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Como preâmbulo: no "Observador" Paulo Dentinho deixou um bom artigo, "O tempo dos autocratas", breve resenha do que se passa. Deixo excertos: "Aos poucos, estamos a assistir à ascensão de regimes iliberais, onde a fachada democrática se mantém, mas esvaziada dos seus princípios essenciais. (...) Orbán reivindica Budapeste como a capital do iliberalismo e a sua “democracia iliberal” é hoje um modelo exportável. Tem seguidores em vários outros países europeus. Mas não só.
Com o seu modelo, o Estado e as suas instituições são capturados a pouco a pouco. A separação de poderes desvanece-se, torna-se aceitável: o parlamento é quase irrelevante, a justiça dobra-se. A imprensa é vilipendiada até só sobrarem os jornalistas amestrados. (...)
Os imigrantes são, normalmente, bodes expiatórios, as organizações internacionais e o sistema global de alianças é desprezado. As elites empresariais alinham-se. E no centro de tudo, o culto do líder.
Com maior ou menor dose, Modi e Erdogan fazem também parte da lista. Já em Moscovo, Vladimir Putin tem um sistema ainda mais aperfeiçoado.
Na Rússia há eleições, mas só para validar resultados já decididos. Putin não governa, domina o exército, a justiça, os oligarcas, os serviços secretos, a imprensa, a justiça. Tudo. O modelo é claro: não se cala a oposição, alguma é mesmo tolerada por ser cúmplice. Mas eliminam-se os opositores não desejados. Simples.
E agora, os Estados Unidos. Nesta segunda presidência de Donald Trump há já alguns sinais reveladores. Internos e externos. Ambos exercidos com dose significativa de brutalidade.
Internamente, há uma obsessão em controlar a justiça e a comunicação social. Externamente, o alinhamento com Vladimir Putin é uma simples constatação. O presidente americano já não fala da Rússia como uma ameaça, mas como um parceiro. Desfez as alianças tradicionais. Não negoceia. Impõe. Distribui taxas alfandegárias como uma espécie de punição a uns, e ameaça com elas vários outros antigos aliados da América.
A ascensão dos autocratas não acontece por acaso. Deriva da crise do modelo liberal-democrático, da ausência de resposta ao crescimento das desigualdades, do ressentimento com o sistema político, da percepção real ou empolada da corrupção das elites.
Os autocratas detetam as falhas, oferecem respostas simplistas, frequentemente demagógicas e populistas: um inimigo, uma promessa de grandeza e uma narrativa em torno de um líder capaz de restaurar a ordem.(...)".
Neste contexto é interessante ver as reacções do pequeno bando de fascistas portugueses entusiasmados com o ressurgimento de Trump. Há neles duas dimensões: por um lado afirmam-se nacionalistas - e muito do que escrevem deriva, explicita ou implicitamente, da sua sanha contra a União Europeia que, dizem, põe em causa a "Europa das Nações", a estas dando primazia, essencial, ôntica, até sacra. E é relevante que nesse eixo de entendimento saúdam, até efusivos, as políticas económicas de Trump porque serão boas para os EUA. Glosando a velha frase - que é verídica e não crítica - assumem que "o que é bom para a General Motors é bom para os EUA". Mas, dado o seu reiterado "nacionalismo", é evidente que dela retiram um silogismo: "o que é bom para a General Motors é bom para os EUA e como tal é bom para Portugal". Ainda não vi escrito o raciocínio económico - que não o político, social, cultural ou religioso - que sustenta esta conclusão. E este é exigível, exactamente por os locutores se reclamarem - se fundamentarem - no tal seu arreigado nacionalismo. Quero fazer-me entender: não reclamo uma justificação de teor político, tipo "nós (governos portugueses, "europa") temos más/custosas políticas". É mesmo económico - assente em visões de curto, médio ou longo prazo. É que se não houver essa abordagem, todo este apreço "nacionalista" pelo anunciado rumo económico americano e seus hipotéticos efeitos em Portugal assenta numa aversão aos interesses económicos portugueses. Uma traição, intelectual que seja. Ou, dado que o termo "traição" caiu em desuso, tornado até anacrónico, é uma convocatória para a resposta: "estes tipos que vão para a americana que os pariu".
Há uma outra via que sedimenta os apreciadores deste influxo autocrático. Está esparramada noutro texto do pluralista "Observador", do nosso José Meireles Graça. Onde opta pelo registo "É para um amigo..." - e sou particularmente sensível a esse rumo pois também tenho alguns amigos, um pequeno ramalhete, que assim seguem. Nesse texto identifica-se o apreço por Trump e quejandos como suportado numa "guerra cultural", contra o politicamente correcto (dito agora wokismo). Esse sobre o qual o democrata Pedro Correia escreveu "Tudo é Tabu", interessantíssimo roteiro sobre as aleivosias do extremismo "identitarista". Pois para aquele "amigo" - e para a fileira destes "amigos" - é tamanha a angústia diante dos discursos das minorias dos que têm ansiedades sobre as respectivas genitálias, dos esparvoados académicos que querem "denunciar" a história, ou dos radicais racialistas, ditos "identitaristas", que preferem apoiar gente como Putin. Pouco importa que este seja um ditador assassino, cleptocrata e imperialista. Pois é defensável dado ser presumível adversário do conteúdo do programa da disciplina do ensino secundário "Educação para a Cidadania" - que estes seus mais ou menos tímidos apoiantes, já agora, nem sequer conhecerão, apenas lhes disseram que é um espaço onde ensinam os rapazolas a enrabarem-se uns aos outros.
E nisto tudo, para além da abjecção de se andar a botar elogios a um ditador como Putin, invectivam-se os críticos de Trump - nós estúpidos (quiçá até um pouco wokistas) porque ficamos presos a análise do seu perfil moral e intelectual e não aos presumíveis ganhos das suas políticas (os tais interesses americanos imaginados como se portugueses fossem...). Pois não é um questionamento político aquele que fazemos, será apenas ligeireza "pessoalista". Neste peculiar eixo de entendimento do que é "política" é saudável, pois anti-woke, que o presidente do mais relevante país grunha "ninguém ouviu falar do Lesotho" e à sua volta todos ululem gargalhadas. E que se louve por ter cortado apoios à pesquisa sobre "ratos transgénicos" , e mais gargalhem. Pois tudo isso, os lesothos e os ratinhos de laboratório e tantas outras coisas, é entendido como "wokismo" - o que é ainda sublinhável por provir de gente que não se coíbe de contestar a "investigação científica" "financiada". E que tem a ufana incultura de o ... escrever.
De facto, isto é puro grunhismo. Não o do Trump. Não o do (refinadíssimo) Putin. Mas o dos "amigos...". E é um grunhismo fascista. Desavergonhado.