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Delito de Opinião

Diário do coronavírus (10)

Pedro Correia, 15.05.20

 

Os restaurantes reabrirão na próxima segunda-feira. Não todos: cerca de um terço permanecerão fechados. Os proprietários decretaram falência, não aguentaram dois meses sem receitas, recusam acumular mais prejuízos. Porque, mesmo com a reabertura agora anunciada, os tempos serão muito difíceis. As pessoas desabituaram-se de comer fora e mantêm sérios receios sobre o rumo da pandemia. Quem não arrisca, não petisca - diz o ditado. Aqui é ao contrário: muitos dispensam o petisco, continuarão sem arriscar.

Tenho-me questionado, por estes dias, como será angustiante o quotidiano daqueles (ou daquelas, usemos o léxico em voga) que não cozinham. Conheço gente que não sabe estrelar um ovo, que é incapaz de fritar um bife, que ignora como se coze arroz. Nas filas das caixas de supermercado (soa já a antigo escrever assim), habituei-me a identificar as pessoas que cozinham por aquilo que compram. Se levam carne, peixe, ovos, legumes frescos - isso constitui um sério indício de que não se atrapalham entre panelas e frigideiras. Quem só leva latas e comida pré-confeccionada, evidencia elementar falta de perícia na cozinha. É o caso de muita gente jovem. Incluindo um número crescente de mulheres, algo impensável em gerações anteriores. 

 

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Se algo me trouxe de bom este já longo período de reclusão imposta pela força das circunstâncias, foi a redescoberta do prazer de cozinhar. Que inclui a planificação de ementas e a aquisição de víveres em função delas, além da preparação dos pratos em contínuas experiências culinárias para sacudir a modorra da rotina. Experiências bem-sucedidas, devo confessar com um grão de orgulho. E devidamente recompensadas, desde a fase em que irresistíveis odores vão invadindo a cozinha até ao momento em que a travessa chega à mesa. 

 

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Como já me puxa ao apetite enquanto escrevo estas linhas, apetece-me recordar aqui algumas das iguarias que tenho confeccionado com mais frequência nestas nove semanas sem frequentar restaurantes. 

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                                                                            Arroz de chouriço                                                                                                                           caldeirada de raia.jpg                                                                          Caldeirada de raia

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               Espargos, presunto e ovos                                Frango com mostarda e vinho do Porto

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           Massa com requeijão e cogumelos                    Ovas com pimentos e  milho doce

 

Acompanhei-as, por vezes, com leituras. De escritores gastrónomos, como Rex Stout ou Vásquez Montalbán. Ou Mario Vargas Llosa, que faz reiteradas e sempre entusiásticas referências à boa mesa. Já para não falar em vultos da nossa literatura, como o incomparável Aquilino Ribeiro, que se regalava com um petisco bem confeccionado, empurrado por pinga a preceito.

Aqui ficam três citações, com a devida vénia, ao mestre que nos legou monumentos à língua portuguesa e expressivas homenagens à arte culinária:

De Quando os Lobos Uivam: «Filomena tinha-lhes um bom caldo de grão-de-bico adubado com pespé de cerdo e uma arrozada de coelho bravo. Comeram-lhe bem, beberam-lhe melhor.» (p. 95).

De Volfrâmio: «Na trempe, como muito bem calculara, frigia uma boa febra de porco com fígado do mesmo, o fígado do suíno beirão que é melhor que de vitela e se dissolve formando um molho sobre o grosso que é o regalo dos regalos.» (p. 221)

D' A Casa Grande de Romarigães: «Desde esse momentinho entregaram-se gostosamente à tasquinhação. O Lopes Calheiros trazia um lombo de vinha d'alhos, que era a primeira maravilha do Minho gastronómico. E estavam discorrendo sobre receitas culinárias - não há como o arroz de lampreia, se lhe adicionarem uma colher de manteiga de pato; uma posta de salmão com salada de alface e rodelas de cebola tenra vale um ano de Paraíso, hem, Padre Tirteu? Deixem lá, perdiz com couve murciana fermentada bate todos os petiscos inventados e por inventar.» (pp. 260-261)

 

Grande Aquilino: depois dele, e de Agustina, quase só encontro escritores enfastiados cá na terra. Matutam imenso, mas manducar não é com eles.

Ora vão por mim, caríssimos: fastio, nem vê-lo: haja apetite, haja saúde. E que o vírus se mantenha à distância. 

É tempo de acabar com o "distanciamento social"

Pedro Correia, 04.05.20

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Não deixa de ser irónico que um Executivo do PS apele todos os dias ao "distanciamento social" - expressão criada por alguma luminária imersa na bolha de São Bento, talvez por tradução apressada do "amaricano", e que logo pegou como labareda em palha seca. 

É uma imbecilidade confundir distância física - por imperativo sanitário - para travar a expansão da pandemia com o tal "distanciamento social" que se apregoa. Não tem de haver "distanciamento social" nenhum. Aliás a simples comunicação por telefone, videochamada ou até de varanda para varanda ou de uma janela para a rua anulam de imediato essa distância. E muito bem. Porque em tempos difíceis e duros como este a última coisa que se deseja é "distanciamento social".

Estranho é que o último a perceber isto seja um Governo que se proclama socialista.

O que mudou?

Paulo Sousa, 02.05.20

Quando estamos a sair de uma doença ou lesão, é normal dosearmos gradualmente o regresso ao dia-a-dia, de forma a acompanhar e estimular o nosso aumento de capacidades.

Ora, se o vírus do momento não passou a ser menos contagioso, e se ainda não estamos imunes, esta abertura gradual baseia-se em quê?

Temos apenas como certo que, se forem cumpridos alguns procedimentos de resguardo, o risco de contrair a doença não é anulado mas é reduzido significativamente. E isto é tão válido hoje como há seis semanas atrás.

Se a nossa vida confinada, com um risco de contágio próximo de zero, era apenas 50% normal, aceitamos agora um risco de 5% para ter uma vida 80% normal? Claro que estas margens de risco são apenas intuitivas e não têm qualquer base estatística ou científica, mas traduzem a forma como interpreto esta nova fase. Cada um de nós terá uma resposta diferente para a mesma questão, assim como cada um de nós atribuirá diferentes ponderações a estas variáveis.

Existem naturalmente outros factores que contarão também para a avaliação individual da situação. Um deles será o facto de se pertencer ou não a um grupo de risco, e o outro resulta da respectiva situação profissional e/ou financeira.

Quem tiver estabilidade financeira que lhe permita manter o isolamento poderá fazê-lo, mas como nem todos o podem ou querem fazer, é normal que o país passe a funcionar a diferentes velocidades.

O actual estado de espírito da sociedade já não é igual ao que levou ao auto-confinamento generalizado, que foi até anterior à declaração do estado de emergência. A incerteza e o medo continuam presentes mas enquanto cenário de pandemia global… concluímos que os números da letalidade não são assim tão graves, que justifiquem o impacto económico decorrente de uma paragem demasiado longa.

Assim, e apesar de objectivamente não estarmos imunes nem o vírus ser menos perigoso, decidiu-se iniciar o regresso faseado à nova normalidade, não pela alteração da situação epidemiológica mas simplesmente pela digestão que já fizemos da realidade.

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Não foi assim há tanto tempo que assistíamos ao debate sobre o uso da nikab nos espaços públicos e sobre a ameaça cultural e até de segurança que este consubstanciava. Agora, o uso de máscara é obrigatório nos transportes públicos.

Temos de ter capacidade de rir de nós próprios.

Relatório minoritário

Maria Dulce Fernandes, 02.05.20

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Quando surgiram as primeiras notícias do vírus que acossava a China, ninguém ficou muito preocupado do lado de “cá". Eram coisas de “lá”, chinesices obscenas de uma cultura macabramente omnívora e incompreensível para os ocidentais luminares, amantes de uma bela caracolada, reclinados à sombra fresca de uma esplanada à beira mar no calmo lusco-fusco de uma vagarosa tarde estival. Que não haja qualquer dúvida quanto à caracolada, pois que neste momento não sei se não daria um bracinho – pode ser o esquerdo, que sou destra e a esquerda nunca me fez grande falta – para emular o que anteriormente descrevi.
E a vida continuou igual. Veio o Natal com tudo a que tem direito em luz e cor, toda a preparação, toda a azáfama, toda a gula, todo o peso a mais, que se prolongou até ao Ano Novo e para lá dos Reis, altura em que as notícias do vírus chinês já começavam a ganhar maior projecção mediática, por surgir ventilado à laia de boato, que já havia mortes, mas mesmo assim, muito longe de “cá".
Completamente tranquilizada pela alta autoridade para estes assuntos de que “não há grande probabilidade de um vírus destes chegar a Portugal" e apesar de haver já vítimas do vírus, mortes verificadas em território chinês, três dias antes da constatação dos primeiros dois casos da epidemia em França, confirmei as minhas férias de Abril… um destino que adiara sobejamente e que foi ponto assente para 2020, Croácia, Montenegro e Bósnia-Herzgovina.

No torvelinho de notícias que ora se complementavam, ora se contradiziam, a rotina do trabalho em pouco se alterou, falava-se muito de tudo e concretamente de nada, a OMS considerou chamar à nova infecção Covid-19. Foram registadas mortes pelo novo vírus fora da China. Foram registadas as primeiras mortes na Europa. Em Itália a progressão do contágio começa agigantar-se. E é entretanto chegado o Carnaval, com a habitual e ruidosa invasão espanhola. Sem medos, portanto.
Algures no tempo a partir desta data, as situações sucederam-se em catadupa. A apreensão deu lugar às piadas virais. Ninguém se sentia seguro. Nem com luvas, ou máscaras, ou rios de desinfectantes espalhados por cada ombreira, cada recanto. Todos têm família. Todos têm medo.
Reduz-se a capacidade produtiva, criam-se barreiras físicas com distâncias de segurança controladas - que ninguém quer cumprir, mas enfim - reduz-se o horário de funcionamento, cria-se espaço de isolamento que preenche os requisitos do Plano de Contingência Nacional.
Em menos de um mês estávamos em casa, a cumprir quarentena. Duzentas pessoas. Em quarenta e três anos de trabalho, foi a primeira vez que a porta fechou. Não quero nem consigo imaginar o silêncio total, o tom pardacento e espectral do vazio. Não volto enquanto não for para voltar.
A empresa assumiu o primeiro mês. Depois veio o lay-off.
Estou há 46 dias em casa. Saí uma vez por semana. Pertencemos aos famigerados grupos de risco, devido a condições preexistentes.
A família chegada, filhas e netos, está a cumprir o seu dever cívico, longe de nós, para nossa protecção. Não lhes toco há 50 dias. Sinto a falta do carinho, do toque e do cheiro que não se aplaca com telefonemas ou videochamadas.
Durante a primeira semana, li. Cozinhei. Vi séries de TV. Devorei todos os noticiários. Fartei-me.
A neta tinha saudades. Começámos a “fazer filmes”. Eles riem, nós rimos, todos se divertem e muitos gostam. O tempo passa sem ser a encher chouriços… um projecto por dia. Uma bufonaria salutar, para passar o tempo que se enfada e nos amofina.
Penso muito na minha mãe e no medo que ela ia sentir de ter que viver em confinamento. Um dos poucos dias que não saiu, foi no dia em que se finou, sozinha, sentada a descansar. Fez dois anos. Deus foi bom.
Mais duas semanas e chega o “regresso à normalidade". Qual normalidade? A do medo? Teremos deixado de ser grupo de risco assim de repente? Nós, os que cumprimos religiosamente o isolamento, não estaremos tão condenados como os que andaram por aí a cirandar? Da irresponsabilidade, gastaria mares de palavras.
Se quero sair? Quero. Muito. Se tenho medo de morrer? Tenho. Ninguém está preparado. Digam lá o que disserem.
Como dos fracos não reza a história e o país precisa de motor de arranque, vamos lá, de volta para o desaconchego que é o nosso dever.
Penso muito nas dezenas e dezenas de milhares de pessoas que foram para o hospital, testaram positivo e ficaram internadas, elas mais o medo que seguramente não as abandonou por um segundo que fosse.

Diário do coronavírus (9)

Pedro Correia, 27.04.20

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Quando tantos de nós fomos condenados a esta espécie de prisão domiciliária, ainda antes da imposição do inédito estado de emergência, percebi que muita gente amiga se congratulava - dentro da lógica de que devemos ver sempre o que possa haver de bom naquilo que é mau. Gente que se sentia animada por «ter finalmente oportunidade de passar mais tempo em casa», por poder «fazer coisas para que costuma faltar a disponibilidade e a paciência», por «conseguir enfim pôr as leituras em dia».

Afinal, decorridas sete semanas, vou verificando que muitas destas metas ficaram pelo caminho. Porque as pessoas não conseguem desligar-se da necessidade de estarem sempre "conectadas com o mundo", seja lá isso o que for. Porque, mesmo fazendo dieta alimentar, são incapazes de fazer uma dieta de notícias - quase sempre as mesmas, e agora sobre um tema só, repetido até à exaustão dia após dia e trazendo a palavra "morte" sempre a reboque para suscitar o pânico, indutor de gordas audiências. Porque, em matéria de leituras, optam quase em exclusivo por navegar horas sem fim nas chamadas "redes sociais", lendo sobretudo o lixo, reencaminhado pelo cunhado da prima do vizinho da conhecida. 

 

Contra a corrente, imponho a mim próprio uma rigorosa selecção de consumo noticioso. Só escuto quem comprovadamente merece ser escutado, dispenso os sermões dos novos tele-evangelistas agora em voga, mudo de canal assim que me soa a propaganda seja do que for, reservo um tempo máximo para o fluxo informativo. Que, pelo que me vou apercebendo, equivale ao tempo mínimo para muitos outros.

Passo ao lado das opiniões arrebanhadas das "redes sociais", não consumo nem partilho os incontáveis memes que me chegam das mais diversas proveniências, não gasto um minuto com "cenários" que reproduzem outros "cenários", quase sempre de teor apocalíptico, em obediência à mesma lógica de alinhamento dos telediários cá do burgo. Há três meses, ninguém era capaz de prever o que tem vindo a suceder em toda a parte e a directora-geral da Saúde até comunicava ao País que «não há grande probabilidade de um vírus destes chegar a Portugal». Para quê, portanto, dar dois tostões pelo papo furado de tudólogos em risco de desemprego?

 

E, sim, vou conseguindo pôr leituras em dia. Não a "leitura" de vídeos com gatinhos ou das novivelhas anedotas a circular na Net. Nestas sete semanas li doze livros completos - não incluindo, portanto, trechos ou capítulos seleccionados de outros. Sete de autores nacionais, prosseguindo a maratona iniciada há quase um ano. E romances ou novelas que há muito constavam da minha lista de prioridades - títulos como Longe da Multidão, de Thomas Hardy, A Tia Julia e o Escrevedor, de Vargas Llosa, ou O Físico Prodigioso, de Jorge de Sena.

Verifico agora que cinco destes doze foram releituras. Confirmando uma tendência que tem vindo a acentuar-se: gosto cada vez mais de revisitar livros que noutras épocas me tocaram por algum motivo que pode ou não repetir-se. E elaborando a minha lista muito pessoal de clássicos, sem necessidade de que outros me debitem cânones. Com a certeza antecipada - como garantia Italo Calvino - de que «um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer».

Assim consigo, em boa parte das horas destes meus dias de recluso, colocar o Covid-19 numa prateleira de difícil acesso. Parafraseando o outro, há vida para além do vírus.

Quando a bonança vier

Paulo Sousa, 03.04.20

Não duvido que depois de ultrapassarmos esta crise algumas coisas passarão a ser muito diferentes. O teletrabalho, a que agora se recorreu como reacção às limitações de circulação, abrirá portas a que pelo menos em alguns dias da semana deixe de ser necessário ir fisicamente ao local de trabalho. Este efeito não será igual em todos os sectores, mas globalmente as poupanças energéticas e de qualidade de vida serão inquestionáveis. A Covid-19 pode mesmo vir ser a única solução para a IC19.

O ensino nunca mais será igual. Quando o Sr. Mário Nogueira reparar que uma turma de 25 alunos on-line não terá de obedecer ao critério do local de residência, irá ficar irritado, pois esse é o seu argumento para empurrar alguns alunos para escolas desinteressantes e para professores desmotivados.

E se os professores pudessem ser avaliados pelos alunos e isso pudesse ser relacionado com os resultados obtidos nessa turma... e toda essa informação pudesse estar disponível numa plataforma independente do ministério... e se tudo isso pudesse ser combinado com ensino on-line...?

Se o terceiro período arrancar com recurso a este tipo de tecnologia e funcionar razoavelmente, poderá ser como abrir a caixa de Pandora para a tribo da FENPROF.

A vida escolar necessitará sempre da presença física dos alunos e dos professores, mas tal como no que acima disse, pode ser reduzida a menos dias que os actuais, o que até coincidiria com um tema que é tão querido às novas gerações, o School Strike for Climate.

Claramente o novo normal será muito diferente do que era normal.