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Delito de Opinião

Vai ser o último a entender. Talvez.

Paulo Sousa, 20.06.25

Em 1994 a Rússia assinou o Memorando de Budapeste. Em troca da entrega do terceiro maior arsenal nuclear do mundo, a Ucrânia recebeu garantias de segurança.

Nesse mesmo ano, a Geórgia estabeleceu com Moscovo o Tratado de Amizade, Boa Vizinhança e Cooperação. Com a Arménia foi 1997. O documento mereceu o nome de Tratado de Amizade, Cooperação e Assistência Mútua. Com a Síria dos Assad os acordos eram vários, alguns já do tempo da URSS. Todos eles asseguravam cooperação militar e política.

Já depois de ter invadido a Geórgia em 2008, onde ainda controla as regiões da Abcásia e da Ossétia do Sul, Putin formalizou, em 2015 e 2017, a presença da Força Aérea e da Marinha Russa na Síria com carácter de longo prazo.

Depois disso invadiu a Ucrânia e deixou a Arménia à sua sorte quando o Azerbeijão atacou o enclave de Nagorno-Karabakh.

A lista destes acordos de "cooperação" alarga-se a África. República Centro-africana, Sudão, Líbia, Mali e Burkina Faso. O Kremlin apoia uma facção, explora recursos locais e se o jogo virar, põe-se ao fresco.

Quando o regime sírio caiu, o melhor que Putin teve para oferecer ao seu ditador foi uma autorização de aterragem. Depois disso o carrasco de Damasco nunca mais apareceu. Se Assad ainda não foi defenestrado, deve fazer tudo para nunca ir além do rés do chão.

Mais recentemente, e já este ano no dia 17 de Janeiro, foi a vez do Irão. A tinta do tratado de parceria estratégica assinado entre a Rússia e o Irão (com uma validade de vinte anos) ainda mal deve ter secado. Esperando receber apoio para o seu programa nuclear, o Irão partilhou a tecnologia dos seus drones Shaed e até ajudou na construção de uma fábrica na Rússia. Quando os generais iranianos começaram a ser eliminados, Putin fez o que costuma. Nada. O Irão já não tem nada lhe para dar, apenas a incerteza que faz subir os preços do petróleo.

O currículo do actual Czar tem muitas mais traições que as constam neste pequeno resumo. A sua “confiabilidade” é internacionalmente reconhecida. Quando se assina qualquer coisa com ele, é quase uma garantia do exacto contrário. A minha maior surpresa continua a ser a convicção da excepcionalidade de Donald Trump. Se algum dia lá ele chegar, será o último dos humanos a entender que Putin só respeita a força.

Memória da infame aliança comuno-nazi

Pedro Correia, 10.05.25

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Lula com Putin em Moscovo: vénia do ex-opositor da ditadura brasileira ao tirano russo

 

Lula da Silva, vergonhosamente, foi um dos 29 dirigentes internacionais que ontem compareceram ao beija-mão a Putin na Praça Vermelha, assinalando o chamado Dia da Vitória. Ocasião aproveitada pelo ditador russo, com descarado despudor, para comparar a guerra defensiva que a URSS travou contra a Alemanha nazi à actual "operação militar especial" iniciada em Fevereiro de 2022 pelo Kremlin contra a vizinha Ucrânia, em flagrante violação do direito internacional.

Ver Lula e Putin no mesmo palco é chocante, embora não surpreendente. O antigo opositor à ditadura brasileira presta agora vénia a um dos maiores déspotas do planeta, que oprime e escraviza não apenas o povo russo: quer fazer o mesmo às nações vizinhas.

 

A Praça Vermelha costuma atrair péssima gente. A 1 de Maio de 1941, noutro desfile, apareceram ali outros convidados: oficiais de alta patente da Alemanha hitleriana, então aliada da União Soviética de Estaline no esmagamento de diversos Estados europeus. Da Polónia à França. Passando por Checoslováquia, Dinamarca, Noruega, Bélgica, Luxemburgo, Estónia, Letónia, Lituânia, Finlândia.

Berlim e Moscovo haviam-se aliado em 23 de Agosto de 1939, o que esteve na origem imediata da II Guerra Mundial. Estreita cumplicidade só quebrada a 22 de Junho de 1941, quando Hitler deu ordem à sua tropa para invadir a URSS.

Cinquenta e dois dias antes, nesse 1.º de Maio moscovita, ainda figuravam como sorridentes comparsas no estrangulamento de outros povos. Vale a pena ver o filme desse dia. Para que a infame aliança comuno-nazi não se dissipe no nevoeiro da memória colectiva.

 

Indignidade moral

Pedro Correia, 15.04.25

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Manhã de Domingo de Ramos: Vladimir Putin ordena aos seus esbirros para bombardearem Sumy, na Ucrânia. Com total desprezo pela vida humana. 

Dois mísseis foram lançados para o centro da cidade enquanto centenas de pessoas iam à missa. Morreram 34 civis e 119 ficaram feridos, alguns em estado muito grave. Sete dos mortos eram menores.

Ao contrário do que apregoavam os propagandistas da Casa Branca, nem a guerra na Ucrânia terminou em 24 horas nem há qualquer sinal de que tenha fim à vista. Continuam a ser ali cometidas as maiores atrocidades - pelo quarto ano consecutivo. 

Confrontado com este mais recente crime de guerra, Donald Trump voltou a poupar Putin: nem um esboço de crítica ao carrasco da Ucrânia. Começou por uma declaração tipo Miss Mundo, geral e abstracta, dizendo que «as guerras são horríveis». Depois limitou-se a chamar «erro» à nova acção criminosa do psicopata russo. E desviou logo a rota, lançando culpas sobre o seu antecessor na Casa Branca. Parece convencido de que a campanha presidencial norte-americana ainda não terminou, daí nunca abandonar a rasteira linguagem de comício. Dando a entender que o responsável dos massacres na Ucrânia é Joe Biden, não Putin.

Em contraste absoluto com a reacção imediata de Keith Kellogg, para quem o bárbaro ataque a Suny «ultrapassa qualquer linha de decência». Palavras dignas que o colocarão ainda mais à margem do processo negocial: Donald Trump, que detesta Zelenski e admira Putin, parece já não contar com o general para contactos com Kiev.

Em Washington, apesar de tudo, acende-se uma ténue luz de esperança. Congressistas republicanos começam a pressionar Trump para se mostrar sensível ao sofrimento ucraniano. É muito provável que este esforço esteja condenado ao insucesso. Mas se não falarem agora arriscam-se a ficar tão contaminados pela indignidade moral como ele.

Reflexão do dia

Pedro Correia, 15.03.25

«Aqueles que pedem a paz a todo o custo não têm imaginação para prever o mundo novo que aí vem, que de novo não tem nada e é, na verdade, o mundo antigo dos maus velhos tempos. Sem direito, sem instrumentos de coacção caucionados pela ONU, sem NATO, sem Estados Unidos, a ordem liberal internacional, como lhe chamam os anglo-saxónicos, para todos os efeitos, acabou.

O colapso da Ucrânia não será o último colapso europeu. Tudo dependerá exclusivamente do apetite e do bom senso de Putin. Boa sorte com isso.»

Sérgio Sousa Pinto, no Expresso

"É para um amigo..."

jpt, 09.03.25

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Como preâmbulo: no "Observador" Paulo Dentinho deixou um bom artigo, "O tempo dos autocratas", breve resenha do que se passa. Deixo excertos: "Aos poucos, estamos a assistir à ascensão de regimes iliberais, onde a fachada democrática se mantém, mas esvaziada dos seus princípios essenciais. (...) Orbán reivindica Budapeste como a capital do iliberalismo e a sua “democracia iliberal” é hoje um modelo exportável. Tem seguidores em vários outros países europeus. Mas não só.

Com o seu modelo, o Estado e as suas instituições são capturados a pouco a pouco. A separação de poderes desvanece-se, torna-se aceitável: o parlamento é quase irrelevante, a justiça dobra-se. A imprensa é vilipendiada até só sobrarem os jornalistas amestrados. (...)

Os imigrantes são, normalmente, bodes expiatórios, as organizações internacionais e o sistema global de alianças é desprezado. As elites empresariais alinham-se. E no centro de tudo, o culto do líder.

Com maior ou menor dose, Modi e Erdogan fazem também parte da lista. Já em Moscovo, Vladimir Putin tem um sistema ainda mais aperfeiçoado.

Na Rússia há eleições, mas só para validar resultados já decididos. Putin não governa, domina o exército, a justiça, os oligarcas, os serviços secretos, a imprensa, a justiça. Tudo. O modelo é claro: não se cala a oposição, alguma é mesmo tolerada por ser cúmplice. Mas eliminam-se os opositores não desejados. Simples.

E agora, os Estados Unidos. Nesta segunda presidência de Donald Trump há já alguns sinais reveladores. Internos e externos. Ambos exercidos com dose significativa de brutalidade.

Internamente, há uma obsessão em controlar a justiça e a comunicação social. Externamente, o alinhamento com Vladimir Putin é uma simples constatação. O presidente americano já não fala da Rússia como uma ameaça, mas como um parceiro. Desfez as alianças tradicionais. Não negoceia. Impõe. Distribui taxas alfandegárias como uma espécie de punição a uns, e ameaça com elas vários outros antigos aliados da América.

A ascensão dos autocratas não acontece por acaso. Deriva da crise do modelo liberal-democrático, da ausência de resposta ao crescimento das desigualdades, do ressentimento com o sistema político, da percepção real ou empolada da corrupção das elites.

Os autocratas detetam as falhas, oferecem respostas simplistas, frequentemente demagógicas e populistas: um inimigo, uma promessa de grandeza e uma narrativa em torno de um líder capaz de restaurar a ordem.(...)".

Neste contexto é interessante ver as reacções do pequeno bando de fascistas portugueses entusiasmados com o ressurgimento de Trump. Há neles duas dimensões: por um lado afirmam-se nacionalistas - e muito do  que  escrevem deriva, explicita ou implicitamente, da sua sanha contra a União Europeia que, dizem, põe em causa a "Europa das Nações", a estas dando primazia, essencial, ôntica, até sacra. E é relevante que nesse eixo de entendimento saúdam, até efusivos, as políticas económicas de Trump porque serão boas para os EUA. Glosando a velha frase - que é verídica e não crítica - assumem que "o que é bom para a General Motors é bom para os EUA". Mas, dado o seu reiterado "nacionalismo", é evidente que dela retiram um silogismo: "o que é bom para a General Motors é bom para os EUA e como tal é bom para Portugal". Ainda não vi escrito o raciocínio económico - que  não o político, social, cultural ou religioso - que sustenta esta conclusão. E este é exigível, exactamente por os locutores se reclamarem - se fundamentarem - no tal seu arreigado nacionalismo. Quero fazer-me entender: não reclamo uma justificação de teor político, tipo "nós (governos portugueses, "europa") temos más/custosas políticas". É mesmo económico - assente em visões de curto, médio ou longo prazo. É que se não houver essa abordagem, todo este apreço "nacionalista" pelo anunciado rumo económico americano e seus hipotéticos efeitos em Portugal assenta numa aversão aos interesses económicos portugueses. Uma traição, intelectual que seja. Ou, dado que o termo "traição" caiu em desuso, tornado até anacrónico, é uma convocatória para a resposta: "estes tipos que vão para a americana que os pariu".

Há uma outra via que sedimenta os apreciadores deste influxo autocrático. Está esparramada noutro texto do pluralista "Observador", do nosso José Meireles Graça. Onde opta pelo registo "É para um amigo..." - e sou particularmente sensível a esse rumo pois também tenho alguns amigos, um pequeno  ramalhete, que assim seguem. Nesse texto identifica-se o apreço por Trump e quejandos como suportado numa "guerra cultural", contra o politicamente correcto (dito agora wokismo). Esse sobre o qual o democrata Pedro Correia escreveu "Tudo é Tabu", interessantíssimo roteiro sobre as aleivosias do extremismo "identitarista". Pois para aquele "amigo" - e para a fileira destes "amigos" - é tamanha a angústia diante dos discursos das minorias dos que têm ansiedades sobre as respectivas genitálias, dos esparvoados académicos que querem "denunciar" a história, ou dos radicais racialistas, ditos "identitaristas", que preferem apoiar gente como Putin. Pouco importa que este seja um ditador assassino, cleptocrata e imperialista. Pois é defensável dado ser presumível adversário do conteúdo do programa da disciplina do ensino secundário "Educação para a Cidadania" - que estes seus mais ou menos tímidos apoiantes, já agora, nem sequer conhecerão, apenas lhes disseram que é um espaço onde ensinam os rapazolas a enrabarem-se uns aos outros.  

E nisto tudo, para além da abjecção de se andar a botar elogios a um ditador como Putin, invectivam-se os críticos de Trump - nós estúpidos (quiçá até um pouco wokistas) porque ficamos presos a análise do seu perfil moral e intelectual e não aos presumíveis ganhos das suas  políticas (os tais interesses americanos imaginados como se portugueses fossem...). Pois não é um questionamento político aquele que fazemos, será apenas ligeireza "pessoalista". Neste peculiar eixo de entendimento do que é "política" é saudável, pois anti-woke, que o presidente do mais relevante país grunha "ninguém ouviu falar do Lesotho" e à sua volta todos ululem gargalhadas. E que se louve por ter cortado apoios à pesquisa sobre "ratos transgénicos" , e mais gargalhem. Pois tudo isso, os lesothos e os ratinhos de laboratório e tantas outras coisas, é entendido como "wokismo" - o que é ainda sublinhável por provir de gente que não se coíbe de contestar a "investigação científica" "financiada". E que tem a ufana incultura de o ... escrever. 

De facto, isto é puro grunhismo. Não o do Trump. Não o do (refinadíssimo) Putin. Mas o dos "amigos...". E é um grunhismo fascista. Desavergonhado. 

Da distinção

Cristina Torrão, 08.03.25

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Para essas questões filosóficas, tenho o Lavrov. Ó Lavrov!

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Putin: Explica aí ao pessoal como se distingue entre homens e mulheres.

Lavrov: Então, os homens somos nós, certo?

Putin: Sim, já me tinha apercebido.

Lavrov: E as mulheres são aqueles outros seres, aos quais não damos tempo de antena. Que nós não somos como os estúpidos dos europeus. Deixam-se ir na cantiga delas. Hoje até festejam um tal Dia da Mulher. Hahahaha!

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Jazus! Que me matas, filho.

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Boa, boa! Eu também já aprendi convosco. Colocar mulheres em posições de alto nível é uma armadilha woke na qual não torno a cair.

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Ainda não aprendeste a falar, ó Elon... Quê? Ai isto não era para dizer? Ups.

24 de Fevereiro

Pedro Correia, 24.02.25

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Estamos a 24 de Fevereiro: é dia de honrar a memória dos mártires ucranianos. Centenas de milhares de pessoas, incluindo numerosos civis, assassinadas às ordens de Vladimir Putin. Os sinos dobram por elas.

É também o dia de evocar os milhares de cidadãos russos que o tirano do Kremlin enviou para a fogueira homicida da guerra. Cerca de um milhão de vítimas - entre mortos, feridos e desaparecidos - na tentativa frustrada de "conquistar" e anexar a Ucrânia, iniciada faz hoje três anos.

Desde então, os sipaios de Moscovo conseguiram avançar apenas cerca de 40 km em terreno devastado e despovoado, sem valor estratégico. Sem capturarem uma só capital de província. Sem exibirem superioridade terrestre e marítima. Forçados a recuar após terem estado a escassa distância de Kiev na primeira fase do conflito. Humilhados quando o mundo soube que as forças ucranianas, num fulminante contra-ataque, penetraram em solo russo, apoderando-se de 560 km² na região de Kursk. Foi há seis meses, em Agosto passado, e continuam lá. 

Trágica ironia da História: ninguém até hoje, neste século, vitimou tantos russos como o próprio Putin.

O rolo compressor de Putin

Pedro Correia, 21.02.25

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Oiço falar muito em "paz" por estes dias. Não há palavra tão pervertida como esta: já Orwell havia lançado o alerta nos anos 40.

Vladimir Putin não quer acabar com a guerra na Ucrânia. Quer a Ucrânia, ponto.

O seu vassalo Dmitri Medvedev, sem rodeios, já declarou que a Ucrânia, como Estado, deixou de existir em 1925 e não faz sentido manter-se como entidade soberana. Digam o que disserem a Carta da ONU, a Acta Final de Helsinquia aprovada em 1975 e os tratados subscritos pela própria Rússia.

 

Putin não agrediu a Ucrânia por uma questão de território. A Rússia ocupa um oitavo da área terrestre do planeta. Em 80% desse espaço não vive ninguém.

A questão é geopolítica. Putin ambiciona reconstruir o império russo, crente de que só isso permitirá restaurar a influência de Moscovo à escala global.

É conhecida a frase dele, proferida em 2005, sobre o fim da União Soviética, que a seu ver foi «a maior catástrofe do século XX».

Esta frase é todo um programa. Só não vê quem não quer.

 

O ditador moscovita não se deterá neste desígnio, que ameaça engolir a actual Europa Central e de Leste.

Já o fez na Bielorrússia, em parte da Geórgia e em parte da Ucrânia. Tentou o mesmo na Moldávia, tendo sido travado porque os ucranianos lhe fecharam o caminho.

A ideia quase angelical que desta vez Putin irá satisfazer-se se lhe derem "face" é a negação das lições da História.

Sabemos o que aconteceu depois de Chamberlain e Daladier terem dobrado a cerviz a Hitler em Setembro de 1938, dando-lhe também face: a propalada "paz" serviu apenas de via-rápida para acelerar a guerra.

 

Sem dissuasão militar, Putin intensificará o rolo compressor. Tarde ou cedo, tal como Hitler, inventará outro pretexto para novas acções de "conquista".

Com esta agravante: uma Ucrânia absorvida pela Rússia, com o seu território, os seus meios logísticos, as suas vias de comunicação, as suas riquezas naturais e parte da população transformada em carne para canhão do Kremlin tornaria ainda mais perigoso o ditador. E mais ameaçador cada pacote de novas exigências de Moscovo.

Convém não esquecer: o tirano do Kremlin protagoniza desde 2022 o maior acto de guerra registado no nosso continente desde a II Guerra Mundial. Impedi-lo de cometer novas carnificinas não é opção facultativa: é um imperativo de sobrevivência para a Europa livre.

De elefantes e rinocerontes

Cristina Torrão, 20.02.25

Muita gente diz Trump ser como um elefante numa loja de porcelanas. Ou ter a elegância de um rinoceronte.

Vão-me desculpar, mas não posso discordar mais. Um elefante, ou um rinoceronte, dão realmente cabo de uma loja de porcelanas. Mas inadvertidamente.

Trump e seus compinchas entram na loja munidos de tacos de beisebol e escaqueiram tudo.

Porque não escolhem a loja de Putin?

Afinal quem é que «abana a cauda»?

Pedro Correia, 20.02.25

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Vladimir Putin dizia recentemente que os europeus «vão acabar por abanar a cauda a Trump». Elegantíssima expressão. Não admira, vinda de onde vem.

Afinal, por estes dias, parece ser Donald Trump quem «abana a cauda» ao ditador russo, de tal modo que nem hesita em adoptar quase ponto por ponto o argumentário do Kremlin para denegrir Volodímir Zelenski. 

Tanto em declarações feitas anteontem como num alucinado pedaço de prosa ontem divulgado na sua rede digital, o novo-velho inquilino da Casa Branca dispara um chorrilho de insultos ao Chefe do Estado ucraniano que em nada diferem das habituais invectivas de Moscovo - incluindo "comediante sem sucesso" e "ditador", entre outras expressões próprias de um inimigo, não de um aliado.

Garante que ele só tem hoje «4% de aprovação» entre os ucranianos. Chega a culpá-lo de iniciar a guerra, numa inversão total dos factos. Como se o bombardeamento de Pearl Harbor em Dezembro de 1941 tivesse sido feito pela aviação norte-americana em vez do Japão. E acusa-o de suspender eleições na Ucrânia, que se encontra desde Fevereiro de 2022 sob lei marcial em resposta à agressão russa, o que inviabiliza qualquer processo eleitoral - como aliás aconteceu no Reino Unido, sob a liderança de Winston Churchill, entre 1940 e 1945. Além de que a própria Constituição da Ucrânia interdita a realização de eleições com o país em estado de guerra, o que não causa qualquer surpresa.

Sobre a manifesta falta de democracia na Rússia, nem uma palavra. Sobre o facto de Putin - ele sim - ser um tirano, nem um sussurro.

 

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Esticou-se de tal maneira que forçou Boris Johnson a sair em defesa de Zelenski, também numa plataforma digital.

O antigo primeiro-ministro conservador britânico, sem papas na língua, desmonta as falácias de Trump, repondo a verdade. Foi obviamente Moscovo a iniciar a guerra, é impossível um país sob invasão estrangeira organizar eleições presidenciais, a quota de popularidade de Zelenski equivale à de Trump.

As falsas alegações do norte-americano forçaram o seu antigo vice-presidente, Mike Pence, a sair igualmente em socorro da verdade: «Senhor Presidente, a Ucrânia não iniciou esta guerra. A Rússia lançou uma invasão brutal e não provocada, ceifando centenas de milhares de vidas. O Caminho para a Paz deve ser construído sobre a Verdade.»

Na mesma linha se pronunciou John Bolton, que foi conselheiro nacional de segurança no primeiro mandato de Trump: «Caracterizar assim Zelenski e a Ucrânia é uma das observações mais vergonhosas alguma vez feitas por um Presidente dos EUA. O nosso apoio à Ucrânia nunca foi uma questão de caridade, pois a maneira como vivemos em casa depende da nossa força no exterior.»

 

Esforços louváveis, mas inglórios. Não é segredo que o antecessor/sucessor de Joe Biden é imune ao rigor factual. Só lhe interessa a matéria ficcional que vai compondo como narrativa para mobilizar os mais fanáticos - incluindo os que moram deste lado do Atlântico.

Lá no seu búnquer de Moscovo, Putin tem amplos motivos para sorrir. Já conseguiu que o putativo "homem mais poderoso do mundo" se portasse perante ele como um potro amestrado. E ainda só decorreu um mês: esperem pelo que aí vem.

 

ADENDA 1: Por imposição dos EUA, a expressão "agressão russa" não deve constar do comunicado conjunto do G7 que assinala o terceiro aniversário da invasão da Ucrânia.

ADENDA 2: Washington recusa apoiar resolução da ONU de condenação da guerra desencadeada por Moscovo em 2022 no país vizinho.

Sobre o expansionismo russo e a defesa europeia: a importância de saber pensar

Recordando uma excelente reflexão de José Cutileiro em Julho de 2007

Pedro Correia, 19.02.25

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Há artigos que, relidos à distância, nos confirmam a enorme capacidade dos seus autores de verem para além da espuma dos dias, antecipando tendências e captando sabiamente os sinais dos tempos.

É o caso deste que trago hoje, publicado na edição de 21 de Julho de 2007 do Expresso pelo embaixador José Cutileiro. Sobre a atribulada relação entre a União Europeia e a Rússia pós-soviética que tem o seu símbolo máximo em Vladimir Putin.

Exceptuando mudanças mínimas, poderia ter sido escrito hoje.

Acabo de recuperá-lo dos meus arquivos: parece-me tão luminoso e revelador que não resisto a partilhá-lo convosco. Sublinhando que esta excelente reflexão surgiu antes da anexação de partes da Geórgia por ordem do Kremlin e muito antes do assalto russo à Crimeia e ao Donbass - e cerca de década e meia antes da trágica invasão em larga escala do território ucraniano pelos blindados de Moscovo.

«Uma vela a São Putin». Transcrevo-o nos parágrafos seguintes com merecida vénia à memória de José Cutileiro (1934-2020). Quando ele partiu, deixou-nos mais pobres. Bem precisávamos da sua lucidez e da sua esclarecida opinião agora.

 

Nenhum país da União Europeia é uma grande potência. Quando os europeus eram fortes não se juntavam uns aos outros, guerreavam-se uns aos outros - e metiam-se a conquistar impérios e dominar o mundo. Hoje já não há impérios e é a União que faz a força. Força de fracos que têm se se juntar? Talvez, mas é a que há - e é preciso reforçá-la, pese aos patriotas à antiga.

Vem isto a propósito da Rússia de Putin. Passado o primeiro bafo de liberdade, o fim da União Soviética foi sentido em Moscovo como a derrocada de um império. Exacerbou a insegurança histórica do nacionalismo russo, que imagina sempre à sua volta perigos e ofensas que não existem e só sabe defender-se atacando. A nostalgia de Estaline foi crescendo: com mudança de letra - feita pelo autor dos versos originais - Putin mandou repor o hino nacional do tempo da ditadura. Entretanto, em meia dúzia de anos, o preço do petróleo subiu de $17 para $75 o barril. A Rússia vem logo atrás da Arábia Saudita na quantidade de petróleo extraído e tem no seu subsolo as maiores reservas de gás do mundo. Empoleirados nesta riqueza, Putin e a sua gente afirmam-se por maus modos contra um Ocidente que, acham eles, lhes quer mal e os humilhou ou ignorou nos anos de Gorbachev e Ieltsin.

Moscovo provoca, ameaça e tenta dividir. Ele é a carne polaca, o monumento aos soldados russos da Estónia, o projecto de defesa antimíssil que associa Estados Unidos, Polónia e República Checa, a independência do Kosovo, a recusa de extraditar o suspeito de assassinato por terrorismo nuclear de um dissidente em Londres. Ele é o esforço permanente de desunir os ocidentais em negócios de energia - importante porque a Europa vai buscar à Rússia um quarto do gás de que precisa. Ele é o orçamento militar, com o nuclear à frente, que cresceu seis vezes desde 2001. A mortalidade e a morbilidade russas, piores do que as de qualquer outro país não-africano, aumentam o alarme por denunciarem a fragilidade subjacente ao novo estado policial que se instala. 

O lado bom de tudo isto é que, perante a Rússia de Putin, a solidariedade europeia, ainda titubeante, começou a afirmar-se. O incómodo político-militar que se perfila a Leste junta-se ao fundamentalismo islâmico e à concorrência económica dos novos mundos para assustar saudavelmente os europeus.

Paul-Henri Spaak, combatente das lutas heróicas contra o nazismo e o comunismo, escreveu em 1969: «Nos últimos vinte anos vários homens de Estado europeus foram chamados pais da Europa ou pais da Aliança Atlântica. Nenhum deles merece o título. Este pertence a Estaline. Sem Estaline, sem a sua política agressiva, sem a ameaça que fez pairar sobre o mundo livre, a Aliança Atlântica nunca teria nascido e o movimento por uma Europa unida, englobando a Alemanha, jamais teria conhecido o seu espantoso sucesso.»

A Rússia não é evidentemente a União Soviética mas tal, como ela, poderá levar ao reforço da construção europeia.

O ditador Putin e o amigo americano

Pedro Correia, 18.02.25

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A administração Trump prepara-se para proporcionar hoje, em Riade, um enorme triunfo diplomático à Rússia de Vladimir Putin, que há três anos lançou sobre a Ucrânia um ataque sem precedentes, desencadeando o mais sangrento conflito no continente europeu desde a II Guerra Mundial - com o propósito declarado de riscar o país vizinho do mapa dos Estados soberanos.

Convém lembrar que em Fevereiro de 2022 os blindados de Moscovo chegaram a 15 quilómetros de Kiev. Dissolver as instituições ucranianas, instalar no palácio presidencial um fantoche semelhante ao bielorrusso Lukachenko e eliminar o Presidente Volodimir Zelenski eram os objectivos do ditador russo.

Sem ter feito a menor concessão, graças apenas à benevolência de Donald Trump, Putin vê o novo-velho inquilino da Casa Branca reconhecer-lhe estatuto de líder credível e digno de confiança, indiferente ao facto de haver contra ele, desde Março de 2023, um mandado de captura do Tribunal Penal Internacional. Indiferente também aos numerosos crimes de guerra cometidos pelas forças russas em território ucraniano. Em cidades-mártires como Butcha, Irpin e Mariúpol

 

Alguns, no conforto da Europa Ocidental, aplaudem. Alheios aos atentados aos direitos humanos cometidos na própria Rússia, onde Putin não hesita em assassinar opositores políticos. Enquanto vão pervertendo a palavra paz, associando-a ao carrasco de Alexei Navalny.

Argumentam que o fundamental é «haver um acordo». Como se fosse possível selar um acordo sobre o futuro da Ucrânia nas costas de Zelenski e com a total ausência de representantes da União Europeia, que nestes três anos enviou 145 mil milhões de dólares em assistência financeira, militar e humanitária a Kiev.

Falando em acordos, vale a pena mencionar duas datas:

5 de Dezembro de 1994. O dia em que foi assinado o Memorando de Budapeste. Honrando este compromisso, a Ucrânia entregou à Rússia todo o arsenal nuclear existente no seu território desde os tempos da URSS, em troca do reconhecimento da sua soberania e da sua integridade territorial. O acordo foi também subscrito por representantes dos EUA e do Reino Unido. Sabemos o que aconteceu depois. Em Março de 2014, Moscovo anexou a Crimeia e instalou governos de fachada, totalmente manobrados pelo Kremlin, nas províncias ucranianas de Donetsk e Lugansk.

12 de Fevereiro de 2015. O dia em que russos e ucranianos assinaram o segundo Acordo de Minsk, com mediação alemã e francesa. Kiev reconheceu a autonomia de Donetsk e Lugansk, em troca da promessa russa de respeitar a integridade territorial do país vizinho e retirar apoio militar aos separatistas. 

Sabemos o que aconteceu depois: Putin não respeitou nenhum dos compromissos. As últimas ilusões dissiparam-se em definitivo a 24 de Fevereiro de 2022.

 

Saia o que sair hoje de Riade, onde a União Europeia não comparece por óbvio veto de Moscovo, valerá coisa nenhuma. De caminho, desonra a administração norte-americana. Que em menos de um mês desde a entrada em funções já demonstrou viver num mundo às avessas: ameaça os históricos aliados de Washington e robustece os tradicionais inimigos dos EUA.

Antigos presidentes norte-americanos como John Kennedy e Ronald Reagan (que defenderam ao limite a "ilha" de Berlim Ocidental cercada por soviéticos como fronteira do mundo livre) e George Bush (que há 35 anos liderou uma coligação internacional, respaldada pela ONU, para libertar o Koweit invadido pelo Iraque) devem dar muitas voltas nas respectivas tumbas.

Dia após dia, Trump anda a trair o legado de todos eles.

Pensamento da semana

Pedro Correia, 22.12.24

As democracias liberais têm má imprensa no Ocidente, onde as autocracias voltam a merecer acenos de simpatia cem anos após terem incendiado grande parte do solo europeu. A verdade, porém, é que estamos preparados para enfrentar a pulsão imperialista e neocolonial de Vladimir Putin. A Europa (obviamente dissociada da tirania de Moscovo, inimiga declarada do "decadentismo liberal") é mais forte do que a Federação Russa. Mesmo que acabe por perder o escudo protector dos EUA.

Não precisamos do Irão nem da Coreia comunista nem de mercenários do islamismo radical iemenita para nos fornecerem armamento e combaterem por nós. Ao procurar esses aliados entre a escória do planeta enquanto ameaçava destruir o Ocidente com bombas nucleares (cenário paranóico que nem Estaline ousou traçar), Putin escolheu um campo de onde já não sairá ileso. E deu enorme prova de fraqueza, não de força.

Tendo sido incapaz de conquistar Kiev, assassinar Zelenski, instalar um fantoche à frente do Governo ucraniano e até de preservar o seu vassalo Assad na Síria, é capaz de quê? De "conquistar" cerca de 45 mil kmde ruínas, o equivalente a menos de metade da superfície de Portugal. Entre avanços e recuos, apenas exibe isto como débil troféu de caça na Ucrânia desde Fevereiro de 2022.

É inútil os seus apaniguados cá na terra alimentarem ilusões: mais depressa cairá o ditador russo do que alguma pedra essencial mudará na Europa Ocidental - a tal "decadente" parcela do globo que muitos abominam, quase todos invejam mas onde ninguém recusaria viver. Por ser o pior continente, à excepção de todos os outros.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO DE OPINIÃO durante toda a semana

Este já não oprime mais ninguém

Pedro Correia, 10.12.24

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Aquilo que se convencionou chamar Síria era desde 2011 uma ficção político-jurídica há muito fragmentada em vários territórios com diversas esferas de influência. Era também uma falsa república: funcionava como monarquia absoluta, corrupta e opressora. Com a família Assad no poder desde 1971 - primeiro Hafez (1971-2000), depois o filho mais novo, Bachar, após o falecimento do primogénito. Ambos elegeram a violência extrema contra a população e a implacável perseguição aos opositores como instrumento político.

Este bárbaro regime sobreviveu por um fio à vaga das chamadas "Primaveras árabes" de 2011. Caídos os déspotas da Tunísia, do Egipto, da Líbia e do Iémene, só Assad júnior se aguentou, mantido por conveniência da Rússia, que fez daquela proto-colónia um posto geoestratégico garantindo-lhe um dos cinco ou seis votos incondicionais que Moscovo sempre granjeou em sua defesa e louvor na Assembleia Geral da ONU. 

Assad funcionou como fantoche útil de Moscovo até a férrea resistência ucraniana forçar Vladimir Putin a concentrar ali o esforço de guerra, desviando tropa e logística militar para defender Kursk e atacar no Donbass. A sua queda não causa apenas danos políticos e reputacionais à Rússia: também a teocracia de Teerão acaba de sofrer dura derrota ao ver este fiel aliado derrubado pela insurreição popular. Caiu de podre, sem nenhum sírio a defendê-lo na hora da derrocada.

O torcionário deposto serviu o Kremlin enquanto lá estava, mas perdeu utilidade. Dar-lhe guarida por "motivos humanitários", como diz Putin, é retórica vazia de conteúdo. O ditador russo ignora o significado do termo humanitário e manda assassinar com a naturalidade de um capo mafioso. Se quer preservar a pele no exilio de Moscovo, Assad deve abster-se de tomar chá e manfter-se afastado de varandas ou janelas.

O propagandista do Kremlin

Pedro Correia, 03.12.24

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«A Rússia vai crescer 3,6%. Não está mal, pois não?»

 

«Putin disse esta semana que faz dez vezes mais mísseis do que todo o Ocidente junto e vai aumentar 25%.»

 

«A Rússia faz mais em três meses, em termos de material de guerra, equipamento e armamento, do que toda a Europa num ano.»

 

«A Rússia tem pleno emprego. O desemprego está menor do que na Europa. A inflação também.»

 

«A Rússia está praticamente imune às sanções ocidentais.»

 

«A população da Ucrânia está cansada de Zelenski.»

 

Ontem, na CNN Portugal. Quando se sabe que um terço do orçamento do Estado da Rússia para 2025 está reservado a despesas militares - facto inédito no país.

Reflexão do dia

Pedro Correia, 01.12.24

«Na cabeça dos "especialistas", só o Ocidente "internacionaliza" o conflito [na Ucrânia]. Quando é a Rússia a fazê-lo, existe um manto de silêncio sobre as suas bocas que só serve para denunciar as verdadeiras intenções desta quadrilha. No fundo, fazem lembrar os "apaziguadores"  da década de 30, que também não queriam "internacionalizar" o conflito e até propuseram um acordo de paz com Hitler. Enquanto isso, o demencial Adolfo lá ia ocupando a Renânia, anexando a Áustria, conquistando os Sudetas, abocanhando a Checoslováquia e marchando sobre a Polónia.»

 

João Pereira Coutinho, no Correio da Manhã

A vénia de Guterres ao déspota russo

Pedro Correia, 25.10.24

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Esta é, desde já, uma das fotografias do ano. Pela negativa. Com a sua presença ontem em Kazan, saudando cordialmente Vladimir Putin, António Guterres avalizou a chamada "cimeira BRIC", que segundo o déspota do Kremlin pretende instaurar uma "nova ordem (sic.) internacional". Inutilizando a que emergiu em 1945 e possibilitou a criação da própria Organização das Nações Unidas, de que o antigo primeiro-ministro português é secretário-geral.

Não sei o que mais detesto nesta imagem. Talvez a vénia em jeito subalterno. Talvez o sorrisinho obsequioso. Talvez apenas a frívola gravata cor-de-rosa. Faltou a Guterres a coragem moral de usar gravata negra, em alusão implícita às centenas de milhares de vítimas do ditador russo.

Imagem que infelizmente me recorda outro local e outros protagonistas. Com local e data: Munique, 1938.