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Delito de Opinião

A demagogia do "não nos encostem à parede"!

jpt, 12.01.25

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A fotografia é da manifestação de ontem promovida "contra o racismo", e que teve bastante afluência. A imagem colhida é significante: à frente vem um - muito provavelmente português oriundo de Portugal - decano cabeludo, comunista. Como tal um defensor de regimes genocidas, sociocidas, ditatoriais, sobreexploratórios dos trabalhadores, repressores dos direitos individuais e colectivos, perseguidores de comunidades estrangeiras e imigrantes. A sua inserção nesta acção alheia ao PCP aventa que o proto-ancião pertence ou simpatiza ao arquipélago de grupelhos m-l, tornando-o pior ainda, um abjecto hipócrita que passou a sua já longa vida dizendo-se fiel a princípios exactamente inversos ao que defende. Se é ele uma contradição visual, um careca cabeludo, não o é intelectualmente, mas apenas um aldrabão ideológico. Tal como o são os seus correligionários - eu recordo o que passou despercebido, a actual coordenadora do BE atreveu-se a defender a teoria imperialista de Hitler na televisão e depois foi eleita ao posto de chefe da coligação de grupelhos, demonstrando o grau de abjecção dessa gente.

Atrás dele vêm inúmeros manifestantes cujos fenotipos indiciam serem estrangeiros ou ex-estrangeiros, provenientes do subcontinente indiano. São imigrantes, quase de certeza explorados pelos seus empregadores - alguns portugueses, muitos estrangeiros, até seus compatriotas. Estão ali mobilizados por comunistas portugueses, mais ou menos aburguesados - esta peça da Lusa é antológica, entrevistando o antigo candidato do MDP/CDE (um artista que agora se diz nada advindo do marxismo) Ricardo Sá Fernandes, que se lamenta de ter chegado atrasado à manifestação por ter "estado num almoço que acabou tarde". Este tipo de gente anda há tanto tempo na berlinda que nem tem noção do seu ridículo.

E esse disparatado "manifestante" representa também o sentir dos feixes de "classe média" lisboeta que engrossaram a manifestação. Para esta gente - alguma viverá em condomínios, a maioria nas zonas "gentrificadas" - as preocupações com a segurança são coisa da "extrema-direita" e dos populistas do "Correio da Manhã". São contra a polícia - lembra-lhes "a PIDE" mesmo que nunca a tenham visto e muito menos enfrentado. E são contra a existência de países, mesmo que não o percebam - só isso pode justificar que venham ladeando tipos que dizem "ninguém é ilegal".

Os mobilizados de origem estrangeira estão ali "contra o racismo", irados contra a polícia num processo político iniciado pela célebre rusga da rua do Benformoso. São explorados laboralmente? Por quem? São perseguidos pela legislação portuguesa? Por quais leis e suas interpretações? Pela polícia? Quantas detenções ilegais, quantos espancamentos, quantas violações de direitos, quantos atentados às suas propriedades cometeram os polícias?

Os polícias fizeram uma rusga na tal rua e encostaram os circunscritos à parede? Espancaram alguém, detiveram alguém ilegalmente, destrataram alguém?

1. No fim-de-semana passado aqui nos Olivais, na praça da Cidade do Luso, defronte à Escola Fernando Pessoa e aos dois restaurantes mais populares do bairro, houve uma rusga. Foram ali detidos cerca de 15 indivíduos - oriundos de Portugal, fregueses consabidos. Alguns algemados. Conta quem viu - entre risos - que um deles, personagem conhecida destas redondezas desde os "velhos tempos" da nossa juventude - e sempre arisco à estrita legalidade e às preocupações sanitárias -, tanto protestou que lá foi ... desalgemado. Vamos manifestar-nos aqui no bairro?

2. Há algum tempo um polícia matou um cidadão na Cova da Moura. Um drama, irreparável. E sem qualquer justificação. Seguiram-se "desacatos" (como lhes chamou alguma imprensa) durante dias, com destruição de propriedade pública e, acima de tudo, privada, em protestos contra a polícia devido ao seu racismo generalizado - a vítima era negro, ou mulato ("afrodescendente" no trôpego linguajar de agora). No fim-de-semana seguinte houve uma manifestação em Lisboa, congregando algumas centenas de pessoas, na sua maioria moçambicanos, na sua esmagadora maioria negros - provocada pela situação política no seu país. A reportagem televisiva que vi encontrou-os no final da Av. Fontes Pereira de Melo, entrando no Marquês. Naquele sábado vespertino vinham enquadrados pela polícia - o trânsito automóvel não tinha sido cortado, apenas gerido segundo a passagem da manifestação. À entrada do Marquês os manifestantes entoaram a palavra de ordem "Isto é que é polícia!!!". Nem um jornalista - nem um - pegou no assunto, que não dá jeito para o chinfrim dos esquerdalhos de "classe média".

Ora se alguém quiser ser um abjecto demagogo - como o tal Sá Fernandes, não o Zé mas o mano, ou as Mortáguas ou os Tavares, mais o pateta cabeludo careca da fotografia - poderá dizer "estão a ver, os pretinhos moçambicanos gostam da nossa magnífica polícia". Ou então pode ter a decência de contextualizar os fenómenos (no caso dos manifestantes moçambicanos era uma óbvia invectiva, comparativa, contra a feroz polícia do seu país, contrastante com a - efectiva - urbanidade da nossa).

3. Nem de propósito hoje, no dia seguinte à manifestação, na tal rua do Benformoso - onde parece que a polícia não deve entrar - "dois grupos de estrangeiros" (franceses gentrificadores?, norte-americanos em busca da Comporta?, espanhóis turistas?) envolvem-se em pleno dia numa rixa que originou sete feridos, causadas por "armas brancas" (naifas). Os tugas também fazem merda? Claro. É por isso que há rusgas...

Quanto à "classe média" lisboeta que vai às manifestações dos "bem-pensantes", nem um deles se interrogará sobre si-mesmo, sobre a imbecilidade militante que prossegue. E descansadamente, neste domingo, seguirão ao "El Corte Inglés" (ou, alguns, ao São Jorge...). Pois lá, ao menos - e só aqui entre nós - não há imigrantes...

A Assembleia da República e o policiamento comunitário

jpt, 09.10.24

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1. Fervilha o Whatsapp com o reenvio desta recomendação exarada pela Assembleia da República para que se alterem os processos de recrutamento de agentes da PSP e da GNR: mais pano para mangas para aqueles que "dizem o que é preciso ser dito", e que "ninguém tem coragem para dizer"...

Esta (de facto) propaganda parlamentar articular-se-á com a polémica em curso sobre o putativo aumento da criminalidade. É certo que Portugal é um país muito seguro. Mas muitos reclamam sobre a degenerescência actual dessa situação. Os números parecem indicar isso, ainda que estas estatísticas (como tantas outras) sejam sempre discutíveis, e discutidas... O governo, e outros, negam essa realidade, situando-a apenas na crescente sensação de insegurança subjectiva.

2. Não nego a hipótese da actual decadência da efectiva segurança pública (ainda que aqui nos Olivais tudo decorra na paz do Senhor...). Mas talvez muito deste debate público se origine na tal sensação de "insegurança subjectiva". Não creio que esta se deva à "imprensa", como muitos dizem - pois a atracção pelo tópico "criminalidade" é algo antigo na comunicação social. Porventura será alimentada pelas recentes (e legítimas) demonstrações de incómodo laboral efectuadas pelas polícias. E pelo eco (legítimo, ainda que um pouco "aproveitador") que o CHEGA foi fazendo disso.

Outro factor contribuirá para a tal "insegurança subjectiva", velho como o mundo, e nada nosso monopólio. Pois o recente surto imigratório faz medrar um desconforto face ao estrangeiro mais excêntrico, aos aportados menos parecidos com "turistas". É isso um erro de percepção: muita gente se arrepia, até cai num automático receio ali no metro ao ombrear com um uberista sikh ou trolha senegalês ou, já no restaurante, face a uma aparente vivandeira brasileira. Mas é uma reacção alienada - pois desconhecedora das verdadeiras condições de vida. Dado que as pessoas não se arrepiam aquando face a um qualquer facebuquista ou administrador não-executivo socialista, ou, pior ainda ("The horror, The horror"), se diante de um Medina ou uma Temido (nesta até votam em massa), gentes muito mais perigosas para a sua segurança pessoal, física e económica, actual e futura.

Também eu vou assim: há para aí um ano fui jantar com um bloguista do Delito de Opinião numa simpática esplanada em Alvalade. Cheguei antes e notei que ali estava Pedro Nuno Santos, então proto-chefe do PS. Resmunguei uns impropérios mudos e hesitei em telefonar ao amigo para mudarmos de sítio mas não o fiz, ele chegou e lá comemos, com gosto. Mas se no restaurante estivesse uma larga mesa advinda do "Chelas profundo", em obrigatório alarido, eu não teria hesitado no desvio comensal. Mesmo sabendo ser Santos muito mais perigoso para o parco futuro que me resta do que qualquer xunga vizinha...

3. Enfim, seja lá como for, é plausível a necessidade da melhoria nos formatos da acção policial, como até indicia a "recomendação" parlamentar. Não sabia o que é o "policiamento comunitário" - só conhecia a realidade em Moçambique, e presumi (acertadamente) que fosse algo diferente. Fui ler um texto da antropóloga Susana Durão. Do qual retirei tratar-se de uma dupla acepção: uma actuação policial mais interactiva com as populações; uma participação dos cidadãos no esforço de policiamento, sua planificação e enquadramento, talvez uma espécie de quase "cidadão-agente". O texto é de 2012, deixa entender que a via então em curso se centrava na acção dos agentes policiais. E vi ainda, muito em diagonal, o livro "Policiamento de Proximidade" do sociólogo Manuel Lisboa (que em tempos conheci quando cruzou Maputo) e Ana Lúcia Teixeira, também já com uma década. Enfim, de ambos os textos retirei que por cá se trata de um método de policiamento mais aproximado dos cidadãos, mais atento às preocupações destes. De certa forma é o "mais polícia na rua", mais segurança subjectiva e, porventura, objectiva. Algo que todos defenderão, tantos os que clamam a "desgraça" securitária actual como os que desta descrêem.

4. Assim o que esta "recomendação" parlamentar convoca não é o questionamento sobre a justeza do "policiamento comunitário". Mas a intervenção demonstra um pensamento pobre, e comprova ser já este pacificamente dominante, pois maioritário entre os partidos. Surgindo como se ungido pelas aparentes "boas causas" poucos criticam este rumo, esta crescente via do Estado em seccionar a população, postulando categorias sociais, instaurando-as nos censos e nas iniciativas estatais, promovendo quotas discriminatórias - agora até a elas apelando no recrutamento de agentes policiais. Tribalizando o país. Os partidos de esquerda anuem, claro - e os comunistas, principalmente os não-brejnevistas, pois esses mais atreitos ao "identitarismo", têm sempre a expectativa (utopia) de transformarem essas categorias-em-si em categorias-para-si ("comunidades-em-si" em "comunidades-para-si"), essa velha aspiração marxista de incrementar o conflito social para instaurar uma nova era. Também o PSD aprova - e nem supreendente é isso, consabido o rusticismo desse partido. Do póstumo CDS resta o jazigo. E surpreende-me nada ler sobre o que a IL diz disto (mas também, se calhar, não deveria esperar muito). E sobra o que sobra...

Esta tétrica mediocridade política portuguesa demonstra-se nos pormenores. Note-se na formulação da recomendação. Não apenas a utilização do termo "comunidades" - por mais habitual que seja hoje em dia, ainda custa não ver alguém dizê-lo impregnado do velho evolucionismo, da crença da passagem de grupos de solidariedade mecânica (rigorosa comunhão) para solidariedade orgânica (de complementariedade diversificada), da ascensão histórica de "comunidades" (simples) a "sociedades" (complexas). Entenda-se bem, "comunidades" é o actual sinónimo ideológico da velha "tribo", do cá esconso "clã", da racista "raça", do mais recente ademane "etnia". A crença, e a proposta, é que cada membro de cada uma dessa(s) "identidade(s)" tem características comuns, anseios comuns e "precisa" de políticas estatais específicas para o seu "grupo". Fazer ascender esta mediocridade à assinatura da 2ª figura do Estado apenas me convoca o desprezo.

Mas mais ainda, veja-se como escreve a AR e assina Aguiar Branco: "comunidades específicas" "incluindo" "pessoas LGBT+" - de que universo se está a falar, se nestes termos e se numa proposta destas? E "comunidades" (...) "migrantes" - quem as constitui? Açorianos vindos para o continente, os últimos alentejanos chegados às cercanias do Pinhal Novo? Ou seja, hipocritamente, a AR e o seu presidente Aguiar Branco querem elidir que falam de imigrantes. E há também as "comunidades" (...) "comunidades ciganas". Votámos em quem escreve assim? 

5. Para enfrentar esta tralha não tenho saberes suficientes nem talento particular ("engenho e arte", para citar o poeta que o agora colunista do "Público" esqueceu quando era ministro da Cultura). Apenas consigo resmungar, para isso convocando alguns sublinhados meus, leituras antigas. Há umas décadas Hannah Arendt bombardeou correctamente a boa consciência europeia, anunciando-lhe que a democracia e o universalismo de cidadania aposto na defesa dos direitos humanos, inexistia nas situações coloniais. Isso deu azo a críticas a esse universalismo - "republicano", diz-se em contextos mais francófonos. Depois outros apupos vieram à hipocrisia universalista dos "direitos humanos". Há quem os ancore num anticolonialismo. Esquecendo (ou fazendo por esquecer) que a crítica à defesa dos "direitos humanos", e seu concomitante universalismo, engrandeceu fundamentalmente por ter sido uma arma das ditaduras brejnevistas, grosso modo desde o Acordo de Helsínquia - já após o colonialismo, frise-se -, uma forma discursiva do comunismo combater as democracias.

O que se vive agora é o embate entre dois modelos de organização social, sempre vividos de forma algo ambígua. As sociedades ancoradas na laicidade, exemplificadas pela república francesa. Feita de cidadãos individuais - não que isso implique (como dizem os falsários detractores) que os cidadãos não tenham outras pertenças, mas sim que o Estado os considera por igual, sem mediadores, sem grupos  intermédios. E as sociedades ancoradas no secularismo, mais ligadas ao mundo anglo-saxónico, nas quais os Estados reconhecem categorias sociais intermédias de pertença e através dessas diferenciam os cidadãos, cujo maior exemplo actual radica nos EUA.

Por cá os defensores desta última opção - normalmente agentes ambicionando estabelecer-se como "intelectuais orgânicos" (e remunerados) dessas projectadas "comunidades-em-si" - criticam violentamente a falsidade e a injustiça do modelo universalista ("francês", para facilitar). E encontram - mesmo sendo de esquerdas radicais - virtudes no modelo particularista ("secular", "americano"), uma contradição ideológica absurda, na qual não reparam nem quando saem à rua gritando contra as desgraças americanas...

6. "Lá fora" já alguns falaram sobre isto. Restrinjo-me a alguns dos tais meus sublinhados. Por exemplo,  Zizek escreveu em 2004 (usando o termo "multiculturalismo" que desde então foi acriticamente criticado pelos "sábios" da moda): "O multiculturalismo é (...) a forma ideal deste capitalismo planetário, a atitude que, de uma espécie de posição global vazia, trata cada cultura local à maneira do colono que lida com uma população colonizada - como "indígenas" cujos costumes devem ser cautelosamente estudados e "respeitados" (...) é uma forma de racismo denegada, invertida, auto-referencial, um "racismo com distância", respeita a identidade do Outro, concebendo-o como uma comunidade "autêntica" fechada sobre si mesma..." (Elogio da Intolerância, Relógio d'Água, 78). O antropólogo francês Jean-Loup Amselle - que não é um lepenista - disse "En participant a l'élaboration d'un modéle d'une France multiculturelle, les partisans comme les adversaires du métissage ont en commun de vouloir faire exister ces groupes en tant que tels, faisant de leur nomination une partie intégrante de leur devenir (...) La multiplication par l'État des ethnies au sein de la société française ne résoudra aucunement le racisme, elle metra au contraire en relief les tares du modèle français d'assimilation qui, on l'a vu, repose sur une base raciologique. Car ce n'est pas le modèle républicain qui s'oppose à la résolution du racisme dans notre pays, ce sont les insuffisances mêmes, son incapacité à être républicain jusqu'au bout, c'est-à-dire universel, qui l'empêchent d'exercer pleinement son devoir de hospitalité et équité.(Lógiques Métisses, Payot, 1990, x-xi). E "Mais étrangement (...) la place de l'universalisme n'est occupée aujourd'hui que par une puissance déclinante - la France républicaine - de sorte que cette dernière a toutes les caractéristiques d'une curiosité culturelle alors que l'Empire multiculturel américain peut se présenter sous les traits d'une puissance universaliste. C'est en effet au nome de l'universalisation da la différence et en tant que strucutures d'accueil de toutes les singularités qu'une puissance globale comme les États-Unis peut faire valoir sa legitimité et prétendre au leadership mondial." (L'Occident Décroché, Stock, 2008, 36-37). Etc.

Em Portugal, por cá? Os políticos pensam e escrevem como se vê. Na imprensa os colunistas preenchem .... colunas. Nas ciências sociais há os... socialistas (e maçónicos) e ainda os bloquistas. E os que esperam, anseiam, pelos subsídios. Como ser incómodo? E nisso vai plácida esta deriva, este "comboio descendente", "todos à gargalhada", em busca da etnia ou raça de cada um...

Adenda: para os não francófonos deixo tradução dos excertos (não venham os habituais resmungões protestar com a sua qualidade, pois são via Deep L.): 

1. Ao participarem na elaboração de um modelo de França multicultural, os partidários e os opositores da mestiçagem têm em comum o desejo de fazer existir estes grupos enquanto tais, fazendo da sua nomeação parte integrante do seu futuro (...) A multiplicação pelo Estado dos grupos étnicos no seio da sociedade francesa não resolverá de modo algum o racismo; pelo contrário, porá em evidência os defeitos do modelo francês de assimilação que, como vimos, assenta numa base racial. Com efeito, não é o modelo republicano que impede a resolução do racismo no nosso país; são as suas insuficiências, a sua incapacidade de ser republicano até ao fim, isto é, universal, que o impedem de exercer plenamente o seu dever de hospitalidade e de equidade.

2. Mas, estranhamente (...), o lugar do universalismo é hoje ocupado apenas por uma potência em declínio - a França republicana -, pelo que esta última tem todas as caraterísticas de uma curiosidade cultural, enquanto o império multicultural americano pode apresentar-se sob a forma de uma potência universalista. De facto, é em nome da universalização da diferença, e como estruturas que acolhem todas as singularidades, que uma potência global como os Estados Unidos pode afirmar a sua legitimidade e reivindicar a liderança mundial.

 

Conversa de café a propósito da Penha de França

jpt, 08.10.24

Lisboa.pt - Website oficial do Município

Ficou o país estupefacto com o desbragado triplo assassinato da semana passada, ocorrido na Penha de França. Bebo aqui nos Olivais um café com um "sobrinho" crescido em Bruxelas, o qual me diz ser este tipo de situações agora por lá recorrente, em particular em Anderlecht, devido à migração acontecida de grupos de "empreendedores" ligados ao comércio de drogas químicas, diz-se que ali advindos de Marselha. Não que associássemos este nosso infausto caso a algo similar, apenas referia ele, agora cá recém-chegado, a diferença entre o escândalo aqui sentido e a já rotineira forma de apreensão da violência de rua que passou a vigorar lá na Bélgica.

No dia seguinte na mesma esplanada foram-se agregando vizinhos, gastando um pouco do outonal sábado. Conversas muito variadas, e animadas. Nisso um dos presentes aflora como o mariola Ventura abocanhou politicamente o caso da Penha da França, não só agitando a sua "besta negra" cigana como até aventando - em cúmulo de despudor - a dúvida sobre o carácter político dos assassinatos, como se fossem um atentado avesso aos seus simpatizantes.

E a conversa segue, abordando as formas elípticas como a comunicação social e os sempre pressurosos "populares" convocados a prestarem declarações ao microfone foram referindo o assassino, seus acompanhantes e seu meio de origem. Ou seja, a elisão radical do termo "cigano" entre a locução dominante e a opção por formulações alusivas. Eu pouco seguira os noticiários mas reparara no tópico da pertença do criminoso a "famílias numerosas", a utilização de uma estereótipo de parentesco (e co-residência) - quiçá sustentado por algum empiria, não o posso afiançar dado que nada tenho lido sobre dimensões actuais de parentelas e residências em Portugal. Mas é notório que há um expurgar pelos estratos "letrados", e pelo o "povo" que vai à tv, da alusão pública a "ciganos", ao invés do seu brandir pelos sectores mais direitistas. E, também, da sua presença nos discursos globais... se, e quando, em privado. E tudo isto, esta retórica higienizada, alimenta o tal mariola, o tipo "que diz as verdades", "aquilo que mais ninguém tem coragem de dizer"...

Ali à mesa, no passo seguinte, uma senhora vizinha, educada e culta, diz asisadamente que concorda com essa abstenção da referência identitária, pois não se devem alimentar as generalizações abusivas. No que eu concordo totalmente, pois um desmando, um traço comportamental, uma característica psicológica de um qualquer indivíduo não deve ser atribuído a outros que com ele partilhem alguns traços comuns socioculturais e, ainda menos, fenotípicos (os genotípicos nem para aqui são chamados). Ou seja, implicitava a minha vizinha  - tal como os múltiplos locutores ao longo dos últimos dias - que dizer ser este assassino um "cigano" é alimentar o preconceito, fomentar generalizações abusivas. Aplaudo. Até porque esta postura é o substrato de uma concepção liberal (que não associológica), o primado da autonomia individual - algo que é bem diferente de outras perspectivas dominantes, como a (demo-)cristã, as marxistas ou os agora muito viçosos secularismos "identitaristas" de extracção marxista, que presumem características comuns aos pertencentes a grupos socioculturais e por isso convocam políticas e posturas peculiares para cada um deles.

E sigo na verve. Recordando que há escassas semanas nas cercanias de Castelo de Vide um indivíduo sequestrou e disparou sobre duas mulheres. A imprensa logo o intitulou "espanhol" - identidade com a qual temos relações históricas complexas. Talvez não tanto naquela velha raia. Mas sim país afora. Ainda resmungamos os "Filipes", apupamos o injustiçado defenestrado Miguel de Vasconcelos, tal como ainda sorrimos o "de Espanha nem bom vento nem bom casamento". Mas, muito mais importante, germina o sentir anti-turismo, resmunga-se o quase monopólio espanhol do querido olival. E não só o nosso ministro da Defesa veio agora agitar a "chaga" (para ele, pobre homem, sintoma que é da múmia mental CDS) de Olivença. E, para irmos à política, só um país politicamente incompetente é que continua com mesuras aos Borbón, ao PSOE ou ao VOX, face a décadas de desrespeito fluvial espanhol. Ou seja, não falta matéria-prima, histórica e actual, para acicatar o anti-espanholismo. Mas isso não impede que a imprensa escarrapache nos cabeçalhos ser "espanhol" o cadastrado sequestrador, e intentado violador e assassino.

Mais perto dos Olivais do que a Penha de França é Moscavide. E também por isso logo ali à mesa recordei um outro caso. Há quatro anos um indivíduo lá foi assassinado, uma horrível conclusão de uma questiúncula entre vizinhos. O energúmeno assassino expressou, antes e depois, a sua aversão aos negros - o assassinado, o actor Bruno Candé, era-o... O miserável, agora preso, é um antigo combatente na guerra colonial. Foi um rastilho. De imediato organizações e vária imprensa usaram o caso para afirmar um "racismo sistémico" português - ou seja, de um crime praticado por um indivíduo se generalizou predisposições e pressupostos para a globalidade dos seus compatriotas, dos que têm a sua "identidade".

Logo na época notei pouco ter significado para os "bem-pensantes" que, logo no dia seguinte ao assassinato, tivesse o Sport Lisboa e Olivais - um clube popular, pobre, histórico pois 5ª filial do SLB, recordista de anos seguidos na velha III divisão de futebol - colocado na sua página um dorido "Morreu um dos nossos" - Candé seria associado, terá sido praticante desportivo. Denotativo de inclusão, inserção, até "sistémica" se se quiser... Mas nada disso contou (nem conta) nos discursos demagógicos. Como também não contavam (nem contam) perguntas de cariz mais sociológico: houve centenas de milhares de portugueses mobilizados para as guerras em África. (E, também, centenas de milhares de portugueses foram "retornados"). Foi afirmado aquele assassinato como um caso exemplar do "racismo sistémico" - entenda-se, universalizado, ainda que vivido de diferentes formas -, dos portugueses, e dito ser esse extremado entre antigos combatentes, estes também aventados como universo ainda dotado de armamento. Face a essa verdadeira hiper-generalização seria normal questionar, investigar, que formas organizadas ou avulsas houve entre essa gigantesca amálgama de antigos combatentes (e de antigos colonos) de perseguição armada, violenta, física ou moral, sobre os africanos ou seus descendentes que residiam ou vieram a residir em Portugal neste último meio século. Algo que sedimentasse aquela extrapolação do assassinato que o energúmeno cometera por causa de uma querela encetada devido a um cão... Perguntar isso para quê, pois como é possível duvidar que se um "português" assassina um "negro" todos nós "portugueses" somos racistas?

A conversa morreu ali, falta de empenho alheio, atitude totalmente legítima ("agora tenho de aturar este tipo?", terá pensado a respeitável vizinha). Mais tarde, já em casa, vejo no Facebook um outro vizinho a partilhar um sentido texto de um jornalista sobre o crime da Penha da França. Nele se aventa que o assassino sofrerá de uma "adição", um desequilíbrio contextualizador. Sorrio, triste. Também eu ao saber do acontecido pensei nisso, de imediato imaginei um "Scarface", histriónico descompensado a la Al Pacino... Mas é importante identificar a ideologia que subjaz esta nova língua, e este anglicismo dessa é típico, de um sociologês (esse que entende que o contexto social causa e, quantas vezes, justifica os actos individuais, fazendo regredir a autonomia individual aos mínimos ... quase biológicos).

Não vou explicar, prefiro ilustrar: imagine-se que eu deixo de fumar. Ao 5.º dia este meu vizinho Quim - também ele olivalense - vem ter comigo à esplanada. Depara-se comigo a protestar com o dono da casa porque a minha chávena de café não está bem quente!!! Dirá logo ele, o Quim, "calma, estás irritadiço devido ao teu vício do tabaco" e até se rirá, acalentando-me no meu esforço sanitário. Entretanto, ali mesmo, tomamos conhecimento de que aqui perto um qualquer "agarrado" deu uma pedrada num velhote para lhe roubar a carteira - coisa que hoje em dia no bairro já inexiste, felizmente, gentrificado e pacificado que está o "Olivais". Dirá logo algum vizinho, ou talvez mesmo o Quim, que o ladrão sofre de uma "adição". Assim seguindo eu, mero chato, com o culposo e pecaminoso "vício", e o ladrãozeco, pobre vítima da tal "adição". 

Enfim, isto é uma conversa de café, sem grande coerência - excepto a do tal "racismo sistémico" de que padeço, pois sou de identidade "portuguesa", e de "etnia" branca, dirão alguns... Desarrumada e até infindável. Mas fico ainda com um resmungo, até à próxima sessão de esplanada: continuem a pensar assim. E, acima de tudo, a falar assim... E um dia destes até os ciganos, fartos do que "parece", votarão no Ventura.

Racismo Sistémico

jpt, 29.09.24

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Às vezes até com alguma amizade, a maioria das vezes sem ponta disso, gente das minhas áreas de formação, dizem-me "direitolas" - visceralmente avesso que sou a estes demagogos das "identidades", do "género", da "depuração da fala", do "racismo sistémico", e das tralhas associadas.
 
Talvez este seja um exemplo explícito da pantomina que são estas correntes locutoras. Imagine-se o escândalo que correria mundo afora (e Portugal esquerdalho adentro) se um grande central branco desse um estalo num pequeno roupeiro "racializado". Mas o enorme preto Rudiger dá um tabefe a um incomodado branco Manolin? Nada dizem estes "identitaristas", que isto não lhes dá jeito. Não lhes anima o objectivo, a gritaria que entendem possibilitar-lhes o acesso a uns nacos do erário público. E a uns empregozitos, precários ou não. Porque, entenda-se bem, para essa gentinha, a esquerdalhada burguesota, "it's economy, stupid!". O subsídio, o contratozito, o parco financiamento...

Passado colonial

jpt, 15.08.24

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(Isto não é um ensaio, e muito menos um artigo. É um desabafo. )
 
Na fotografia estou eu no Mossuril, impante quarentão ladeando o velho canhão pátrio. Não estava ali traumatizado, nem me sentia um Atlas com o peso da História aos ombros. Nem o devia estar. Nem sentir...
 
1. Para quem não saiba o Mossuril foi durante séculos um dos cais de embarque para a Ilha de Moçambique, que lhe está defronte. Esta - sempre romantizada, com laivos de poesia (há muita versalhada sobre o sítio) ou de devaneio turístico - foi sempre um entreposto, ali se carregavam as embarcações as quais seguiam Índico afora. E, como outras feitorias portuguesas em África (ditas "possessões"), sobreviveu séculos com as taxas alfandegárias e os ganhos comerciais dos... funcionários. Pois desde XVI - pelo menos - ali chegavam as caravanas vindas do interior, fronteiro ou muito distante. Trazidas por gentes várias que vieram a ser ditas macuas ("selvagens", na língua das gentes algo sualízadas do litoral, pois vistos como inferiores boçais do  mato), por ajauas, por outros. Algumas caravanas iam até ali, para Quelimane também, tal como ao Ibo, outras calcorreavam rumo a outros portos exportadores onde inexistiam portugueses, na demanda de melhores custos-benefícios.
 
 

 

Reflexão do dia

Pedro Correia, 25.10.23

«A retórica é claramente de ódio a Israel e anti-semita. Os cartazes são de linguagem desumanizadora e de apoio à violência do Hamas. Vêem-se bandeiras do ISIS e da Al-Qaeda. Ninguém podia pedir maior apologia do terrorismo. Grita-se "morte aos judeus", usam-se cartazes com a bandeira de Israel no lixo junto ao slogan "manter o mundo limpo". Só quem considera os judeus não possuidores de dignidade humana por inteiro permanece numa manifestação onde se exibem tais opiniões.

Mas nem só de slogans em manifestações vive o anti-semitismo. Em Londres, os crimes motivados por anti-semitismo, desde o ataque do Hamas, cresceram 1350% (em termos homólogos). Uma sinagoga em Berlim foi atacada por dois cocktails Molotov. Na mesma Berlim, estrelas de David - o sinal, lembro para os mais novos, que os judeus eram obrigados a usar em braçadeiras no regime nazi - foram pintadas à porta de casas onde habitam judeus. A sinagoga do Porto foi vandalizada. Em Paris, foi queimada a porta do apartamento de um casal de judeus octogenários. (...) Em Barcelona um hotel foi atacado por manifestantes. A razão? É propriedade de um judeu. Em Toronto o alvo foi um restaurante. A razão? A mesma.

Este anti-semitismo é declarado e evidente. Atacam-se as pessoas, as casas, os negócios. Temos relatos de tudo isto vindos da Europa pelos anos 1930.»

Maria João Marques, no Público

«Se há um judeu atrás da árvore, mata-o»

Pedro Correia, 19.10.23

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Dizei aos que não crêem: "Sereis, sem dúvida, derrotados e reunidos no Inferno. O vosso lugar de descanso será o mais terrível".»

Alcorão, 37: 171-173

 

Este 7 de Outubro será sempre conhecido como dia da infâmia em Israel. O dia da incursão de cerca de dois mil terroristas do Hamas em território israelita que provocou 1500 mortos e mais de três mil feridos, além de 300 pessoas de mais de 30 nacionalidades tomadas como "reféns". Ignora-se se ainda estarão vivas.

Ainda nem uma das vítimas tinha sido enterrada, já havia por cá quem relativizasse o massacre, invertendo o ónus da culpa, que terá sido das vítimas. Seguindo a lógica daquele juiz desembargador que absolveu o violador alegando que a jovem violada usava uma saia demasiado curta e, portanto, estava mesmo a pedi-las...

Para tal gente toda a barbárie, singular ou colectiva, assenta neste axioma que desafia a lógica mais elementar. Inocentar os criminosos, culpar as vítimas. Daí, no próprio dia 7, não ter faltado logo quem estabelecesse equivalência moral entre a Alemanha nazi e o Estado judaico. Qual o efeito prático de tudo isto? Branquear a página mais negra da história humana, que se traduziu no assassínio sistemático e meticuloso de seis milhões de pessoas às ordens de um estado totalitário, onde qualquer dissidência equivalia a morte.

 

Não faltou até, nesta linha de raciocínio cada vez mais alucinada, quem metesse Gaza e Auschwitz no mesmo saco. Omitindo, desde logo, toda a cartilha xenófoba e racista do Hamas - declaração de ódio visceral não apenas ao Estado de Israel mas ao conjunto do povo judeu. 

Esta cartilha está disponível na rede, para quem queira ficar elucidado.

Proclama coisas como estas:

«Não há solução para o problema palestino a não ser pela guerra santa. Iniciativas de paz, propostas e conferências internacionais são perda de tempo e uma farsa.»

«Os hipócritas não podem ser superiores aos crentes, e devem morrer em desgraça e aflição.»

«Os sionistas estiveram por detrás da I Guerra Mundial, por meio da qual obtiveram a destruição do Califado Islâmico, tiveram altos ganhos materiais, passaram a controlar numerosos recursos naturais, obtiveram a Declaração Balfour e criaram a Liga das Nações Unidas (assim no original), para poderem governar o mundo por meio dessa Organização. Estiveram, também, por detrás da II Guerra Mundial, através da qual juntaram um tremendo lucro com o comércio de materiais de guerra e abriram caminho para o estabelecimento do seu Estado.»

Destaco sobretudo esta: 

«A hora do julgamento não chegará até que os muçulmanos combatam os judeus e terminem por matá-los e mesmo que os judeus se abriguem por detrás de árvores e pedras, cada árvore e cada pedra gritará: "Oh! Muçulmanos, Oh! Servos de Alá, há um judeu por detrás de mim, venham e matem-no!"»

 

Ao menos não enganam ninguém: dizem exactamente o que pensam - se é que podemos chamar pensamento a isto.

Tal como fez Hitler há cem anos, quando publicou esse execrável panfleto antijudaico chamado Mein Kampf. Sabemos muito bem o que aconteceu depois.

Jamais se repetirá. Os judeus não voltarão a deixar que o inimigo os conduza ao matadouro. Tenha esse inimigo o rótulo que tiver, chame-se ele como se chamar.

Fala-lhes do sonho, Martin!

Pedro Correia, 26.08.23

Faz amanhã 60 anos, um reverendo baptista de baixa estatura e vontade inquebrantável, militante anti-racista, pronunciou um dos melhores discursos do século XX. Martin Luther King culminou a gigantesca marcha de Washington, que congregou cerca de 250 mil pessoas, com a última de dez intervenções proferidas nas escadarias do Memorial Lincoln - local emblemático por evocar o presidente norte-americano que libertou os EUA da escravatura e pagou com a vida por isso.

Falando perante aquele que era então o mais vasto auditório de sempre no seu país, com as três estações de televisão nacionais transmitindo em directo, King começou o discurso lendo um texto que levava escrito, mas - segundo reza a lenda - quando já havia muitas pessoas a dispersar naquela tarde de 28 de Agosto de 1963, a cantora Mahalia Jackson incentivou-o em voz bem audível: «Fala-lhes do sonho, Martin!»

Ele largou os papéis, passando a falar de improviso. Destes dois momentos conjugados nasceu um discurso extraordinário, pontuado de referências bíblicas (com citações do Salmo XXX, 5 e do livro de Isaías, XL, 4-5) em defesa da igualdade racial e em sonoro protesto contra todos os actos de discriminação de que os cidadãos americanos de pele negra continuavam a ser alvo um século após a guerra civil, sobretudo nos estados do sul governados por caciques do Partido Democrático.

«Sonho que um dia, nas colinas vermelhas da Geórgia, os filhos dos antigos escravos e os filhos dos antigos esclavagistas serão capazes de se sentar à mesa da fraternidade. Sonho que um dia até o Mississipi, um estado que sufoca sob o calor desértico da injustiça e da opressão, se transformará num oásis de justiça e liberdade. Sonho que um dia os meus quatro filhos viverão numa nação onde não serão julgados pela cor da pele, mas pelo seu carácter», declarou King nesta obra-prima da oratória política, peça essencial para a promulgação da legislação que reconheceria direitos civis a todos os norte-americanos, promulgada dez meses mais tarde pelo presidente Lyndon Johnson.

 

James Reston, um dos mais categorizados jornalistas do New York Times, fez a cobertura do acontecimento, no qual John Kennedy, então inquilino da Casa Branca, chegou a pensar participar antes de ter sido fortemente dissuadido pelos seus conselheiros, receosos de que a marcha pelos direitos raciais degenerasse em tumultos na capital dos Estados Unidos. Mas Reston, apesar do seu inegável instinto jornalístico, não foi capaz de descortinar a força mobilizadora do discurso do futuro Prémio Nobel da Paz, tendo-lhe reservado um modesto 19.º parágrafo na peça de reportagem que o mais influente diário norte-americano dedicou no dia seguinte à memorável manifestação de Washington - prova evidente de que nem sempre o jornalismo está em condições de ser o primeiro rascunho correcto dos livros de História.

Em 2023, com tantas segregações ainda em vigor - de modo explícito ou implícito - nos mais diversos locais do globo, faz falta uma nova Mahalia Jackson a incentivar: «Fala-lhes do sonho, Martin!» E faz falta, acima de tudo, um novo Luther King, transformando a resistência passiva e a não-violência em poderosos instrumentos de combate cívico em defesa dos direitos humanos, com a sua retórica de profeta iluminado, capaz de mobilizar incontáveis multidões através dos continentes só com o poder da palavra.

O anúncio da PSP

jpt, 29.06.23

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Um homem não deve ligar às imbecilidades que vai lendo na imprensa, em particular aquelas imbecilmente partilhadas nas redes sociais. Mas há tardes…

Há anos o “Público” publicou uma série de entrevistas pindéricas sobre o racismo - julgo que vieram passar a livro. Um afamado antropólogo socratista, entusiasmado, veio a escrever no mesmo jornal que elas “provavam” a existência local do fenómeno - uma deriva “positivista” que às vezes dá jeito, possibilitando que este tipo de gente publique no mesmo boletim que “vivemos num apartheid”. Li algumas dessas peças - e lembro a conversa com uma das entrevistadas, cientista social estrangeira que bem acima está desta tralha, que me contava dos rumos entrevistadores. Explícitos para aqueles, como ela (e até eu) sabem da gigantesca diferença (intelectual, moral, deontológica) entre pôr o informante/entrevistado a falar do que queremos ou a dizer o que queremos. Enfim, almoçávamos nós em esplanada lisboeta e perguntou-me ela se eu lera as entrevistas. Respondi eu que vira algumas, com menosprezo, lembrando que uma delas clamava o racismo português, tamanho que não havia negros nas telenovelas e nos frascos de shampoo… E que a vítima entrevistada não suportava tal coisa, a “invisibilidade” racista, tão letal que partira ela, artista, para a ecuménica Berlim. Rimo-nos, apesar de não estarmos em dias e eras de grandes boas disposições.

Mas este gemebundismo vingou. Há pouco tempo o esquerdalhismo orgasmou-se com as tranças rastafari de um apresentador de telejornais, dando-lhes estatuto fundacional. Depois outra apresentadora de notícias, dotada de cuidado e vasto cabelo “afro”, chorava a morte do norte-americano Floyd enquanto esquecia as mortes contemporâneas, às mãos de similares polícias, de indo-descendente na Beira e de eslavo no aeroporto de Lisboa. A tal “invisibilidade” “racista” reduzia-se… e não só assim.

Há algum tempo entrei na loja da Vodafone do Vasco da Gama. Notei que estava decorada com vários cartazes de risonhos clientes da empresa, na sua maioria negros - o trabalho que as grandes empresas dão a modelos, profissionais ou amadores, é uma forma de luta contra a “invisibilidade” “racista”. Presumo que nas telenovelas aconteça o mesmo. Sorri e comentei o facto com a minha companhia, a melhor que poderia querer. Para seu incómodo, que notar estas coisas pode parecer mal, “racismo” até…

Regresso ao início. Vejo no FB partilhas de um texto jornalístico de um consabido demagogo comunista, que ali chega por via de alguém que há décadas embrulha o seu vil otelismo assassino com berloques da “capela do Rato”. Somos agora racistas, diz esta gente, porque a PSP fez um anúncio para candidaturas usando a fotografia de um agente negro...

Há pessoas que aplaudem, “partilham”, “gostam” deste lixo. De gente. Eu nada digo. As minhas amadas filha e irmã proíbem-me de explicitar o que penso desta gentalha.

O racializado Costa

jpt, 14.06.23

É uma questão a que não me consigo responder, apesar de ter já vasculhado alguma literatura póscolonial, decolonial e afinal... Pode um tipo de elite chamar "macacos" a deputados e dirigentes de outro partido e depois vitimizar-se como "racializado" agredido quando uns sindicalistas o pintam como "suíno"?
 
Também já visitei as páginas de alguns especialistas desta matéria, antropólogos e não só. Mas em nenhum encontrei a pergunta. Quanto mais a resposta.
 

(Lamento mas não encontro uma versão incorporável no blog que contenha apenas as declarações de António Costa. Mas indo à página do canal CNN elas estão disponíveis aqui.)

A Caricatura de António Costa

jpt, 14.06.23

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(Santiagu)
 
(Ontem o Pedro Correia aqui abordou de modo suficiente o tema. Mas como deixei no meu Nenhures um outro postal sobre o assunto aqui o replico)
 
Há polémica sobre um cartaz usado pelos professores, caricaturando António Costa. Não discuto a justeza das reclamações da mole docente nem a tipologia das suas acções reivindicativas nem a política do governo na área correspondente - nem sequer isso de Costa ter mentido quando se deparou com manifestantes nas comemorações do 10 de Junho. O assunto é a caricatura de Costa que foi usada. Não gosto dela. Mais pelo detalhe dos lápis espetados nos olhos - que poderá ter um qualquer significado que se me escapa mas ainda que assim seja é vudu em demasia para este ateu.
 
 

 

A desfaçatez da moamba

jpt, 13.06.23

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Razão tem a ex-deputada Katar Moreira, os portugueses são o cúmulo da desfaçatez. Urge cancelá-los! Ainda bem que ela não verá esta minha publicação, que decerto lhe despertaria (ainda mais) ira. Pois aqui se retrata o jantar de um português, “branco” ainda por cima - e por isso um dos tais da desfaçatez -, lisboeta em véspera de Santo António: uma (magnífica) moamba com funge (caracata, se se quiser, xima de mandioca para facilitar), que lhe foi ofertada pelo autor. Sendo este um outro “branco”, português, que nem nunca viveu em África. E ainda pior, tudo isto acontece em festa de Santo Padroeiro. Malvados colonos colonialistas, gulosos na sua tal desfaçatez. Enfim, brancos!

(no Nenhures)

A esquerdalhada

jpt, 29.05.23

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Num postal recente usei o termo "esquerdalhada" (que me é habitual). E logo três amigos me enviaram mensagens, pois com ele incomodados. Nos comentários recebidos (no meu mural de Facebook) também surgiu algum desconforto - e mesmo imprecações. Naquela plataforma a ligação ao texto foi partilhada por outros - o que lhes agradeço - em cujos murais também notei algumas reacções desagradadas, até furiosas. Isto mostra a vigência de um sentimento pelo qual sobre os locutores de “esquerda” não se deve verbalizar menosprezo ou desrespeito pelas suas atrapalhadas ou aldrabadas opiniões.

Reacções ao invés das esperadas face à rapaziada da direita. Sobre esta há dois termos que vão surgindo: o mais raro “direitinhas” - em tempos consagrado em banda desenhada publicada no “Diário”, o jornal do PCP dirigido por Miguel Urbano Rodrigues -, mas que não vinga muito dado o tom pouco ferino que aquele sufixo sempre dá. E o mais habitual - e quase automático - “fascistas” (ou “faxos”), uma evidente desvalorização ética e intelectual.

 

 

Emendar os textos antigos e racismo

jpt, 29.03.23

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(Jô Soares e casamento português)

A propósito disto das "sensibilidades" ofendidas e da "urgência" em higienizar os legados textuais (e outros) para, dizem, evitar desmandos e desvalorizações sociais, lembrei-me desta "piada de português" (muito brejeira, aviso os ouvidos frágeis) do João Soares. Só há pouco a conheci e ri-me imenso, apesar do/devido ao tom corrosivo que nos é dedicado. Ri-me apesar de saber do abrasivo do humor brasileiro contra todos nós, da sua origem xenófoba (e elitista) - recordo um belo artigo sobre a emergência na imprensa de meados de XIX destas invectivas contra os portugueses, publicado numa "Oceanos" de 2000, coordenada por Robert Rowland... Ri-me porque tem piada e porque o contexto o permite (e não é ilegitimado por qualquer patente ou presumida intenção), e ele é omnipotente nestas coisas. Tal como os "ouvintes" devem ser minimamente esclarecidos para se contextualizarem.
 
Nestas coisas de me ofenderem a "sensibilidade" (de me "racializarem") lembro dois episódios: há mais de uma década um casal moçambicano convidou-nos para jantarmos com um outro casal brasileiro, quadros de empresas recém-chegados a Maputo. Assim foi, eles simpáticos, cultos, conversadores. Mas de repente o marido contou uma "anedota de português". Não foi mal acolhida, pelo que seguiu um vasto repertório no tema. Como é evidente nunca mais convivemos com eles, desagradados num "que é isto?", e foi pena pois até poderia ter sido "o início de uma bela amizade". Mas a minha sensibilidade fora demasiado "racializada".
 
Décadas antes acontecera-me outra, ainda pior. Aos meus 14/15 anos, no Verão de São Martinho do Porto, uma família francesa (naquela época os turistas eram quase todos franceses) alugou uma barraca balnear perto da nossa. A filha era linda, loura, e aos meus anseios já se parecia com a Marion des Neiges dos "Pequenos Vagabundos", e o seu irmão e o amigo logo acamaradaram nos jogos de bola, mergulhos e outros que tais. Uns dias passados foram almoçar lá a casa, encantados com a simpatia da minha mãe - até porque ela era verdadeiramente bilingue - e com a sisuda placidez do meu pai (que devia estar a fruir o estado basbaque deste seu filho, assim notando-o a crescer "como um homenzinho"). Depois fui eu almoçar lá a casa, recebido como se adulto fosse pelo messire ali veraneante e sua extremosa mulher. À mesa a conversa fluiu, eu no meu francês pausado mas melhor do que o de agora, eles elegantemente acompanhando o meu ritmo. Entre conversas, e entre eles, o pai pediu à bela filha, sentada do outro lado da mesa, uma qualquer coisa e eu, de imediato, lha passei. Para sua sorridente surpresa, pois entendera eu não só o léxico mas, acima de tudo, a velocidade parisiense da fala... Ao que respondeu ela, talvez ufana do jovem pretendente, talvez precisando de justificar aquele convívio "inter-cultural", "ele é português mas é inteligente!"... Eu passei-me, mantendo a compostura diante dos pais, mas passei-me mesmo. Pior ainda com os outros rapazes a tentarem justificar a "gaffe" mas nisso, atrapalhados, metendo les pieds par les mains... Enfim, o pai lá soube fechar a questão, elaborando sobre a grandeza e a excelência lusa (e após a minha saída deve-se ter rido, vero gaulês, do sanguíneo petiz que lhe entrara porta dentro).
 
Ora esta minha sensibilidade foi reactiva apesar de não ter eu interiorizado (ou sofrido) qualquer pressuposto sobre a minha inferioridade intelectual, social, cultural - ou mesmo "racial" ("étnica" mascara-se agora). É pois normal que outros, provenientes de contextos recorrentemente desvalorizados (por exemplo os "parolos" que Augusto Santos Silva despreza), sejam mais epidérmicos com algumas expressões que vão enfrentando.
 
Por isso as nossas expressões e as nossas sensibilidades são educáveis, aprimoradas - só um imbecil se ri hoje daquele vil filme "Os Deuses Devem Estar Loucos" que há 40 anos foi um sucesso mundial, ancorado no humor racista do apartheid. Mas isso não implica andar a apagar o passado, a emendá-lo. Hoje a Agatha Christie e a Enid Blyton, amanhã o Engels e o Hegel (que vendem menos).
 
Enfim, mas de tudo isto o fundamental que retiro é que foi o Joaquim, um tipo do Porto, que depois conseguiu trocar uns beijos mais intensos com a Falbala de São Martinho do Porto. Não foi a última vez que isso me aconteceu, nem nada que pareça. Mas ainda me dói...

Polémicas literatas

jpt, 15.03.23

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Não sou muito dado a livros, quase nada às novidades e ainda menos às coisas e causas da literatura portuguesa. E vivi 20 anos fora. Por tudo isto nada percebo destas polémicas literárias, trâmites que associava a um "Chiado" bem recuado, lido no liceu da vida - e nessa candura bem me surpreendera há poucos meses ao saber que o bom do António Cabrita, vindo de Maputo "a banhos", acabara rojado à calçada portuguesa em plena Av. de Roma ao procurar ele (no seu intrínseco civismo) apartar uma contenda entre poetas e críticos algo excêntricos aos escaparates. Bisonho episódio que me alertara para que nesta era de podcasts e tik toks ainda há, a sul do Trancão, quem se exalte em torno de livros... Mas tudo isso se me escapa, pois a última polémica livresca de que me lembro foi sobre este "A Tragédia da Rua das Flores", então confrontando-se os veementes avessos à publicação do calhamaço rascunho e os acalorados defensores da sua imprescindibilidade, tudo isso quando o meu pai teria mais ou menos a minha idade de agora... (e quem o lerá hoje em dia?).
 
Vem-me isto ao teclado diante do actual debate entre os autores, e respectivos amigos e adeptos, das duas recentes biografias de Pessoa, uma dita de pendor "académico", outras vocacionada para ser "popular". A surpresa para mim é tetra (que não tétrica...): 1) que os autores se zanguem em público, e de modo tão desabrido, tanto que até dá para demissões nos "jornais de referência"; 2) algumas das matérias que provocam dissenso - entre as quais avulta a relevante temática sobre se Pessoa frequentaria prostíbulos femininos, era dado aos "prazeres helénicos" ou teria morrido virgem. Isto para além de ser tópico de debate o tamanho do seu membro viril; 3) que tanta gente compre (e até mesmo leia) biografias, já 12 mil da "académica" e a "popular" para lá caminhará!... - mas isso é coisa do meu gosto, avesso que vou a tal molde, para o qual não tenho paciência; 4) o tamanho das tais muito compradas biografias, ao que consta cartapácios de 1200 páginas (a "académica") e quase 1000 (a "popular")! Tanto há para dizer... Enfim, nada tenho contra quem escreve, quem lê, nem mesmo contra quem discute o que escreveu ou leu. Apenas me surpreendo.
 
Já agora, e para que não me digam obscurantista, quero dizer que também leio, e até livros grandes. Andei agora a ler alguns sobre escravatura em África (e não só). "Porquê?", filial pergunta, "Apetece-me", paternal resposta... E também são grandes, afianço. Um deles é sobre a escravatura na África oriental - com apenas laivos sobre Moçambique, dado o pendor francófono dos autores: Henri Médard et al, "Traites et Esclavages en Afrique Orientale et dans l’Océan Indien", 2016. E também tem as tais dimensões pelos vistos apropriadas - 900 e tal páginas.
 
Num capítulo do organizador-mor, Henri Médard, escreve ele a propósito do tão na moda "racismo" (é minha a atabalhoada tradução do francês): "A racialização revela-se como um instrumento de dominação eficaz e popular, muito para além do Ocidente. Se o seu absurdo é universal, cada racismo tem as suas especificidades (mágicas, bíblicas, "científicas"...), as suas originalidades, as suas trajectórias próprias (em particular à luz das migrações e das lutas políticas contemporâneas). Essas evoluções africanas são abundantes... As distinções físicas [actuantes na escravização e no tráfico] são demasiado cómodas para que as lógicas sociais das dominações não as utilizem sempre que surge a oportunidade para tal".
 
Ou seja, bastaria este breve parágrafo para atirar para o lixo muito da tralha demagógica ("identitarista") que anda aí à solta, em vestes mais ou menos "decoloniais". E agora imagine-se se se ler as tais outras 900 e tal páginas. Mais alguns outros livros, vários deles também de vigorosa lombada. Em suma, e é a minha mera opinião, mais vale isto do que andar a ler (ou a comprar) sobre a pila do Pessoa.

Os "príncipes dos povos"

jpt, 16.01.23

Um príncipe decidiu ("deu-lhe para...") reencarnar um seu pouco fiável antepassado e nisso casou com uma actriz estrangeira de terceira ordem, uma "corista de Paris" teria dito no seu tempo o velho Eduardo VII, o do nosso Parque, que sabia bem desse assunto... O "contexto" é quase tudo, os tempos mudam, as (muitas) décadas passam, e nisso as consciências e as barreiras sociais - mas ainda assim não é só isso que aparta este caso de um já nada recente casamento entre um obscuro príncipe de um minúsculo grão-ducado, mero paraíso fiscal feito recanto de veraneio e casinos, com a estrela de aspecto mais angélico de Hollywood, oriunda de família abonada e conservadora... E os locais, o tal "contexto", não são todos iguais, e como tal isto não tem o mesmo impacto simbólico de uma matrona viúva de uma silenciosa monarquia burguesa escandinava se casar agora com um gabiru norte-americano, de profissão xamã e o qual se diz reencarnação de príncipes africanos seus antepassados, um típico vetusto delírio new age...

Pois tudo isto se passou na monarquia europeia mais hierática - apesar do seu "compromisso histórico" com a pujante imprensa mundana, gerido com sábio, ainda que por vezes falho, músculo -, onde reinava a monarca mais prestigiada e porventura, até independentemente dos seus méritos pessoais, a chefe de Estado mais reverenciada do mundo. Tudo isto onde se amontoam os restos, até algo putrefactos, do maior império do mundo. Ou seja, não haveria melhor contexto para a sofreguidão mediática, ansiosa da (re)emergência de uns "príncipes dos povos", ainda por cima condimentados pelo picante "multicultural"...

A rota que seguiriam era óbvia - até para um desatento republicano meridional. O gemebundo casal encetou o destrunfar alheio com a ansiada "Carta Racial", valiosíssima nos tempos que correm, e nisso teve imediato sucesso - tanto que até lá da Casa Branca Biden fez constar o seu apoio por "tamanha coragem"... Os britânicos, e sua realeza, metidos na armada Brexit e na esperança de serem o mais dilecto aliado (ou mesmo qual o 51º membro), aguentaram o despautério do pós-Trump, assim em afronta alheada das relações internacionais.

Entretanto o jogo suspendeu-se um pouco, dada a morte da célebre avó das vítimas. Agora, para gáudio mundial, reiniciou-se o cartear. Em momento a solo o candidato a "príncipe do povo mundial" enceta a jogatana anunciando-se "caçador de afegãos", movimento algo paradoxal que até aos activistas apoiantes confundiu. Ao qual se segue uma panóplia de apostas cujos cabeçalhos fazem os referidos apoiantes duvidar da sua pertinência estratégica. Nem mesmo Biden lhe acorre. E em torno da mesa de jogo sussurra-se "mais valia ter insistido na carta racial", um "valor seguro"...

Enfim, qual será o próximo, e terceiro, passo? Na sala já correm as apostas...

O Podcast Mudo (3): adenda a Malangatana

jpt, 08.01.23

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Reincido sobre o mais-velho Malangatana pois tendo eu botado uma memória que dele retenho logo ontem uma minha amiga-FB teve a gentileza de me narrar o seu episódio com o Mestre. Breve história mas tão dele denotativa. E também sintomática de outros tempos (felizmente) passados:

Naquele 1971 (sim, 1971...) a minha correspondente embarcara na Portela de Sacavém no avião da TAP que faria a ligação Lisboa-Lourenço Marques. Ainda imobilizados na placa foi sondada em surdina pela hospedeira: uma qualquer passageira - "senhora" dir-se-ia naquele tempo mas não agora - reclamara-se incomodada por seguir ao lado daqueloutro viajante, cujas características somáticas lhe desagradavam. E por isso lhe perguntava se se importaria ela de uma discreta troca de lugares, assim ombreando ao longo do voo com o tal indivíduo, algo a que ela se aprestou sem delongas - e nisto não posso deixar de presumir que a hospedeira tenha exercido o seu experimentado olhar clínico sobre a mole de passageiros, em busca de alguém menos rústico. "Sorte a minha" diz-me ela agora, pois durante o longo trajecto aéreo - presumo que naquela época ainda com escalas - o homem se apresentou, disse do que vinha e nisso se gerou convívio. Era o Malangatana, claro, regressando a casa após a estada em Lisboa financiada pela Gulbenkian - apesar de já ter passado anos na temível prisão da Machava (padecimento que veio a ilustrar) e de nesse mesmo ano ter sido outra vez preso. Ao fim daquela continuada conversa, já em Mavalane, a jovem recebeu este presente - um gesto que nós podemos adivinhar inscrito no continuado "charme" que Malangatana exalava mas também, é evidente, como um carinho à jovem pelo seu acto de ali ombrear, mostrando-se avessa à pestífera arrogância que ainda grassava entre tantos dos seus compatriotas. Deixou-lhe assim este agrado, o "sim meu irmão porque a voz difusa [da] criança é uma flor na boca do nosso dia a dia, 24.9. 71", que seria emoldurado logo que chegado a casa.

Décadas passaram e o então já consagrado Malangatana veio expôr ao Casino Estoril. "Morava perto e fui vê-la. Discretamente meti na sacola o quadrinho. Diante dele, discretamente mostrei-lho. Que alegria!, dizendo-me "Mas tu guardaste isto quando eu ainda não era conhecido?"..., sua tão típica reacção que se pode imaginar, até ver e escutar. 

Sorrio com o pequeno episódio e peço autorização para o divulgar, ao que Nené Barbosa logo tem a amabilidade de aceder. Escrevo o postal e deito-me, ainda cedo. Acordo, insone num qual breu mas estremunhado para ler as coisas demasiado densas que me rodeiam. Assim agarro na tabuleta e revejo o episódio sobre Wiriyamu (e não só) da excelente série "A Guerra" que Joaquim Furtado realizou há uma década, algo que vinha adiando há alguns meses. E venho a ter o prazer de rever o bom do padre Zé Luzia - que há anos raspei em Lisboa mas com o qual não privo desde a sua estada em Angoche... - ali entrevistado. E também Malangatana, num breve aparição neste episódio, centrado nas sevícias prisionais sofridas.  E acalenta-me esta "dose dupla" dele...

Depois, na alvorada, café e cigarro(s) havidos regresso à "primeira forma", volto a resmungar. Com este centramento actual em Wiriyamu, o massacre, a alusão a alguns outros massacres, as "desculpas" apresentadas ou a apresentar. Sem rodeios, este tipo de discursos sobre os "massacres" (que trazem implícita mas indita a definição quantitativa e qualitativa do que é um "massacre"), é apenas eco das nossas sensibilidades actuais, prontas a horropilarem-se com desmandos havidos. 

Não sou pacifista, julgo que há guerras justas e/ou necessárias, sendo defensivas ou  mesmo preventivas (e esta última é uma tese complicada de defender). E muitas das guerras são justificáveis no seu a posteriori - vamos encerrar-nos na avaliação da pertinência moral das Guerras Púnicas, da conquista da Gália?  E nisso temos a tendência para contextualizar o passado longínquo, isentando-o do crivo moralista, mas de julgarmos o passado recente. Ora as guerras têm um contexto histórico e a sua justificação passa muito pela sua adequação às ideias vigentes, por serem contemporâneas de si mesmas. E, de facto, as guerras coloniais portuguesas - as três guerras de independência africanas - não têm essa justificação. Eram, foram, anacrónicas. Injustas por isso. E ao dedicarmo-nos às desculpas por "excessos" militares ou policiais, aos "desmandos", às específicas violações dos "direitos humanos" ou da "convenção de Genebra", poderemos aliviar as consciências, as tais sensibilidades horripiladas. Mas ao centrarmo-nos nesses episódios estamos, de facto, a caucionar o geral da guerra, aquilo que seguia segundo os compêndios. Ora o que é de "lamentar" (o que não é "pedir desculpa") são as três guerras. E não os massacres.

Mas isso é muito mais difícil. Pois muito mais radical. E também não dá para grandes slogans... Até porque, honestamente, já passou meio século. É tempo de ombrearmos, nos aviões e alhures.

Le Pen en Afrique

jpt, 14.12.22

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Há já mais de duas décadas, o fascista e racista (e até negacionista do Holocausto) Jean-Marie Le Pen clamava que não se revia numa selecção francesa então campeã do mundo de futebol, devido à abundante presença de jogadores de origem "ultramarina" - da África, sobre e subsaariana... "Africanos", não franceses, entenda-se.
 
O argumento foi absorvido pela "esquerda" americanófila, fiel à ideologia "comunitarista", essa do "identitarismo" por lá dito "Woke". E nesse eixo raci(ali)sta há alguns anos tornou-se "viral" (como se dizia antes do Covid-19) o vitupério do comediante sul-africano Trevor Noah - encarregue do Daily Show, espectáculo televisivo de militância do Partido Democrata americano -, também ele afirmando a primazia da excentricidade dos jogadores franceses de ascendência estrangeira que em 2018 se haviam sagrado campeões mundiais. Então contestado pela embaixada francesa em Washington, Noah viria a fazer um retórico ligeiro passo atrás quanto aos jogadores, mas embrulhando-o numa veemente crítica ao modelo social laico francês e elogio ao molde racialista americano (baseado no secularismo), seguindo exactamente as pisadas do miserável discurso do então presidente Obama após o atentado à Charlie Hebdo. As suas audiências, internas e estrangeiras, rejubilaram com essa sarcática negação da efectiva nacionalidade francesa dos praticantes de ascendência ultramarina (nem a Noah nem a Le Pen chocavam os Djorkaeffs ou Griezmanns, esses que de ascendências euroasiáticas).
 
E é interessante ver como agora em África, neste actual cume do entretenimento global que é o Mundial de futebol, se vai interpretando a equipa francesa. Principalmente hoje, quando ela se apresta a culminar a revalidação do título. Pois está amplamente disseminada esta visão raci(ali)sta: jogadores "negros"? São "africanos". Selecção com jogadores "negros"? Selecção "africana".
 
Enfim, o velho Le Pen (e decerto que também a sua filha, congénere e até conviva do nosso prof. Ventura) deve rir-se ao ver que se tornou global - e até com ajuda yankee -, num verdadeiro álbum "Le Pen en Afrique".

Os influenciadores negros

jpt, 06.12.22

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Dia enevoado, algo frio, "não gosto de segundas-feiras" trauteávamos em jovens... Na manhã, já longa, via Zoom ouço gente que aprecio falando, distantes milhares de kms deste aquém-Tejo, de António Quadros (dito Grabato Dias)

Nesse entretanto custa-me ler, pouco capaz de verdadeiras atenções simultâneas. Faço a lida caseira. Após a qual deixo-me, distraidamente, percorrer em diagonal o meu feedly e, depois, o meu FB. A este rolo abaixo, lesto, e encontro partilhas, algumas até ufanas, de notícias sobre uma eleição: uma organização que leva de nome "Homensbantos" (em inglês) escolheu os 100 Negros Mais Influenciadores na Lusofonia... 

Ocorre-me comentar o tema. Mas estou com fome (e frio). Vou acender a salamandra. Saio a apanhar uma couve e colho também três bagas de pimenta. Decido-me a avançar para uma sopa, descuidada de apressada esfomeada, nisso uma "sopa de tudo" por assim dizer. Faço um estrugido, redundante será explicitar que de cebola, o qual será orlado por alho em excesso - três cabeças ainda não chochas - duas das bagas sem as suas sementes, e visitado por uma curgete, uma pequena batata e uma cenoura. Finalmente uma lata de feijão preto, aquela que estava mais à mão. Junto-lhe a água e, apressado, duas grandes folhas de couve picadas e um punhado de sal grosso, este acompanhado pelo obrigatório esconjuro "um dia destes ainda rebento", e deixo cozer durante um lento Amber Leaf. Moo tudo aquilo, junto-lhe mais duas folhas de couve picadas e deixo o lume fazer das suas enquanto reflicto sobre as diferentes necessidades do meio-campo da selecção se frente à França ou à Inglaterra... Encontrada a solução para o acesso à final, sirvo-me com abundância e convoco a companhia de uma Argus, a cerveja do prestigiado Lidl, algo adocicada em demasia mas que escorre quando bem fresca. Almoço, num murmúrio "isto está desenxabido"...

Logo sigo aziado, "a sopa a escaldar, a cerveja muito fria" concluo, científico. E lembro-me, ao lavar a loiça, que ia comentar algo, uma cena até pungente de "orgulho", "visibilidade", qualquer coisa assim. Enrolo outro Amber Leaf... e concluo "raisparta, não tenho Rennie em casa".