Agora que o processo das primárias do PS se aproxima do seu epílogo, e concretizada que está a inscrição de mais 7000 "simpatizantes", num universo global que atingirá cerca de 250.000 cidadãos, gostaria de aqui deixar algumas palavras antes de serem conhecidos os resultados finais:
1. Tal como muitos outros que se preocupam com o declínio da participação e dos níveis de militância nos partidos políticos, que em meu entender conduzem a uma deslegitimação dos partidos e uma desqualificação da própria democracia, desde há muito que também defendo a abertura dos partidos a não militantes.
2. No entanto, essa abertura deveria ser concretizada em termos suficientemente amplos de maneira a abranger o maior universo possível de cidadãos, mas ao mesmo tempo de modo a que, mantendo-se a separação de estatutos entre militantes e não militantes, não se despromovesse os primeiros em prol dos segundos dentro de uma instituição que daqueles depende.
3. Quanto ao processo em curso devo dizer que o considero incorrecto quer quanto ao tempo e ao modo como foram conduzidos, quer, ainda, quanto às consequências que o mesmo acarretará qualquer que seja o resultado que se venha a registar.
4. Em relação ao tempo, considero que o actual secretário-geral do PS teve três anos para avançar com a sua concretização e regulamentação sem ter tido necessidade de fazê-lo em cima do joelho, mais como reacção, por despeito, à situação desencadeada por António Costa, do que como consequência de uma acção convicta, devidamente maturada e oportunamente preparada.
5. Reprovo, igualmente, a excessiva prolação do processo de inscrição, no que não podia deixar de ser entendido por qualquer observador independente como uma tentativa de melhor controlar o processo de "arregimentação" de "simpatizantes".
6. Registo, ainda, a incapacidade quanto a este processo de um controlo efectivo das inscrições, de maneira a evitar-se que militantes de outros partidos pudessem participar nas primárias, cumulando o seu estatuto de militantes de outras forças com o de "simpatizantes" do PS. O factos dos cadernos serem divulgados não garante a não inscrição de militantes de terceiros partidos, sendo que teriam de ser estes a controlar que os seus próprios militantes não se inscreveriam neste processo das primárias. Trata-se de um controlo que será exercido, se for exercido, por terceiros, externamente, o que para mim é inaceitável.
7. Acrescente-se que a participação dos não militantes e a abertura do partido à sociedade poderia processar-se em termos tais que não fosse a decisão dos "simpatizantes" a impor-se à dos militantes. Pode ser que a vontade de uns e de outros se mostre coincidente, mas se não for, isto é, se a dos "simpatizantes" divergir e se impuser à dos militantes, qual será a consequência disto, como é que estes reagirão e avaliarão o seu estatuto?
8. Tal como defendi em várias reuniões que tiveram lugar no Algarve, numa delas com a presença de Jorge Seguro Sanches, o processo das primárias, desde logo para escolha dos candidatos às câmaras municipais, que a ter tido lugar nos termos por mim defendidos até poderia ter evitado mais uma humilhante derrota para o PS em Faro, entendo que a participação dos não militantes num processo do tipo das primárias não deveria ser decisivo quanto à escolha dos candidatos dos partidos, única forma de proteger o estatuto de militante (dos vivos, é claro).
9. A participação de não militantes num processo de abertura do partido à sociedade deveria ter lugar, primeiro, através da apresentação de um conjunto de nomes por parte do partido - candidatos -, susceptível de incluir militantes e independentes, que depois seria colocado à apreciação dos não militantes e que permitiria uma ordenação das escolhas que resultassem dessa consulta.
10. Aos militantes ficaria depois reservada a decisão final, num processo exclusivamente interno em que participariam os dois ou três nomes mais "votados" pelos não militantes, devendo aqueles decidir qual o nome que o partido deveria então apoiar e propor ao eleitorado.
11. Se fosse escolhido um candidato diferente daquele que tivesse obtido maior número de votos na consulta junto dos não militantes, os militantes assumiriam o risco e a responsabilidade da escolha, cabendo-lhes sempre a última palavra. Assim, tal como o processo está delineado e irá ocorrer, nada garante que não venha a surgir uma cisão entre a vontade do partido e a dos "simpatizantes".
12. Finalmente, lamento que num processo tão participado não tenha sido possível concretizar o voto electrónico, que apesar das críticas é utilizado em países como a Alemanha, o Canadá ou a Austrália, entre nós também por pelo menos um clube desportivo, e que também não seja permitido, nem aos militantes nem aos outros que se inscreveram, votar no local onde estiverem no dia do escrutínio, que poderá não ser o mesmo em que se inscreveram, mediante a apresentação do seu documento de identificação e do cartão de militante. Já nem falo do voto por antecipação. Na era da informática, num país e num partido que até foi responsável pela concretização do passaporte electrónico, do cartão do cidadão e de um Citius que até há pouco funcionava e serviu de exemplo e modelo para outros países, é pena que não se tenha aproveitado esse saber e experiência num processo como o das primárias.
As questões não são tão simples quanto a pressa de colocação no terreno deste processo possa aparentar. Perdeu-se uma boa oportunidade para se criar um processo que pudesse inovar e servir de modelo a outros partidos. Apesar disso, espero que não se perca a hipótese de discuti-lo e de melhorá-lo, levando a discussão sobre matérias que a todos interessam até onde mais gente possa inteirar-se das questões e manifestar-se. Porque esta é uma discussão que diz respeito a todos os partidos e a todos que se preocupam com a saúde da democracia, independentemente dos calendários eleitorais e das regulares lutas de capoeira onde muitos - e não só de Lisboa - ainda se revêem.