governação medíocre conduzida por uma geração de lambões saídos das mais diversas feiras e bailaricos paroquiais, desconfiaram.

Em 30 de Outubro de 2013, corporizando tal anúncio, o Conselho de Ministros aprovou o documento "Um Estado Melhor", contendo a proposta do Governo com o "Guião para a Reforma do Estado", onde entre outras coisas, belíssimas, se podia ler que "[p]arece evidente a necessidade de reduzir estruturalmente a despesa para suportar a moderação da carga fiscal; e parece igualmente pertinente a redução da carga fiscal para acentuar o crescimento económico, único factor que permitirá, por exemplo, corrigir aspectos da perda de rendimento tanto na função pública, como na CGA ". A mim também me parecia evidente.

Por outro lado, referia-se nesse mesmo documento que no plano das políticas públicas optava-se, ficou lá escrito, por um "modelo de Administração Pública que tenha menos funcionários mais bem pagos", prometendo que o "programa das rescisões por mútuo acordo deve ser uma possibilidade permanente, ou seja, um instrumento estável e voluntário de auto-reforma e renovação do Estado". O que, naturalmente, seria alcançado através da "negociação de uma política coordenada entre reformas antecipadas nas Administrações Públicas, objectivos de redução da despesa com pessoal através da requalificação, rescisões e trabalho e reforma a tempo parcial, e os necessários, embora limitados, indicadores de renovação e contratação, nas Administrações Públicas, de modo a garantir o rejuvenescimento do Estado e dos seus serviços". Um mimo.

Em 4 de Junho de 2015, Passos Coelho e Paulo Portas vieram dizer que "[é] com orgulho que podemos dizer que cumprimos o mandato que os nossos compatriotas nos conferiram. Prometemos e cumprimos." Nem mais. Ainda assim houve mais de 700.000 que não concordaram com eles e mais de dois milhões que foram votar nos outros. 

Hoje, que estas coisas vão-se sabendo aos bochechos e sempre depois de se votar, embora já houvesse a suspeita do que se estava a passar, ficámos a saber, de acordo com o relato do Público desta manhã (p. 24), com chamada à primeira página, que "[p]ela primeira vez desde a chegada da troika a Portugal, o número de funcionários públicos aumentou no terceiro trimestre deste ano. A conclusão é retirada da Síntese Estatística do Emprego Público, publicada ontem, que dá conta da existência de 649.294 funcionários nas administrações central, local e regional, um aumento de 0,3% em comparação com o ano anterior.

Acresce a isto que "desde o final de 2011, o número de trabalhadores do Estado recuou de forma significativa, mas o ritmo de redução começou a abrandar em meados do ano passado e, agora, a Direcção-Geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP) dá conta de “uma inflexão da trajectória decrescente”, que se traduz em mais 2155 pessoas empregadas do que em 2014".

A notícia esclarece ainda, com base num documento que julgo não ter sido forjado na blogosfera pela oposição esquerdista, que "[e]ntre Janeiro e Setembro de 2014, tinham-se reformado 12.814 funcionários do Estado", mas que este ano, "reformaram-se apenas 5030 pessoas. Em resultado disso, as saídas definitivas (que incluem as aposentações e o fim dos contratos a termo, entre outras) caíram 18%. Ao mesmo tempo, as novas entradas tiveram um incremento de quase 45%, desequilibrando os pratos da balança". 

Finalmente, mesmo sem contar com os números daquelas nomeações feitas à pressa pelo rapaz da Vespa, se repararmos que "os aumentos mais expressivos, em termos absolutos, ocorreram nas escolas (mais 4626 empregos), nos hospitais EPE (mais 1899), nos tribunais (mais 526) e nos centros de saúde (mais 223)", ou seja, na Educação na Saúde e na Justiça, isto é, em áreas do Estado social, cujos serviços são hoje manifestamente piores do que aqueles que havia antes da "reforma do Estado", "reforma" de que os cavalheiros se orgulham, fica-se com a certeza de que o festim, aliás com reflexos evidentes no crescimento do défice público desde a saída daquele sujeito que recorria aos empréstimos do amigo para melhorar o estilo de vida, era para continuar. E sempre com os mesmos a pagarem. Esta é a parte que continua a ser omitida pelos serventuários de serviço nas respectivas "narrativas".

Mas é preciso um parecer?

Sérgio de Almeida Correia, 26.08.15

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A gente sabe que no afã das distribuição de prebendas e das privatizações em cima do joelho, só para cumprir calendários em fim de ciclo e contentar os amigos, há muita coisa que passa despercebida. E também sabemos, por exemplo, que em casos como o da RTP a aquisição dos direitos para a transmissão dos jogos da Liga dos Campeões foi apenas um pretexto para correr com Alberto da Ponte, pois esses mesmo jogos, entretanto, já foram apresentados como um trunfo à beira das eleições. É claro que com o futebol ninguém se chateia, mas a situação deste cavalheiro que o ex-ministro Relvas promoveu inicialmente para um instituto público ultrapassa os limites do decoro, e revela o opróbrio em que medra a reforma do Estado que a coligação PSD/CDS-PP prometeu aos portugueses quando estes correram com José Sócrates.

O problema não é a competência do presidente da PT Portugal ou a legalidade da situação, mesmo que uma "entidade externa", como muitas outras que o governo de Passos Coelho contratou por ajuste directo para não perder tempo, venha dizer que é legal.

Qualquer pessoa decente facilmente compreende que o problema é de moralidade, de ética, de coerência com aquilo que se apregoou e com a agenda que se impôs aos portugueses à revelia do seu contrato eleitoral.

Porque só num Estado doente, em fase terminal de desmantelamento, corroído pelo clientelismo, sem gente às direitas, e com primeiros-ministros e políticos sem estatuto, dependentes desse mesmo Estado, dos partidos e dos empresários que vivem à sombra de ambos, é que se fica à espera de pareceres (pagos com o dinheiro que se desviou da sua segurança social, educação e saúde) para se acabar com o deboche.

A reforma do Estado dá sempre frutos antes das eleições

Sérgio de Almeida Correia, 20.08.15

Sobre a relação entre as vacas e a reforma do Estado

Sérgio de Almeida Correia, 29.05.15

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A senha tinha o número B119. Marcava "Hora 14:15". Do asiático ecrã chegou a informação de que estava a ser atendido o “Utente” com a senha 98. Os “Utentes” estavam todos estrategicamente sentados. Uns de costas para as secretárias onde se desenrolava o atendimento dos outros "Utentes", alguns posicionados lateralmente. Todos virados para o ecrã. Reparei que havia algumas secretárias vazias. Pessoal de férias ou de baixa, pensei. Os números iam passando de acordo com as séries respectivas. De quando em vez lá aparecia um B. Ao mesmo tempo, a televisão dava conta aos “Utentes” da altura do “Cristo Rei”, 75 metros, do autor do projecto do pórtico, do autor da escultura. Também da existência do “castelo de Silves”, que recentemente “beneficiou de obras de conservação e beneficiação”, e dos resultados da natação nacional. E havia estatísticas informando os “Utentes” dos tempos médios de espera e do número dos que foram atendidos no ano anterior. No distrito de Lisboa tinham sido mais de trezentos mil. Mais de três milhões em todo o país. E os tempos de espera andavam pelos 15/20 minutos. Com isto já eram 15 horas. Ou seja, a média do tempo de espera já tinha sido mais do que dobrada. Só comigo. Pelo moderníssimo ecrã, entretanto, ficámos a saber que havia uma diferença entre o atendimento preferencial e o prioritário. Não sei se os outros “Utentes” terão dado pela diferença enquanto as séries e os números iam caindo, mas toda aquela gente alternava os olhos entre o ecrã do telemóvel, o dos números das senhas e a decifração do significado da tatuagem na coxa de uma “Utente” mais encalorada. “Ó senhor João, peço-lhe imensa desculpa mas eu agora não posso sair daqui, estou nas Finanças e está quase na minha vez. Se não puder esperar combinamos outro dia, as cortinas também não me estão a fazer muita falta. Tira as medidas noutro dia. Eu sei que lhe causa transtorno, peço-lhe imensa desculpa, mas eu não tenho culpa. É por causa do IRS, ainda tenho vinte pessoas à minha frente”. Pelos toques dos telemóveis e pela conversa percebia-se que havia gente de todas as origens. Pelo cheiro idem. Todos de olhos postos no “Cristo Rei”, no “castelo de Silves”, que fica na “região do Algarve”, e nos números das senhas. Eram 15:58 quando disparou mais um toque. Senha B119. Era a minha. Às 16:05 estava despachado. Valeu pela rapidez do atendimento. E pela simpatia de quem na linha da frente aguenta o primeiro embate.

Quanto ao mais, ninguém me esclareceu se os tempos médios de espera incluem as senhas sem dono, nem se esses valores contemplam nas estatísticas as senhas daqueles que, à cautela, sem saberem ao certo qual das séries lhes diz respeito, tiram logo uma de cada série. Em todo o caso, isso não é relevante.

Relevante é ver como a coisa funciona. E saber como se passam duas horas de uma tarde – de trabalho para os outros - numa repartição de finanças devido ao facto dos bancos terem sido generosamente aliviados da obrigação de remeterem aos contribuintes as declarações para efeitos de IRS de onde antes constava o valor dos juros colocados à disposição dos depositantes e os montantes retidos na fonte. Como essa obrigação deixou de existir, e agora o contribuinte tem de andar a verificar extracto a extracto, banco a banco, os valores que lhe foram lançados no ano anterior, havendo alguns bancos que se limitam a lançar valores líquidos, o desgraçado do “sistema” nunca está satisfeito. Vai daí avisa o “Utente”, lançando um "alerta". Este, se quiser resolver o problema dentro do prazo de entrega da decclaração e sem coimas, terá de ir às Finanças apurar quais as informações que foram remetidas ao Estado pelas instituições bancárias, única forma de fazer coincidir os valores de uns com os de outros e de se eliminarem os “alertas”, regularizando as situações pendentes.

Aquilo que era anteriormente fácil e se resumia à recolha da informação constante das declarações recebidas das instituições bancárias com a indicação das retenções na fonte, tornou-se em mais uma dor de cabeça e uma perda de tempo que em nada contribui para o aumento da produtividade. Estando tudo informatizado e enviando os bancos tanto lixo para as caixas de correio electrónicas dos contribuintes, também poderiam remeter-lhes a informação que a seu respeito enviam para o Estado, como antes faziam, facilitando-lhes a vida em matéria de preenchimento das declarações de IRS, evitando-lhes “alertas” e longas esperas nas repartições.

Durante a manhã desse mesmo dia, no Fórum da TSF, depois de múltiplas críticas e de declarações desencontradas, tudo, diziam, por causa de uma omissão do dever de informação por parte do Instituto da Segurança Social, um vice-presidente deste, em resposta à pergunta do jornalista sobre a razão para a entrega de uma declaração que não servia para nada, esclarecia o entrevistador e os ouvintes, sem responder à questão, brandindo com o número do artigo que previa a sua entrega. Porque se tratava de uma “exigência legal” que se não fosse cumprida daria lugar à aplicação de uma coima. Duzentos e cinquenta euros era o valor da dita. Mas para que servia tal declaração, se em 2014 milhares de contribuintes não a entregaram e não lhes foram instaurados quaisquer processos pela sua falta?, insistia o jornalista, ao que o tal “responsável” retorquia que era uma “exigência legal”. O artigo, a culpa era do artigo, da “exigência legal”. A declaração podia não servir para nada mas era uma “exigência legal”. E as exigências legais, por mais absurdas que sejam, cumprem-se. Sem questionar. Como as ordens dadas na caserna pelo troglodita de serviço. Ponto final.

 

A reforma do Estado tem tanto de surreal quanto de banha da cobra. Basta ouvir as queixas, escutar o que dizem os responsáveis, a funcionária das Finanças, o contabilista da Saúde ou o distribuidor dos vales da Segurança Social, e depois fazer uma visita aos serviços para se avaliar da seriedade do que dizem. Ou melhor, da falta dela. Em Portugal, em rigor, ninguém quer reformar o Estado. Porque o Estado são eles, os reformadores. Os reformadores são uma espécie de leiteiros certificados. O contribuinte não passa de uma vaca à qual se espremem as tetas enquanto derem leite. O Estado só é reformável em gráficos pagos a peso de ouro e em folhas de Excel. O fisco orgulha-se do número de “Utentes” que diariamente despacha. Isto é, do número de vacas que ordenha nas suas repartições. Em todo o país, pelo processo da senha, foram mais de três milhões só num ano. Todas com um número, todas devidamente marcadas, aguardando que as senhas passem, faça sol ou faça chuva, até que chegue a sua vez de serem espremidas. Ou encaminhadas para outra secção. Às vezes, quando secam, mandam-nas para o matadouro. Executam-nas. Abatem-nas.

Se o sistema funcionasse o número de “Utentes” nas repartições tenderia a diminuir. E não a aumentar. A ineficiência do sistema, ao contrário do que eles pensam, vê-se no número dos que os demandam. No número de vacas que não podendo pastar fica a ruminar nas repartições diante de um ecrã, durante horas a fio. Estas não sorriem. E o que se vê é que o número aumenta à medida que escasseia o leite que sai do gado para alimentar os leiteiros e respectivas famílias. Há leiteiros tão incompetentes que até disto se orgulham, não vendo que se o leite falta para eles também faltará para os bezerros. É por isso que já há quem os tome por bois. Aos leiteiros. Um dia aperceber-se-ão disso.

Quando se acabarem as meias-solas ... voltaremos a andar descalços

Sérgio de Almeida Correia, 28.04.14

Os portugueses não só continuam a empobrecer e a pagar mais pelo que tinham, como vêem regredir diariamente a qualidade dos serviços que um Estado cada vez mais mínimo presta aos seus cidadãos, incluindo em coisas tão básicas como o cartão de cidadão. Era esta a reforma que prometiam.

O brainstorming da reforma do estado

João André, 31.10.13

Na empresa onde trabalho (indústria química) há de tempos a tempos um brainstorming (tem outro nome interno) subordinado a um tema escolhido antecipadamente. Durante o período definido para tal, os membros dessa jam podem lançar as suas ideias, com os motivos para a apresentarem, e uma indicação dos benefícios para a empresa, bem como porque razão faz sentido a empresa avançar com ela (experiência prévia, novos mercados, etc). No final, os temas mais votados pelos participantes e seleccionados por dois ou três painéis internos de especialistas e gestores acabam por receber uma dotação orçamental para serem desenvolvidos.

 

O Guião para a Reforma do Estado parece ter saído de uma sessão de brainstorming. O governo chegou ao pé dos seus funcionários, dos (sub)secretários de estado, dos especialistas, colaboradores, motoristas e quiçá empregadas de limpeza, e perguntou-lhes se teriam ideias para a reforma. O governo pegou nelas, decidiu-se por retirar aquelas que não fariam muito sentido (baixar o preço do Ajax limpa-vidros não fará muito sentido, suponho) e agora apresentou ao público em geral o apanhado.

 

O próximo passo será então a votação (eleições, claro) e a avaliação final pelo painel de especialistas e gestores (a troika tem mais gestores que especialistas, mas enfim). A diferença entre o Guião e o brainstorming aqui da casa é apenas e só uma: a segunda procura apenas uma ou duas ideias, as quais têm que estar subordinadas à estratégia da empresa; já o Guião para a Reforma do Estado acaba por ir pedir ideias que justifiquem a sua existência. O guiãozinho é portanto uma inutilidade absoluta, independentemente dos números de circo que sirvam para o apresentar.