Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

É pró menino e prá menina! (tem de ser)

Teresa Ribeiro, 07.03.20

images.jfif

Já tive acesso a muita informação que fundamenta bem a razão de ser das quotas de género, informação que se encontra sem esforço como esta, esta, e esta. Podia continuar, porque o que não faltam são estudos e exemplos que demonstram que o sexismo resiste apesar dos movimentos de protesto e dos discursos politicamente correctos e portanto é óbvio que só por via administrativa se consegue corrigir esta injustiça.  Mas não quero provocar náuseas a quem deplora este tema. No dia 8 vai ser a hecatombe do costume com notícias e mais notícias sobre a situação feminina, quase todas muito más, a intercalar as do coronavírus e do futebol, por isso serei breve. Quero só partilhar uma história que me ficou na memória desde que a li, em março de 2018, numa edição da revista de uma associação empresarial, que não circula nas bancas, chamada “Comunicações”. Num artigo à volta deste tema das quotas, assinado pela jornalista Ana Sofia Rodrigues, às tantas, lê-se:

"...Para eventuais cépticos de que esta revolução cultural é absolutamente necessária, deixamos um último exemplo. A socióloga Kristen Schilt (Universidade de Chicago) e o professor Matthew Wiswall ( Universidade do Wisconsin), compilaram dados em três congressos de transexuais. Tentaram medir o seu desempenho profissional antes e depois da mudança de sexo. Os resultados a que chegaram são sugestivos. Os homens que mudaram para o sexo feminino passaram a ganhar menos (cerca de 10% menos). Já as mulheres que passaram para o sexo masculino ficaram a ganhar mais (cerca de 7,5%). São exatamente as mesmas pessoas, só mudaram de sexo. Dá que pensar."

Dá que pensar, caras e caros negacionistas (que também os há, e de que maneira, relativamente a este assunto).

Sobre as quotas

Paulo Sousa, 01.03.20

O nosso colega João André postou aqui há dias em defesa das quotas. A questão é mais contemporânea que pertinente. Ele já foi contra elas, e já não é; eu continuo a não as defender. O problema não se prende com o objectivo a longo prazo, que é louvável, mas com a clareza dos critérios a adoptar e o potencial de enviesamentos que a falta dela pode criar.

Qual o critério que deve prevalecer quando se pretende contratar quadros para um conselho de administração exemplar? O sexo da pessoa, o seu grau de deficiência ou a cor da sua pele?

A questão da deficiência faz claramente parte da lógica das quotas. A própria lei já o contempla. Se o objectivo das quotas é incluir minorias nos órgãos de topo, devem os deficientes ter ou perder prioridade em relação às pessoas de pigmentação não caucasiana, ou em relação às mulheres? Antes de avançar com tais medidas importa definir a hierarquia de minorias. Deve dar-se prioridade a candidatos não brancos, a deficientes ou a mulheres?

O João André dá o exemplo de uma micro-empresa onde trabalham dois homens que, por serem poucos, estarão dispensados de contratar uma mulher para respeitar as quotas. Então importa definir o número de funcionários das micro e pequenas organizações a partir do qual esta flexibilidade deixa de ser aceitável. E a partir de quantas pessoas na empresa será obrigatório contratar pessoas de pigmentação não caucasiana? E se a maioria já for de pigmentação não caucasiana, quantos ou até quantos brancos deverão ser contratados? Um funcionário deficiente e de origem africana poderá contar em duas categorias?

Defender flexibilidade de interpretação para uma lei que se quer geral e abstracta pode criar efeitos contraproducentes. Se perante uma dúvida temos de recorrer ao bom senso para conseguir aplicar uma lei mais vale não a decretar, pois o bom senso continua a dispensar regulação.

Em favor de quotas

João André, 27.02.20

Este penso rápido do Pedro lembra-me um problema: numa sociedade igualitária, onde toda a gente tem as mesmas oportunidades e não há descriminação de nenhum tipo (não vou listar as diferentes possibilidades, são demasiadas), porque razão não temos uma sociedade menos dominada por homens brancos?

No título tenho a palavra "quotas". Durante muito tempo me perguntei se são boas ou más. Já fui contra, a favor, contra de novo, indecidido e agora sou francamente a favor (deixei passar provavelmente mais umas estações e apeadeiros nestas reflexões e este é um estado de espírito actual). Para falar em quotas tems que começar com uma pergunta: são os homens brancos mais capazes que mulheres e homens não-brancos? Deixo de lado as subdivisões de escandinavos, mediterrânicos, eslavos, etc e tal. Fiquemo-nos pela cor aproximada da pele.

Creio, espero que correctamente, que a esmagadora maioria das pessoas responderá com um sonoro NÃO! Então fica novamente a pergunta: porque não estão tais pessoas igualmente representadas em cargos superiores? Porque não têm o mesmo nível de educação (eu sei que mulheres até têm maior probabilidade de ter cursos superiores que os homens, mas iso apenas amplifica a minha questão)? Porque razão existe tal diferença salarial entre pessoas com a mesma educação e responsabilidades e experiência quando a única diferença é um cromossoma ou o tom de pele? E não falo apenas de Portugal, naturalmente, falo de todo o mundo.

A resposta é, para mim, óbvia: o racismo e machismo existem, estão vivos e muito bem de saúde. Não falo de racismo ou machismo pessoal, onde os indivíduos pensam que o outro é de facto inferior só por ser mais escuro ou ser mulher (embora o machismo seja muito mais aberto). Todos nós os teremos um pouco, mas isso será um resquício da nossa evolução, que favoreceria os nossos grupos (tribos), os quais durante a maior parte da nossa história eram constituídos por pessoas parecidas connosco. A suspeita de estrahos estará entranhada no nosso código genético, mas não é inultrapassável, longe disso. Penso que o racismo e machismo são essencialmente estruturais e legados de um passado onde eram claros, abertos, assumidos e até marcas de honra. Li esta semana que Churchill sugeriu o lema "Keep England White" em 1955, o que se não é suficiente para manchar a imagem do estadista, certamente dá uma nova perspectiva e um período tão recente. Isso só demonstra como séculos de história terão deixado uma sociedade tão entranhada de homens brancos que abrir as portas a outros se torna difícil.

Repito: não é uma questão de racismo ou machismo pessoal. Duvido que na maioria dos casos alguém que escolha um homem branco em deterimento de outro tipo de candidato no papel igualmente qualificado o faça por esses motivos. Será normalmente por questões de ter um perfil pessoal mais adequado, ou algo do género. Em inglês refere-se a isso como "better fit" e é aquilo que normalmente se chama de "similarity bias", ou seja, uma preferência por pessoas semelhantes a nós. Numa sociedade onde os homens brancos dominaram, isso significa que a preferência, mesmo que não intencional, será por outros homens brancos.

Para mim a solução passa por quotas, mas não nas direcções das empresas ou nos cargos mais altos seja de onde for. Tem que ser em todos os níveis em carreiras de todos os tipos, públicas ou privadas. Só assim se elimina essa tendência de escolher alguém semelhante ou, pelo menos, se colocam outras pessoas para a equilibrar o suficiente. Funcionaria? Não sei, mas é a melhor solução que imagino, já que a igualdade de oportunidades já falhou completamente. Haveria muitas outras medidas a tomar, mas apenas falo desta.

Há um benefício adicional: assumindo que a percentagem de pessoas com talento será idêntica independentemente de cor ou sexo, isso significa que num mundo onde os homens brancos são favorecidos, haverá muitos profissionais que estão subvalorizados. As empresas que praticarem alguma discriminação em desfavor de homens brancos poderão colher benefícios inesperados ao pescar num mar essencialmente livre de outros pescadores.

O negro é bom porque é negro.

Catarina Duarte, 27.11.19

Se, para além de mulher, eu fosse negra, e se, devido ao meu trabalho e dedicação, eu conseguisse alcançar um lugar de destaque na nossa sociedade, nada me poderia deixar mais triste do que a injustiça de associarem o meu mérito ao meu género ou à minha cor da pele.

Fala-se imenso da importância, em sociedade, de se forçar determinados comportamentos para que eles depois saiam de forma natural. Um exemplo disso é a definição de quotas nas empresas, impondo a contratação de mulheres ou de negros, com as quais eu não concordo pois, e falando sobre as quotas em particular, mais não são do que formas de discriminar e de valorizar algo que não tem que ser valorizado – deve ser motivo de igualdade e não de desigualdade.

Para além disso, não acho piada relevar características óbvias de determinada pessoa, quando se fala em determinados feitos ou posições, como se essas características definissem essa mesma pessoa: é a primeira mulher negra a fazer aquilo; quantas mulheres tens como ministras? Claro que é importante falar disso!; é a primeira vez que se contrata um gago para aquele cargo; já viste que até se contratou um homossexual?.

No meu mundo e, agora com algum conhecimento de causa, até posso dizer “na minha casa”, devíamos educar pela igualdade e não pela diferença e, na igualdade, não há espaço para valorizar determinado acontecimento associando-o a uma característica pessoal outrora alvo de dedos apontados.

Quando o fazemos, ainda que com a melhor das intenções, estamos a dar um mau exemplo, estamos a dizer, a quem pretendemos educar, que essas características nos ajudam a atingir objectivos, que são pontos fundamentais para a nossa progressão. Podemos estar, no limite, a valorizá-las tanto que as colocamos acima do que é realmente importante e, na maior parte dos casos, o importante mesmo é o trabalho, o mérito e o trabalho e o mérito. Não falamos de homens, de mulheres, de pessoas negras, brancas, gordas, magras, homossexuais, bissexuais ou transsexuais. Falamos de trabalho e mérito.

Posto isto, se somos pela justiça e pela igualdade, temos mesmo que continuar a valorizar aquilo que menos depende de nós, como as nossas características inatas e físicas, em vez de valorizarmos o trabalho e o mérito, que, em última análise, é aquilo que realmente nos define?

Quotas - Equívocos à direita

José Meireles Graça, 14.07.19

É pouco provável que o assunto das quotas Fátima Bonifácio desapareça do espaço público porque serve os discriminados, reais ou imaginários (as quotas são um atalho para a melhoria da condição, nuns casos, e a porta para lugares inacessíveis, noutros), e os radicais de esquerda porque precisam de bandeiras que lhes alimentem a fábula da superioridade moral e, de caminho, lhes garantam uma boa base eleitoral, e por sua vez lugares de eleição e nomeação. O assunto conta também com o interesse da mole das pessoas Maria-vai-com-as-outras, que compram a moda do pensamento bonzinho que andar no ar, e ainda daquelas de direita que têm um medo pânico de que as rotulem de racistas, ou machistas, ou negacionistas, ou outra coisa qualquer que os acantone como reaccionários.

Miguel Poiares Maduro, num interessante artigo no DN, vem dizer que a discriminação existe porque os processos de selecção são estruturalmente enviesados, embora não formalmente discriminatórios, e que o uso de algoritmos provenientes da inteligência artificial, alegadamente objectivos, veio expor esta discriminação subjacente: “A IA aprende com base no histórico e descobriu-se que em certos casos os algoritmos excluíam, por ex., os diplomas universitários em colégios femininos; era isso que lhes ‘ensinava o histórico'."

Com base nesta constatação, propõe um armistício esquerda/direita, em torno da aceitação das quotas, colocando duas condições: “Primeiro, necessitamos de dados para conseguir apurar da existência dessa discriminação estrutural com base na raça ou género numa determinada área. Segundo, as quotas devem estar sujeitas a uma cláusula de caducidade. Devem existir apenas enquanto existir o risco dessa discriminação estrutural. Sem essa cláusula, irão consolidar-se numa nova forma de discriminação”.

Poiares parte do princípio de que o apuramento de dados é uma actividade inocente para apurar a existência de discriminação. Mas não é: os milhentos estudos que existem para demonstrar que as mulheres ganham menos do que os homens raramente comparam situações iguais, isto é, assentam no pressuposto de que se os homens, ou as mulheres, estão sobre ou sub-representados numa profissão qualquer, isso é uma fatal decorrência de práticas discriminatórias. Sê-lo-á, em muitos casos; e noutros não. E nada garante que o sistema de quotas não venha a trocar reais discriminações com base em preconceitos misóginos ou racistas por outras burocráticas em que o homem branco é o perdedor, em razão de critérios rácicos e sexistas in reverse.

No exemplo dado acima (o da discriminação apurada pela IA) acaso não haverá formas menos intrusivas, autoritárias e insusceptíveis de criar novas discriminações, para corrigir paulatinamente a situação? E acaso o assunto foi devidamente estudado, à luz da precaução metodológica, que se deve sempre ter, de que correlações nem sempre são causalidades?

Quanto à cláusula de caducidade, faz sorrir. Aberta a porta das quotas, é um caminho sem retorno porque é inesgotável a quantidade de profissões e lugares que não reflectem a exacta proporção de homens/mulheres ou brancos/pretos ou hetero/gays ou outra dicotomia qualquer. Apenas um exemplo: Poiares Maduro acharia bem quotas para juízes homens, sob pretexto de que a maioria dos magistrados são mulheres, na hipótese de a Inteligência Artificial vir a esclarecer que a maior parte dos seleccionados fazem chichi sentados?

Nisto como noutras coisas, nunca houve falta de consenso e de quem esteja em cima do muro.

Parece que o PS comprou, com décadas de atraso, a ideia simples de que as despesas do Estado não podem ser superiores à receita, ideia salazarista e europeia que servia para separar a esquerda da direita. Agora não serve. Claro que o equilíbrio não é obtido da melhor maneira, e o preço da escolha da dupla Costa/Centeno é o lento deslizar do país para o fundo da tabela dos rendimentos na Europa e os serviços públicos cada vez mais votados ao desserviço do público. Mas o eleitorado, que não pode ser enganado o tempo todo, ainda está na fase do benefício da dúvida, como se verá nas próximas eleições, à semelhança das últimas.

De facto, entre versões do mesmo socialismo edulcorado, prefere o original. E o discurso de que as eleições se ganham ao centro tem dois defeitos: um é que não vale a pena ganhar eleições para fazer a mesma coisa que faria quem foi derrotado; outro é que as derrotas de hoje, se em nome de escolhas seguras e claras de políticas alternativas, são as vitórias de amanhã.

Centro? Consenso? Não estamos em tempo disso: o PS que se enforque com a corda da sua vitória, acolitado pelos soviéticos e venezuelanos que lhe servem de bengala.

Quotas da discórdia

José Meireles Graça, 09.07.19

O Pedro Correia, decerto por achar que o Delito está com um excesso de prestígio que urge empanar, convidou-me para integrar o plantel. Seria normal que me apresentasse, mas não o faço por haver já uma plétora de vaidosos no espaço público e o amor da verdade me obrigar, falando de mim, a referências encomiásticas. As quais, mesmo estando cobertas pela liberdade da minha opinião, que naturalmente respeito, suscitariam porventura alguma rejeição dos leitores menos esclarecidos.

 

Prefiro republicar um texto (acolhido no cantinho discreto da blogosfera onde há anos me alivio de ódios e aversões) sobre a indignação da semana. Ei-lo:

 

Nunca aceitei, nem aceito voluntariamente, as quotas para mulheres – nos cargos resultantes de eleições, nos de direcção de empresas e em todas as situações em que estejam sub-representadas e essa sub-representação seja apresentada, com boas ou más razões, como advinda de preconceitos.

 

Não é que, no mercado de trabalho ou na dura competição pela obtenção do poder político, elas não tenham objectivamente handicaps, sobretudo se tiverem ou quiserem ter filhos. É que, legalmente, a condição de mulher já está reconhecida como de perfeita igualdade em direitos e portanto o inegável surgimento de mulheres em lugares de mando é uma legítima conquista fundada no mérito. Tão pacíficas hoje, a evolução e o mérito, que ninguém no espaço público e na opinião defende uma marcha-atrás nos direitos cívicos das mulheres, ou na igualdade entre os sexos, nem torce o nariz quando uma delas atinge lugares de topo, senão pelas mesmíssimas razões que torceria se fosse um homem – isto é, por se tratar de uma imbecil, ou ignorante, ou esquerdista, ou fascista, ou outra coisa qualquer que não tem nada a ver com sexo e tudo com ideologias, crenças, práticas e discurso.

 

Dito de outro modo: eu acho a senhora Úrsula von der Leyen um perigo e a senhora Lagarde uma estrela pop, uma por ser federalista e a outra por ser um saco de vento inconstante e superficial. Mas nada permite supor que desempenharão pior papel do que qualquer dos seus colegas, visto que na alta roda do funcionalismo supranacional não há falta de homens com aquelas características: lembremo-nos de Guterres, tão oco e esponja de ideias boazinhas que andam no ar que para ser ainda mais politicamente correcto só lhe falta usar saias, ser gay e vegan, tudo a tempo parcial. A tempo completo, continua a ser o perfeito patarata verboso que foi toda a vida.

 

Pois bem, o sistema de quotas para mulheres tem dois problemas:

 

Um é o de que, se uma mulher chega a um lugar por ser mulher e não por ser melhor do que qualquer outro candidato, a qualidade do desempenho só pode, se a lógica não for uma batata, ressentir-se. É certo que o preconceito pode, em circunstâncias iguais ou parecidas, fazer pender a balança para o lado dos homens, sobretudo se quem decide tiver, como muitos provavelmente terão, preconceitos inassumida ou inconscientemente misóginos. Sucede que confiar na evolução dos costumes é um caminho seguro – dificilmente farão marcha-atrás se entregues a eles próprios; mas acreditar na engenharia social e nos poderes do Estado para os reformar pode despertar, e desperta quando não haja consenso, a reacção dos que foram derrotados circunstancialmente – quem manda e legisla hoje são uns e amanhã outros. Tenham paciência, senhoras, o caminho da engenharia social é reversível.

 

Outro é o do precedente: se as mulheres estão insuficientemente representadas nos lugares de topo porque neles não figuram na mesma proporção que no conjunto da população, o mesmo raciocínio se pode aplicar a outros cidadãos com marcas distintivas já não de sexo mas de orientação sexual (gays ou lésbicas, p. ex.), origem étnica (pretos, ciganos, asiáticos, etc.), religião (muçulmanos, ateus, protestantes sortidos, etc.) e o mais que se queira que permita identificar um grupo social qualquer que não esteja, ou não se ache, adequadamente representado. E, é claro, se incluirmos no leque de instituições as do ensino, porque sem graus académicos numerosas carreiras estarão vedadas, então é apenas uma questão de tempo até termos quotas para homens, porque estes já estão hoje insuficientemente representados na maior parte dos graus de licenciatura.

 

Ou seja, a derrogação do princípio todos iguais perante a lei, por generosa que pareça a bandeira sob a qual se acolhe (feminismo, anti-racismo, igualitarismo, etc.), é grávida de uma interminável guerrilha com vencedores hoje que serão os derrotados de amanhã, e abre uma porta de conflitualidade dispensável. E não se julgue que o facto de as mulheres serem a maioria impede qualquer reversão das conquistas do feminismo assanhado: porque precisamente porque as mulheres não são inferiores aos homens e não têm menos discernimento na avaliação das políticas públicas é que, a prazo, julgarão com severidade todas as distorções que, em nome delas, se operaram pela longa e intrusiva mão do Estado.

 

Maria de Fátima Bonifácio, em artigo no Público de sábado passado (disponível apenas para assinantes), verbera este estado de coisas e manifesta-se contra as quotas para negros e ciganos a propósito das declarações de um tal Rui Pena Pires, secretário nacional do PS, que terá expectorado: “O PS quer discriminação positiva para as minorias étnico-raciais” e “Se fizermos uma política de alargamento de acesso ao ensino superior, já resolvemos parte do problema. Não faz sentido ter um ensino virado para os melhores alunos, mas sim para todos os que têm as condições mínimas para entrar”.

 

Por outras palavras: o PS quer votos cativos de pretos e ciganos e para o assegurar está disposto a meter no Parlamento, e eventualmente no governo, algumas personagens daquelas etnias que poderão até não fazer má figura, tendo em conta que num e noutro órgão do que não há falta é de personagens especialistas em patacoadas interesseiras e bons amplificadores de disparates bem-pensantes. Mas isto é o menos: abandalhar o grau de exigência do ensino (não há recursos para meter todos, e por conseguinte dar preferência a uns implica excluir outros melhores, para já não falar de uma discriminação ilegal à luz da Constituição, se bem lida) tem um custo oculto: as nossas pobres elites, cuja qualidade está ligada em parte à do ensino superior, levam mais um golpe.

 

Portanto, eu estou com Maria de Fátima Bonifácio. Mas apenas nas conclusões. Sobre os pressupostos, Rui Rocha escreveu no Facebook o seguinte:

 

Em artigo publicado hoje, Maria de Fátima Bonifácio afirma a não descendência (?) de africanos e ciganos da Declaração dos Direitos do Homem. Isto é usado para recusar um sistema de quotas. Mas, se admitíssemos o argumento, este serviria facilmente para negar-lhes também esses mesmos direitos fundamentais. Porque não “descendem”, teríamos que aceitar, por exemplo, que não se lhes aplica o princípio de que todos os seres humanos nascem livres e iguais. Aceitar esta tese abre a porta a um inquietante relativismo moral que parece ser, aliás, aquilo que Bonifácio queria combater. A proposta de quotas deve ser discutida a partir do entendimento sobre os princípios da liberdade e da igualdade, mas nunca da “descendência” ou não de valores fundamentais e universais”.

 

Subscrevo, ainda que qualificasse a “igualdade” acrescentando-lhe “perante a Lei”. E acrescento: O Estado não pode nem deve tolerar comportamentos e práticas que, em nome do multiculturalismo, ofendam valores axiais (com perdão da palavra) do tipo de sociedade que temos, desde logo a igualdade entre os sexos ou a liberdade de expressão da opinião, por exemplo. E isto sem complexos, porque comportamentos não são opiniões, salvo quando estas consistam no incitamento à prática de crimes. Opiniões, cada um tem as que tiver e é livre de as exprimir porque não é a mesma coisa ter opiniões racistas (que são perfeitamente legítimas, tanto como acreditar que a terra é plana, o comunismo o fim da História, ou outro disparate qualquer) e agredir, desconsiderar ou por qualquer forma discriminar um negro; e pode achar-se, e até acreditar por razões religiosas, que a excisão genital feminina é algo de positivo para a coesão social, mas isso não deve impedir que quem a recomende e pratique seja criminal e severamente punido.

 

Por mim, estou certo de que não é cientificamente defensável que por causa de características físicas genéticas haja alguma espécie de superioridade ou inferioridade de algum grupo humano, a viver entre nós ou algures; mas isto não é a mesma coisa que imaginar que todas as culturas se equivalem. Se fosse o caso, todo o progresso social seria impossível porque não haveria em nome do que mudar. E não estou certo, ao contrário de Fátima Bonifácio, que a integração de certas comunidades seja impossível: a tolerância em relação a comportamentos ofensivos dos valores que temos como essenciais, sob o pretexto da neutralidade cultural, é que pode atrasar a integração; e a discriminação positiva também, por ser o reverso da mesma moeda.

 

Finalmente, no dia seguinte o director do Público achou útil publicar um editorial lamentável, em que pede desculpa aos leitores por, em nome da pluralidade da opinião, dar guarida a um texto com “proximidade a teses racistas e xenófobas”.

 

Em vez de qualificar erroneamente um texto que tresleu, teria feito bem em não dizer nada ou, no máximo, esclarecer pela milionésima vez que a liberdade de opinião ou serve para exprimir pontos de vista dos quais se discorda ou não serve para nada.