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Delito de Opinião

A quarta revolução (5)

Sérgio de Almeida Correia, 25.04.14

Estas breves notas de viagem ficariam demasiado incompletas sem uma referência ao novo museu da cidade de Cantão. Fazendo jus ao desenvolvimento de uma arquitectura renovada, a sua imagem impressiona pela cor vermelha que rompe o cinzento tão típico da região nesta altura do ano. Uma vez mais aberto todos os dias, com entradas gratuitas incluindo para estrangeiros, é um repositório do passado histórico, cultural e etnográfico da cidade. Com inúmeras indicações em chinês e inglês, ali é possível encontrar trajes regionais, costumes, a reprodução de casas e vilas tradicionais, réplicas de antigas embarcações usadas no comércio e de barcos-dragão, até gravuras do período colonial e do período da Guerra do Ópio, com imagens da antiga feitoria de Shamian, porcelanas de diversas dinastias, quadros a óleo e a fauna e flora da região. Uma vez mais com recurso a elementos multimédia da última geração, famílias inteiras, muitas vindas do interior da província, passeavam-se sem nos atropelarem nem incomodarem, registando também neste aspecto a diferença relativamente ao que acontecia há duas décadas.

Não sei se por causa das epidemias relacionadas com o terrível H5N1, ou se em resultado da evolução verificada no país a todos os níveis, as instalações sanitárias, outrora verdadeiros depósitos escatológicos onde a maioria se recusava a entrar, são agora, incluindo as que surgem em muitos outros locais públicos, dotadas de papel, desinfectantes, água e sabonete líquido em profusão. As toalhas de papel podem ter-se esgotado mas haverá pelo menos um secador de mãos japonês ou alemão a funcionar. Já o mesmo não direi das imundas casas de banho nacionais, a começar pelas das nossas estações de comboios, de algumas áreas de serviço das auto-estradas ou do Aeroporto da Portela, onde ainda recentemente tive oportunidade de registar uma reclamação no balcão da ANA devido à imundície que encontrei logo pela manhã após ter feito o check-in na área das partidas internacionais.

 

Como a evolução e o desenvolvimento de uma cidade não poderá ser visto apenas nas zonas mais modernas, resolvi percorrer parte da cidade antiga que eu já conhecia de anteriores deslocações, quer ao longo do rio, a partir de Shamian pela  Yanjiang West Road, quer por algumas artérias pedonais, como a Beijing Lu, que continua a ser um paraíso para os amantes de artigos contrafeitos, dos Rolex e IWC às malas tipo Hermès a preços de saldo. A apreensão das mudanças é imediata. Agora, ao longo do rio há uma via para bicicletas, que deixaram de ser um instrumento de trabalho para se transformarem em objecto de lazer, sendo possível ver muitos velocípedes de última geração, das melhores marcas, daqueles que fazem sonhar os habitués do percurso Cascais-Guincho. As coisas mudaram tanto que agora até os vendedores de fruta, legumes e cana de açúcar, se fazem transportar em triciclos dotados de motores do tipo das antigas Solex. Os autocarros são muito mais novos e menos poluentes, as paragens têm placas e indicações várias, nos cruzamentos já ninguém se atropela porque há semáforos e em muitos locais câmaras de vigilância. A limpeza melhorou, dos papéis às beatas, e pese embora uma noite, ao regressarmos a pé ao hotel, nos tenhamos confrontado com dois ratos em fuga. Nada que não tivesse visto já em Lisboa, Londres ou Nova Iorque, ou até na garagem do meu escritório. Antes era normal ver o lixo amontoado pelas esquinas, os caixotes e sacos depositados na via à espera que alguém os recolhesse. Actualmente há contentores de lixo como os nossos. Creio que talvez ainda não tenham consciência da necessidade deles serem regularmente lavados, mas o avanço é indiscutível num espaço de tempo relativamente curto, ainda que medido pelos nossos padrões.

 

As noites são hoje muito mais iluminadas, mas por volta das 23h as luzes mais intensas vão-se apagando. O que não invalida que alguns edifícios emblemáticos, como o velho edifício da Alfândega ou o soberbo Banco da Agricultura, continuem com os focos ligados até mais tarde. O espectáculo das iluminações começa a rivalizar com o de algumas outras grandes cidades ocidentais e é motivo de orgulho dos locais. Um passeio interessante poderá ser feito ao longo das margens do rio, ao cair da noite, numa das muitas embarcações que a partir de diversos pontos da cidade oferecem esse serviço, como se estivéssemos em Paris ou Amesterdão.

 

Do outro lado do rio a majestosa Canton Tower está entre as mais altas do mundo. Tem 600 metros de altura e um observatório a 433, sendo possível dar um passeio no exterior, quando o tempo o permite, numa espécie de carrossel. A Torre Eiffel em Paris tem 324 metros e por aqui já se pode ter uma ideia do que é a vista de lá de cima, em dias claros. À noite também está iluminada, possuindo no seu interior restaurantes e algumas lojas, e o metro vai até lá.

 

Enfim, em jeito de conclusão alguns diriam que são tudo maravilhas. Não caio nesse erro e tenho a sensação de que não será o facto de um destes dias começar a funcionar o elevador mais rápido do mundo (72km/hora) num edifício de escritórios, de uma companhia aérea local ter encomendado à Boeing mais seis dezenas de aviões de passageiros da última geração, que irá iludir outras realidades como os linchamentos populares que de um momento para outro podem ocorrer em qualquer local, a dificuldade em acomodar os direitos humanos, o passado próximo, a liberdade e processos transparentes e democráticos à imensidão do país. Por ora são realidades que não conseguem conviver. Só que de quem evoluiu tanto e tão depressa em pouco mais de duas décadas, levando educação e conhecimento a tantos milhões depois de ter passado num século por uma guerra civil, ter sofrido a humilhação da Manchúria, vivido a Guerra Fria com constantes revoluções e convulsões internas, purgas cíclicas e a ostracização dos seus melhores quadros, recuperou depois Hong Kong e Macau nas condições de segurança e paz em que o fez, estando a cumprir aquilo a que se comprometeu e que ainda recentemente deu mais um passo no aprofundamento das relações com Taiwan, é de admitir que as próximas duas décadas caminhem ao mesmo ritmo.

Esta é a China que o Presidente da República irá encontrar em Maio, quando aqui se deslocar em visita oficial. A política de pequenos grandes passos começa a dar frutos. Muitos. Para os homens livres, e que têm como aspiração e horizonte de vida sentirem-se cada vez mais livres, o tempo de viajar na China enquadrado e escoltado terminou. Essa experiência é agora parte da minha memória. Estou satisfeito por isso. Por mim e pelos chineses. E por conhecer a nova realidade. Hoje passo a fronteira sozinho, com o meu passaporte e um visto para entradas múltiplas válido para dois anos, emitido sem necessidade de explicações ou de responder a inquéritos imbecis, como alguns a que para entrar nos Estados Unidos já me pediram. Do outro lado, compro o meu bilhete para um comboio de alta velocidade, marco o meu hotel pela internet, levanto dinheiro nas ATM, desloco-me livremente, e mesmo sendo um ocidental posso circular discretamente. Não tenho de dar satisfações a ninguém. Se nos anos 80, ou ainda nos 90, do século passado, me dissessem que isso seria possível na China em 2014, eu não acreditaria. Ainda há milagres. E bem menos dolorosos do que muitos supunham.

E, também, dos que aqueles a que os portugueses, lamentavelmente resignados perante a catástrofe dos partidos que têm e as respectivas classes dirigentes, se habituaram nos últimos anos; fazendo com que a celebração de 40 anos de liberdade se tenha transformado num miserável jogo de comadres que se dilui em discursos de circunstância, questões protocolares próprias de parolos e idiotices institucionais de estalo. Enquanto os outros, partindo de patamares muito mais baixos, evoluem e os ultrapassam.

A quarta revolução (4)

Sérgio de Almeida Correia, 24.04.14

Um dos grandes problemas com que há algumas décadas os europeus se confrontavam ao viajarem pela China era a dificuldade em encontrar uma alimentação que satisfizesse padrões mínimos de higiene na sua preparação e confecção, e que fosse aceitável para os respectivos padrões culturais. A província de Guangdong foi desde há muito considerada uma das pérolas gastronómicas da China, não sendo por acaso que o tradicional Dim Sum, ou Yum Cha entre os falantes de cantonense, teve aqui as suas origens. Apesar disso, durante muitos anos só era possível fazer refeições decentes nos hotéis e muitas vezes, mesmo aí, não raro em condições deficientes. De todos os países asiáticos que conheci, talvez aquele onde se comesse pior fosse na China, situação que durante muitos anos me "impediu" de fazer deslocações mais longas e estadias mais prolongadas pelo interior. Tirando uma ou outra cidade costeira, Pequim e Xangai eram os únicos destinos onde eu sabia que melhor ou pior me "safaria".

A situação é na actualidade incomparavelmente melhor. Os hotéis continuaram, obviamente, a servir boas refeições, o que se tornou mais evidente pelo aparecimento de dezenas e dezenas de novos estabelecimentos de cadeias internacionais de cinco estrelas. Aí há sempre a garantia de se comer bem, embora se saiba de antemão que a conta será proporcional ao número de estrelas. E quanto a estes deixo desde já aqui duas notas. Uma para o italiano Il Prego, que me foi também recomendado, mas onde cheguei tarde para o almoço, no quadragésimo andar do West Inn Guagnzhou, cuja fotografia aqui deixo. A outra é para o super referenciado "G", no Grand Hyatt.

 

Mas para lá dessas alternativas mais caras, Cantão tem hoje um conjunto de restaurantes, de rua e em centros comerciais, que podem deixar descansado o mais intraquilo gastrónomo ocidental. Sem contar com os restaurantes chineses, dos mais económicos aos dos roteiros internacionais do tipo Michelin servindo a melhor e mais requintada cozinha chinesa, há uma profusão de pequenos restaurantes belgas, franceses, turcos, tailandeses e japoneses, onde é possível comer uns bons mexilhões, um peixe muito razoável, sushi, sashimi, tempura e tepaniaki de grande qualidade com a melhor carne das vacas de Kobe.

Convém, igualmente, não esquecer as numerosas steak houses, americanas, australianas e neo-zelandesas, o já famoso 1920, alemão, que abriu agora uma terceira casa na zona nova de Tianhe, bem como os bares irlandeses, onde também se podem fazer excelentes refeições. Na Xingsheng Road, nas imediações do Hotel W Guangzhou (Starwood Hotels & Resorts), é mesmo possível encontrar um restaurante cuja ementa anuncia a confecção dos seus pratos com azeite português e que, entre outras "especialidades", apresenta no cardápio um bacalhau assado com batatas a murro.

Quanto aos irlandeses, sempre bem dispostos e generosos, deixo aqui a sugestão de visitarem o McCawley´s, numa rua interior, com entrada a partir do 16 da Huacheng Avenue (shop 101, estação de metro de Zhujiang New Town, TianHe District), onde também se pode encontrar um simpático restaurante francês e um, creio, australiano. O Mc Cawley´s foi o bar do ano em 2012 e 2013 e aí é possível encontrar gente de todas as origens, beber um óptimo café, saborear as melhores cervejas e os maltes mais puros, servidos por chineses jovens expressando-se num inglês de primeira água, e ver os golos de Cristiano Ronaldo ou Fernando Torres.

Por falar em café, este tornou-se numa moda e foi uma agradável surpresa. Casas como o famoso Costa, a Pacific Cofee Company ou o popular Starbucks, que se especializou na preparação de mistelas derivadas do genuíno, são como cogumelos nalgumas zonas da cidade e estavam presentes em quase todos os centros comerciais onde entrei. Há máquinas excelentes, as marcas italianas entraram em força e é possível beber café bem tirado e de boa qualidade, coisa que até na Europa é difícil conseguir em muitas cidades. Em Cantão já ninguém desespera por um café.

De todos os locais onde estive deixo aqui uma nota especial para Le Jardin d`Olive (101-48, Ti Yu Xi Lu, junto à saída H do metro de Ti Yu Xi, Tian He District), cujas decorações natalícias devem ficar de um ano para o outro, também num beco que dá acesso a um páteo interior. Tirando esses pormenores, recomendo as vieiras St. Jacques e os mexilhões no forno. Para quem gosta, que não é o meu caso, cuja única ave que reconheço não é comestível, pertence à família das de rapina e chama-se Vitória, aconselha-se uma das quatro opções do pato (com molho de laranja e mel, de vinho, de pimenta preta ou de paté). Quem o comeu deliciou-se. Os preços são 1/3 ou 1/4 dos praticados nos bons hotéis e há vinho para várias bolsas. O schnauzer da dona não ladra, só aparece no final da refeição e é suficientemente esperto e civilizado para não sair da zona da caixa e não incomodar os clientes. Tem uma esplanada simpática, embora sem vista, suficientemente ampla para se fumar um charuto no final da refeição. Para estes, os apreciadores de puros e boa música, as alternativas também são várias. O bar do Grand Hyatt, no vigésimo segundo andar, onde fica a recepção do hotel, acolhia na altura o pianista e saxofonista John Cole. É pequeno mas suficientemente acolhedor para merecer uma visita e uma charutada, graças à sua excelente extracção. E,  com sorte, encontram-se lá alguns portugueses, como os que aproveitaram a Páscoa para irem promover os seus produtos à Feira Internacional.

À semelhança do que acontece em Hong Kong, em Seul e nalgumas cidades do Japão, é normal aparecerem restaurantes nos pisos mais baixos dos edifícios de escritórios, os quais estão, em regra, devidamente assinalados e possuem simpáticas hospedeiras que convidam os transeuntes a subir. Num deles, visitei o Landmark Bistro. Publicitado como sendo o restaurante do "Chef Alan", que possuía um passado em restaurantes estrelados, pois trabalhara no Jean Georges (New York City) e no Citronelle (Washington DC), revelou-se um fiasco. Não pela comida, de boa qualidade e confecção, nem pelo preço, bastante aceitável para o local e para os créditos do cozinheiro, mas pela comprovação de que um mau serviço é um verdadeiro desastre que arruína em dois tempos a reputação do melhor restaurante. Da colher de sopa retirada do prato da minestrone e pousada directamente sobre a toalha imaculadamente branca (a ideia era utilizá-la para servirmos o prato seguinte), aos talheres do risotto de trufas negras e chocos salteados com os quais pretendiam que comêssemos o lombo de pimenta, sem esquecer a deficiente iluminação do espaço e o aviso, às 21h, de que a cozinha encerrava às 22 e o restaurante às 22.30, aconteceu de tudo um pouco. Valeu o bom humor da minha companhia, fazendo-me notar os excelentes grissinos e o pão de azeitona. Ah, e também a sobremesa. Uma magnífica tarte maçã para dois que vai ao forno numa frigideira e é assim que chega à mesa, feita numa massa finíssima, a lembrar a dos melhores pastéis de Tentúgal, polvilhada com açúcar em pó e acompanhada, ainda morna, de gelado de baunilha. Convenhamos que soube a pouco. O "Chef Alan" trabalhou em excelentes restaurantes, tem uma casa optimamente localizada e bem decorada, mas passou tanto tempo em volta dos tachos e fornos que se esqueceu de dar umas luzes à mulher - chefe de sala - e à rapaziada sobre a importância de um serviço decente. Com mais uns anos e o aumento da concorrência é natural que venha a melhorar.

A quarta revolução (2)

Sérgio de Almeida Correia, 22.04.14

Quando por mero acaso, na antevéspera da minha partida, me cruzei no elevador do edifício onde agora resido com um amigo que me recordou a necessidade de não deixar escapar uma visita à Ópera de Cantão, não me passava pela cabeça rever a cidade e não passar por esse novo ex libris, para mim uma completa novidade. Creio que a arquitectura, conjuntamente com a música, com o cinema e com a literatura, é uma das marcas civilizacionais mais intensas e duradouras, simbolizando o espírito de mudança, a revolução e profundidade do pensamento, o traço indelével dos costumes de uma época, das suas prioridades e preocupações.

Tenho tido a sorte, felizmente, de ao longo da minha vida, pese embora algumas circunstâncias adversas que muito a marcaram, de poder ver, com total liberdade, sem o favor do Estado ou subsídios de empresas públicas ou privadas, apreciar e sentir algumas das mais emblemáticas e maravilhosas obras da arquitectura mundial de todos os tempos. E gostando de grandes espectáculos, de grandes realizações e desempenhos de excepção, em especial de ópera e de música clássica, pensava que depois de ter visitado, por altura do bicentenário da Austrália, a Ópera de Sidney, que já nada me impressionaria. Nada de mais errado, começando mesmo por Portugal e por algumas realizações das últimas duas décadas que todos devemos à arquitectura nacional.

Fruto de um concurso internacional, cuja short list incluiu os nomes de Rem Koolhaas, da cooperativa austríaca HImmelb(l)au e a aclamada arquitecta iraquiana Zaha Hadid, foi a esta última que coube a tarefa de a partir de 2002 e até 2010, ano da sua inauguração, em Maio, dar corpo ao projecto que, 200 milhões de US dólares depois, se transformaria na maior e mais expressiva casa de espectáculos do Sul da China e que hoje discute a primazia das grandes produções e eventos na cena chinesa com o Teatro Nacional de Xangai (ou Shanghai, se preferirem) e com o Centro Nacional das Artes Performativas de Beijing. Infelizmente, não tive possibilidade assistir a nenhum espectáculo, mas em agenda está um concerto de aniversário com a Sinfónica de Boston e Charles Dutoit (6 de Maio), a que se seguirá uma grande produção da Carmen (27 a 29/06/2014).


Um desenho estupendamente arrojado, uma estrutura impressionante de granito, vidro e cimento, com uma localização soberba, rodeada de espaços verdes e com o novo centro financeiro colado, tendo do outro lado do jardim a nova Biblioteca Municipal de Cantão e o Museu da Cidade, e a sul o rio e a novíssima Torre de Cantão, fazem do edifício uma obra de envergadura e classe mundial. Como me dizia o meu amigo PCT, trata-se de uma obra que merece uma visita de dia ou de noite, a qualquer hora, ao que eu acrescentaria, em quaisquer condições atmosféricas.

Vista do outro lado do rio, ao seu nível, ou a 430 metros, do alto da Torre, a sua integração na paisagem é perfeita e revela um oásis numa metrópole que, para os leitores que não conhecem ficarem com uma ideia, tem a área da cidade de Londres e cerca de treze milhões de habitantes, de acordo com os últimos dados que me foram transmitidos.

Ali, paredes meias com o Consulado dos Estados Unidos, senti-me perfeitamente esmagado pela expressividade do traço, pela beleza do conjunto, pelo modo harmonioso da conjugação dos materiais, e por me aperceber da forma como o passado e o presente, a modernidade e a tradição, conseguem conviver num diálogo permanente e sem sobressaltos. Entre o chilrear dos pássaros e o sorriso simpático e acolhedor dos vendedores de água de coco e de ananazes, descascados na hora, vendidos inteiros ou em quartos, e que de Macau desapareceram.

Quando recordo algumas construções horripilantes das nossas cidades, com projectos de um mau gosto atroz e ofensivo da sensibilidade do mais ignorante dos trolhas, com projectos que foram assinados por engenheiros e aprovados pelas autarquias, foi-me particularmente gratificante ver que o novo-riquismo dos primeiros anos da era Deng, e depois do curto período de desenvolvimento conduzido pelo "liberal" Hu Yaobang, afastado em consequência dos acontecimentos do 4 de Junho de 1989 e que foi este mês recordado pelo seu pragmatismo, arrojo e visão, embora sem referências a Tiananmen, foi-me particularmente gratificante apreciar a nova arquitectura de Cantão e o quanto ela pode representar para a construção de um espírito de modernidade, de reconhecimento do passado e das suas tradições, e de uma visão de futuro sensata, ao mesmo tempo que vai moldando o gosto (bom) das futuras gerações, até mesmo nas coisas mais elementares. Talvez por isso é que nos prédios mais recentes já não se vejam as feias grades de outrora, os aparelhos de ar condicionado de todas as formas e feitios no exterior das fachadas dos prédios, nem a profusão de estendais e de marquises de vidros espelhados, castanhos, amarelos e, por vezes, azuis fumados, que foram voga há vinte anos e ainda hoje poluem a paisagem visual de muitas cidades portuguesas, destruindo o encanto destas e as obras de muitos arquitectos anónimos e preocupados. Faro, última cidade portuguesa onde vivi, e uma bela cidade que tem sido paulatinamente destruída pelos patos-bravos com a conivência dos partidos políticos, é disso mesmo um bom (mau) exemplo, como aliás tive oportunidade de chamar a atenção, sem sucesso, é certo, ao longo de anos, a pelo menos três presidentes de Câmara.