Na sequência do meu texto de há dias, o nosso leitor que se indetifica por o cunhado enviou num comentário a sua História Devida. O relato e o episódio merece um destaque que não teria se ficasse apenas como um comentário. Por isso aqui fica ela, com o devido agradecimento ao cunhado pela sua partilha.
Um abraço
"Dois anos depois do meu pai nos ter deixado naquela pequenina casa daquela ainda mais pequenina aldeia incrustada no sopé da grande serra; à minha mãe, a mim com quatro anos e às minhas irmãs, uma com cinco e outra em ventre materno e ter abalado em demanda de terras africanas onde se constava que era só abanar a árvore, embarcávamos no “Mouzinho de Albuquerque” numa viagem que juntaria a família em Angola, onde, tudo o indiciava, o meu pai soubera com arte e proveito abanar devidamente a árvore.
O navio era velho e pequeno, navegava devagar e às vezes até parava. Essa seria mesmo a sua última viagem. A minha mãe enjoou logo ao início e a minha irmã mais nova, essa embarcou já doente mercê de uma malga de azeitonas galegas que a tia Rosa lhe dera, pitéu a que a miúda não resistia. Esteve mesmo em risco de vida, mas escapou. De modo que com essas duas de cama, foi a minha irmãzinha mais velha com os seus responsáveis sete aninhos a ter de assumir a responsabilidade por todos, mais concretamente por aquelas duas inúteis, que eu sabia bem tomar conta de mim e não dava trabalho a ninguém. Tinha liberdade, por mim estava tudo bem e não carecia de mais nada. Assim, corria o barco de popa à proa, à minha maneira sem ser minimamente molestado com parvas recomendações disto e daquilo, e ao contrário da minha mãe e irmãs que se lamentavam que aquilo nunca mais acabava, só pedia que tivessem razão porque não me incomodava nada viver o resto da minha vida lá dentro.
Ia também nessa viagem um contingente militar, desses que o Governo mantinha nas colónias, com quem no primeiro minuto travei conhecimento e por quem ainda mais rapidamente fui adoptado como mascote. Andava com eles para todo o lado, comia com eles, via-os beber vinho pelos garrafões, jogarem às cartas e cultivar-me-ia a preceito na sublime retórica do palavrão. Enfim, a minha felicidade era plena e só me queria ver grande depressa para envergar aquela bela farda de caqui amarelo e combater em todas as guerras deste mundo, porque guerra foi a palavra mais ouvida na minha infância. Nasci em 40 e estava-se agora em 47.
Declinava um certo dia quando eu me passeava por ali, frustrado por não ver ninguém, quando reparo num militar que de costas para mim debruçado sobre a amurada contemplava o mar, perdendo-se sabe-se lá em que estranhas divagações. Era um homem grande, ainda o estou a ver. Corri para ele, contentíssimo pelo ocaso da minha solidão ter chegado ao fim, e ele quando me viu pareceu ficar muito surpreendido. Baixou-se ao meu nível e vi-o olhar receoso para todas as direcções. Ninguém nas imediações. Então soergueu-se, comigo segurado pelos braços, estendeu os dele comigo nas suas mãos, colocou-me fora o barco e disse-me numa voz rouca e segredada, que ainda hoje estremeço quando a recordo:
- E se eu te deixasse cair?
Não soube o que senti. Olhava para baixo, para o que me parecia um abismo interminável, e na medida em que a escuridão que já caíra me permitia, via água ondulante lá em baixo. Então algo explodiu na minha cabeça pedindo-me para não gritar. Depois ele jogou comigo. Largava-me e apanhava-me, largava-me e apanhava-me. Por vezes jogava-me mais acima, deixava-me cair e apanhava-me no último instante. Subitamente soube que me ia deixar cair. Vi-lhe nos olhos a decisão, até lhe senti o afrouxar das mãos. E exactamente nesse momento, um barulho fez-se ouvir mais acima, que se foi gradualmente tornando mais distinto à medida que se aproximava. Dois marinheiros vinham por ali conversando. Provavelmente com medo que eu gritasse ao ser largado, recolheu-me rapidamente, pousou-me atabalhoadamente sobre o tombadilho e fugiu a correr para a parte oposta.
Nos quatro dias restantes para término da viagem nunca mais saí do nosso cubículo, pomposamente alcunhado de camarote. Tinha feito há pouco seis anos. Todas estranharam a minha súbita dedicação familiar, mas nunca souberam nada, nem nunca saberiam. Mas soube eu, e saberia tudo. A partir desse episódio nunca mais esqueceria nada e recordo todos os factos da minha vida até à data de hoje. Todos! até o mais insignificante."