Um partido em sério risco de desmembramento
«Quando Marx pode mais que as hormonas, não há nada a fazer»
Julián Marías
1
O Partido Socialista Operário Espanhol, reunindo de emergência o seu órgão máximo entre congressos, decidiu no sábado viabilizar um novo Executivo do Partido Popular, liderado por Mariano Rajoy, com um “mandato imperativo” aos seus deputados, que deverão abster-se na votação de investidura.
Com esta decisão do seu Comité Federal – assumida por 139 votos favoráveis e 96 contra – o PSOE demonstrou uma responsabilidade institucional que há muito tardava, rompendo enfim um bloqueio de 300 dias sem formação de governo após duas eleições legislativas em que o PP conseguiu triunfar, embora sem maioria absoluta - a 20 de Dezembro de 2015 e a 26 de Junho deste ano.
Um bloqueio que se devia à intransigência do ex-líder socialista, Pedro Sánchez, apesar de o seu partido contar com apenas 85 deputados no Parlamento espanhol – menos 52 do que os 137 do Partido Popular. Uma diferença inultrapassável, fosse qual fosse a aritmética política. E que transformou em utopia o cenário de umas terceiras legislativas, que deviam ocorrer em vésperas do Natal.
2
Desde que perdeu a eleição parlamentar de 2011, após a fracassada governação de Rodríguez Zapatero que quase conduziu Espanha a um resgate financeiro de emergência idêntico ao ocorrido em Portugal, o PSOE foi resvalando até ao limiar da luta pela sobrevivência política em que se encontra agora.
A viabilização de um novo Governo de centro-direita, mais do que um tardio gesto de responsabilidade, aliás avalizado pela maioria dos eleitores socialistas, constitui portanto uma reacção instintiva à hecatombe que se avizinhava: uma sondagem muito recente divulgada pelo jornal El País, historicamente afim aos socialistas, atribuía uma votação quase irrisória ao PSOE, ultrapassado largamente à direita pelo PP e à esquerda pelo Podemos – amálgama de organizações da esquerda radical, que em diversas zonas do país mantém estreitos vínculos às forças nacionalistas e separatistas.
Pedro Sánchez: pura incompetência política
3
Fundado pelo sindicalista Pablo Iglesias em 1879, o PSOE é um dos mais antigos partidos europeus. E o único que resta dos que firmaram os pactos de transição em 1977 e 1978 que permitiram a refundação da democracia espanhola após quatro décadas de ditadura. A UCD de Adolfo Suárez dissolveu-se há 30 anos, a Aliança Popular de Fraga Iribarne transfigurou-se no final da década de 80 no actual PP e o Partido Comunista de Santiago Carrillo tornou-se uma curiosidade microscópica, sem qualquer relevância na Espanha contemporânea.
Os socialistas assumiram-se nestes 40 anos como uma força pendular na sociedade espanhola, tendo exercido funções governativas durante mais tempo do que os restantes partidos somados (UCD e PP). O seu líder mais carismático, Felipe González, rompeu com a orientação marxista num congresso extraordinário em 1979 e já enquanto primeiro-ministro, em 1986, desafiou a ala esquerdista do partido ao fazer ingressar o país na NATO.
A moderação de González fez alargar a base sociológica do PSOE, tornando-o um partido com verdadeira implantação nacional, que chegou a ocupar a presidência da maioria dos executivos autonómicos - incluindo a Catalunha, com José Montilla, entre 2006 e 2010, e o País Basco, com Patxi López, de 2009 a 2012.
Tudo isso mudou. Hoje está reduzido a dois feudos regionais: Andaluzia e Extremadura.
Em Madrid tornou-se a quarta força política. Em Barcelona, a quinta.
4
Sánchez é um caso clamoroso de incompetência política que apenas pôde manter-se ao leme da Calle Ferraz devido à manifesta cobardia da maior parte dos quadros socialistas – incluindo o que resta do seu baronato regional – que só despertaram ao ver o partido quase reduzido a escombros. Incapazes de fazer frente ao líder, preferiram desgastá-lo ao longo destes meses com relatos de "fontes anónimas" impressos nos jornais.
Em apenas dois anos, o medíocre Sánchez perdeu todas as eleições, por esta ordem cronológica: municipais, regionais, autonómicas na Catalunha, legislativas de 2015 e 2016.
As duas derrotas mais recentes ocorreram a 25 de Setembro nas autonómicas da Galiza e do País Basco. No primeiro caso, o PSOE perdeu quase 45 mil votos, baixando de 18 para 14 deputados no parlamento regional, dominado por uma inequívoca maioria absoluta do PP; no segundo, viu fugir-lhe cerca de 86 mil votos, e desceu de 16 para nove deputados, com o Partido Nacionalista Basco saindo triunfador das urnas.
Nem assim renunciou ao cargo. De desastre em desastre, preparava-se para levar o partido ao naufrágio maior: a terceira eleição legislativa em doze meses, que tornaria ainda mais irrelevante o PSOE na sua estonteada fuga para a frente.
As bases, representadas no Comité Federal, acabam de dizer-lhe: basta. Aconteceu aquilo que previ aqui, há quase três meses: “Sánchez sairá da pior maneira, empurrado pelos barões regionais do partido, com Susana Díaz à cabeça. Já recebeu um solene aviso dos seus pares, mais sintonizados do que ele com a vox populi: não haverá terceiras legislativas. Tal cenário seria catastrófico para os socialistas espanhóis, que vão recuando a cada novo teste eleitoral.”
Juan Negrín e Indalecio Prieto nos anos 30: as lições da história
5
É triste verificar que alguns líderes políticos só abandonam a cena ao serem empurrados, quando a ética da responsabilidade lhes impunha a demissão ao fim de duas ou três derrotas. No caso de Sánchez foi preciso esperar por sete para o empurrão surgir.
Empurrado, mas não convencido. Alguns dos seus apaniguados garantem que violará a disciplina de voto no Congresso dos Deputados, onde mantém assento: incapaz de aceitar a regra da maioria, ameaça votar não. E não tardou a tuitar esta mensagem: “Rapidamente chegará o momento em que a militância recuperará e reconstruirá o seu PSOE.”
Já afastado, continua a comportar-se como se ainda aspirasse disputar o poder a Rajoy num escrutínio do qual sairia inevitavelmente um PSOE ainda mais enfraquecido, transformado em parceiro menor da extrema-esquerda. No fundo, o sonho da direita espanhola.
6
Instala-se agora o fantasma do fraccionismo no partido, com a facção moderada a enfrentar aqueles que defendem uma aproximação dos socialistas ao Podemos. Nada de novo na história do partido, que durante a guerra civil (1936-39) assistiu ao choque das tendências internas – nomeadamente entre os reformistas como Indalecio Prieto e os ultra-radicais como Largo Caballero, auto-intitulado “Lenine espanhol”, contando estes com aliados como o titubeante Juan Negrín, apanhado entre dois fogos.
Hoje novamente fragmentado em inúmeros feudos internos, sem uma liderança firme, dividido entre o constitucionalismo que lhe serviu de bandeira nos anos em que foi mais forte e a pulsão populista proporcionada pelo ar dos tempos, com ocasionais flirts separatistas na Catalunha, o PSOE luta por sobreviver enquanto grande partido nacional. Com González, chegou aos 202 parlamentares. No período pós-Zapatero foi baixando sucessivamente: 110 deputados em 2011, 90 em 2015, 85 este ano.
A nível europeu, só o quase desaparecido PASOK grego se afundou tanto em tão pouco tempo.
A incapacidade de aprender as lições da história origina erros trágicos na política, algo que o aparatoso declínio dos socialistas espanhóis bem demonstra. Como se estivesse escrito nas estrelas: os prenúncios eram evidentes e nenhuma advertência foi escutada em tempo útil.