O assalto à PT
Alguns insistem em dizer que "acabou o jornalismo de investigação em Portugal". Não acabou, não. A prova está aqui, bem à vista.
Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]
Alguns insistem em dizer que "acabou o jornalismo de investigação em Portugal". Não acabou, não. A prova está aqui, bem à vista.
«Não consigo olhar para a PT hoje sem ver a fotografia de Sócrates.»
Daniel Bessa, ex-ministro de António Guterres
Da privatização, da "excelência" na gestão não dar prisão, de ser rentável para os bolsos próprios e de constituirem exemplos que o Presidente da República gosta de oferecer aos portugueses nos lençóis que assina em cada Dez de Junho.
1. Enternece ver tanta gente defendendo o controlo nacional de uma empresa que, na prática, é brasileira - e se tornou brasileira sem grande contestação. Apetece perguntar onde diabo andavam todas estas almas quando a Sonae oferecia dez vezes mais do que a PT vale hoje. Dando vivas a José Sócrates e Ricardo Salgado, evidentemente, enquanto estes manobravam para que Belmiro falhasse a OPA. Dando vivas a um processo que levou à descapitalização da empresa (era preciso convencer os accionistas a não vender), à parceria com uma operadora brasileira de segunda linha (era do «interesse nacional» que a PT mantivesse presença no Brasil), ao aprofundamento da promiscuidade entre a PT e o GES (o resultado da OPA deixou não apenas claro quem mandava como que o fazia com bênção do governo), à fragilidade da situação actual. A PT (Passos Coelho tem toda a razão) constitui o paradigma do que se obtém quando um Estado controlador e incompetente (por cá, um pleonasmo) decide meter-se onde não devia, em nome de um difuso «interesse nacional» que, na prática, se consubstancia em assegurar lugares para boys apreciadores de robalos. No final da década de 90, após a crise financeira que atingiu os países nórdicos, 60 % das instituições financeiras finlandesas passara para mãos estrangeiras. Ainda recentemente, a divisão de telemóveis da Nokia foi vendida à Microsoft. Por cá, grita-se escândalo sempre que qualquer empresa de capitais nacionais com dimensão suficiente para abrir noticiários televisivos 'corre o risco' de ser vendida a estrangeiros (curiosamente, parece que os brasileiros não o são). Os socialistas, coerentes na via como tendem a 'resolver' os problemas (mesmo os que foram criados exactamente pela aplicação dessa via), clamam por intervenção governamental. O professor Marcelo, intocável no posto de populista esclarecido, acha «imperdoável» ter-se prescindido da golden share. A mensagem é clara: as empresas podem ser privadas desde que pertençam a alguém que agrade ao governo. Incorrigíveis. Incapazes de aprender. Economicamente salazarentos. Mas depois estranham a falta de investimento estrangeiro de longo prazo em Portugal.
2. Há contudo uma área em que o Estado tem um papel crucial: a garantia da concorrência. Num sector com apenas três grupos fortes, a PT não pode acabar por, abertamente (através de uma fusão) ou de forma enviesada (através de conjugação de estratégias), constituir uma extensão de um dos seus actuais concorrentes.
Aquilo que o ministro Pires de Lima disse só será novidade para quem nunca recebeu convites para participar nessa vergonhosa prática de comprar prémios "internacionais". O que disse em relação à PT, coisa que eu desconheço se é efectivamente assim ou não, acontece noutras áreas e com outras empresas, sendo um dos casos mais gritantes o das sociedades de advogados, o que infelizmente só veio confirmar o abastardamento de valores em prol de uma anglo-saxonização das práticas, sem correspondência na tradição portuguesa e continental, mas que tem servido interesses vários. Nada de novo, portanto.
Na Atenas berço da democracia, Aristides, herói a quem coube a organização da Liga de Delos e a definição da estratégia na batalha de Maratona, mereceu o cognome de Justo. Mas nem isso impediu que, nas voltas da polis grega, o seu nome fosse discutido na assembleia anual em que os cidadãos votavam os políticos que, por perigosos, deviam ser condenados ao ostracismo. Conta Plutarco que nessa reunião um camponês se aproximou do próprio Justo, não sabendo quem ele era, e lhe pediu para inscrever o nome Aristides na telha destinada a registar o nome dos que deviam ser ostracizados, pois que não sabia escrever. Surpreendido, o Justo perguntou ao camponês que mal lhe fizera o tal Aristides, ao que o camponês respondeu que nada, que nem o conhecia, mas que estava farto de que todos lhe chamassem Justo. Aristides, sem mais perguntas, escreveu o seu nome na telha, juntando assim, pelo seu punho, mais um voto à própria condenação. A carta de Granadeiro é a telha de Arisitides, o voto de um Justo que se condena a si próprio à demissão ainda que nada lhe pese, ainda que nenhum facto praticado possa perturbar a natureza pacata da sua consciência. Como Aristides, que enquanto se afastava de Atenas ia rezando aos Deuses para que fossem benévolos com o futuro da Grécia, Granadeiro, o Justo, agiu sempre, apesar dos actos de terceiros, no melhor interesse da Portugal Telecom, dos seus colaboradores e de todos os accionistas. Assim sendo, como é, o Justo Granadeiro merece da PT e desta nossa pátria, que no fundo são uma e a mesma coisa, aquela a insígnia e esta o desígnio, tratamento idêntico ao que era reservado aos gregos ostracizados: respeito por todos os seus bens e propriedades durante a ausência de funções de Chairman e outras brincadeiras. Que a democracia grega era primitiva mas já então não era primária. Granadeiro, o Justo, não pode esperar menos e, se este ainda for o país que sempre foi, não deve ter menos. Se dúvidas houvesse, aí estariam sempre novecentos milhões de moedas de euro a dar testemunho e garantia.
Começa a justificar-se melhor que o primeiro-ministro tenha dito que puxou da golden share na PT por razões de estratégia. Desde logo, estava na cara que a PT encontraria outra posição no Brasil, ainda que menos favorável, e que iria agora investir mais no mercado angolano, o que já se desenha. O mundo dos negócios é assim mesmo: faz-se de estratégias.
Além disso, começa também a desenhar-se que os administradores da PT venham a ganhar um "prémio de gestão" extra pelo negócio da Vivo. O que José Sócrates não tinha explicado muito bem é que não se tratava de estratégia nacional, mas sim de estratégia da própria PT. Mas também estava na cara: se a PT fosse estratégica não teria sido privatizada, não é? A menos que a política nacional seja muito fraquinha.
São palavras de José Sócrates, impressas há exactamente 28 dias, no jornal Público. Palavras, como tantas outras deste primeiro-ministro, destinadas a figurar numa espécie de antologia muito particular. Nem um mês decorreu e já a poderosa Telefónica passa a liderar o mercado brasileiro de telecomunicações após adquirir a participação da PT num raide digno dos filmes do Rambo. Diferença: oferecia 7,15 mil milhões de euros, mas acabou por oferecer 7,5 mil milhões. Olé.
Sócrates, como sempre ocorre quando é ultrapassado pelos acontecimentos, congratula-se com o sucedido: "Valeu a pena ter resistido às pressões." Já está esquecido das suas próprias palavras, aparentemente tão categóricas, dadas à estampa no início do mês. Ficam reimpressas aí em cima, com a devida vénia: a função dos blogues é também a de reavivar permanentemente a memória dos leitores. Entretanto, ficamos a saber qual é o valor exacto dos "interesses estratégicos do País", na óptica do primeiro-ministro: 350 milhões de euros. Razão tinha o outro: para tudo há um preço.
ADENDA: Em matéria de nacionalismo económico, o Brasil dispensa lições portuguesas. Como sempre foi óbvio. (Via Blasfémias)
Diogo Freitas do Amaral anda mesmo em passo trocado relativamente ao Governo. Numa altura em que o Executivo socialista prepara um novo pacote de megaprivatizações, o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros de José Sócrates exibe musculatura nacionalista, proclamando na Visão: "Se a União Europeia acabar por nos tirar - sem fundamento explícito nos tratados - as golden shares, a Assembleia da República não deve hesitar em estabelecer, por lei, os direitos de veto do Governo nas empresas consideradas estratégicas. E se essa e outras medidas semelhantes também forem consideradas 'ilegais' à luz do Direito comunitário(!), então haverá que caminhar sem receios para a nacionalização de 50,01% do capital das empresas que não estamos dispostos a perder. O Estado português não pode ceder."
Aprecio esta bravata do biógrafo de D. Afonso Henriques. Restam-me, no entanto, algumas dúvidas. Aqui ficam elas:
Quais as empresas que "não estamos dispostos a ceder"? Serão a TAP, a ANA, a EDP, a GALP, a CP e os CTT, que o Governo quer privatizar rapidamente e em força? Será a Vivo brasileira, que suscitou o recente conflito entre a PT e a Telefónica espanhola, agravado com a interferência de Sócrates? O regresso ao nacionalismo económico num mundo globalizado é um sinal de "progresso"? A hipotética reabertura dos postos alfandegários em Quintanilha, Vilar Formoso e Vila Verde de Ficalho significaria "progresso"? E o que sucederá enfim aos interesses empresariais portugueses e espanhóis se o Presidente Lula - rendido à receita de Freitas 'Krugman' do Amaral - anunciar a nacionalização da Vivo? Regressamos orgulhosamente sós ao doce cantinho peninsular, como nos tempos de Salazar e Franco, a dedilhar guitarras e a tocar castanholas?
Nos últimos dias tenho lido sucessivas notícias segundo as quais Zeinal Bava se deslocou aos EUA para tentar convencer alguns accionistas -- fundos, sobretudo -- a resistir à investida da Telefónica junto da Vivo. Falta acrescentar, porém, um facto relevante que não vi referido na comunicação social e que realça e reforça a importância da intervenção de Bava: o CEO da PT não é um homem só nesta operação. No seu road-show, Bava tem companhia de alguns accionistas. Dito de outra maneira, esta é uma iniciativa da administração da PT concertada com parte dos accionistas e seguramente com aval político. Tudo isto somado revela bem o momento crucial que a PT está a atravessar. Ou vai ou racha.