Certezas e incógnitas
(Créditos: Mário Cruz/EPA)
O filme das presidenciais terminou como começou. Sem surpresas, com muito verbo e pouca chama.
Que Marcelo Rebelo de Sousa iria ser reeleito não havia dúvidas a partir do momento em que António Costa resolveu, por sua alta recriação, endossar-lhe por antecipação o apoio do PS. Cumpre dar-lhe os parabéns.
As duas únicas verdadeiras dúvidas desta eleição resultavam do valor que a abstenção poderia atingir numa situação muito diferente da registada em qualquer uma das eleições anteriores – numa fase crítica da pandemia, com a economia em crise acelerada e o desemprego e o défice a aumentarem – e qual o número de votos e a percentagem que o candidato vencedor iria obter.
A abstenção ultrapassou ligeiramente os 60%, o que volta a ser um número extraordinário pela dimensão já que representa um universo de mais de seis milhões e meio de eleitores, mas que ainda assim poderia ter ascendido a valores superiores não fosse ter-se dado o facto de André Ventura ter ido a votos.
O candidato incumbente também conseguiu ultrapassar a fasquia dos 60%, contrariando várias sondagens e projecções, e cometendo o feito de vencer em todos os concelhos do país. Marcelo obtém cinco anos depois da primeira eleição mais oito pontos percentuais e aumenta significativamente o número de votos (mais 122 mil votos), tornando-se evidente que tanto ele como o regime saem amplamente reforçados com este resultado.
A percentagem de votos brancos e nulos continua a ser pouco relevante como reflexo de um qualquer sinal de descontentamento em relação ao regime, e a abstenção, pelas suas múltiplas e variadas razões, não permite outra conclusão que não seja a do desinteresse e alheamento de uma parte enorme do eleitorado pelo destino do país. É lá com eles. Se querem continuar à margem continuem, mas depois não se queixem das escolhas.
A candidata Ana Gomes tentou fazer o que lhe era possível obtendo, apesar de tudo, um resultado honroso. Meio milhão de votos permitir-lhe-ão assegurar a continuação no espaço público, eventualmente a participação numa próxima contenda. Não mais do que isso. Não passou a ter mais peso dentro do PS, não pode aspirar a federar a esquerda, o discurso continuará a ser feito de tiradas sem grandes consequências. O mais interessante, todavia, será o facto de não obstante a ausência de grandes apoios, sem uma máquina profissional organizada no terreno, ainda assim ter travado André Ventura.
O resultado de Ventura e da gente que conseguiu reunir-se em seu torno, que vai de descontentes comunistas à extrema-direita provinciana, congregando franjas do centro-direito e de estratos mais desfavorecidos atraídos pela mensagem xenófoba e demagógico-populista, é duplamente enganador. A votação obtida no interior e no Alentejo e Algarve, onde conseguiu o segundo lugar, à frente de Ana Gomes e cilindrando o candidato comunista, não pode passar despercebida e será um sinal de alerta para os partidos tradicionais. De qualquer modo, a entrada de Ventura nos dois dígitos é uma consequência da abstenção, da ausência de verdadeira competição à direita e de candidatos fortes à esquerda.
Sem um programa de governo minimamente coerente, com um caderno de merceeiro cheio de gatafunhos e frases feitas para agradar à populaça que gostaria de ascender às tetas do regime; sem quadros capazes, entre bem-intencionados, artilheiros e cadastrados, os dois dígitos evaporar-se-ão rapidamente nas autárquicas e nas próximas legislativas. O simples facto de Ana Gomes, sozinha, e com uma esquerda polarizada, ter ficado à sua frente, é uma vergonha para o discurso machista e taberneiro que aspirava chegar à segunda volta. Quando muito, Ventura, na melhor das hipóteses, dará uma volta ao Marquês de Pombal se o seu amigo dos pneus conseguir ser campeão.
O candidato João Ferreira ficou dentro do que seria de esperar de um partido que nem sequer no Alentejo, no Algarve ou em Setúbal consegue segurar o seu eleitorado. Esmagado por Ventura. O PCP devia pensar nos frutos que tem colhido com a sua ortodoxia franciscana. Os votos de castidade, pobreza ideológica e obediência ao “centralismo democrático” mantê-lo-ão vivo apenas dentro das paredes da Soeiro Pereira Gomes enquanto houver alguém que de quando em vez limpe o pó aos ícones. Os milhares de euros gastos em campanha por João Ferreira e o PCP são obscenos para o péssimo resultado obtido. Os comunistas deviam pedir contas aos seus dirigentes.
Assinale-se ainda a continuação do desmoronamento do mito Marisa/Bloco de Esquerda. Podem queixar-se do PS, da falta de convergência e de unidade à esquerda, ou de qualquer outra coisa que lhes sirva, que o certo será sempre a falta de visão estratégica da sua direcção política. Quer antes, quer agora. O tempo do BE passou. E convenhamos que andar atrás de Ventura e da sua rapaziada não é grande cartão de visita para ajudar à eloquência do discurso ou dar lições de moral à esquerda.
Refira-se o bom resultado de Tiago Mayan Gonçalves que duplica os votos e a percentagem da Iniciativa Liberal de 2019. Esperemos pelas autárquicas e pelas legislativas para ver até onde poderão chegar perante o definhamento acelerado do CDS-PP.
Quanto ao simpático Vitorino Silva, o “Tino de Rans”, pois continuará a ser isso mesmo, embora agora com menos 30 mil votos.
A grande incógnita reside então em saber o que fará o Presidente da República daqui para a frente com 2,5 milhões de votos no actual cenário de pandemia, decisivo para o que nos espera, perante um Governo que dá sinais de errância e falta de consistência política, que vai abrindo brechas quase diariamente, por vezes pelas razões mais inexplicáveis e cada vez mais evidencia sinais de precisar de mudanças em várias pastas, das quais as mais urgentes serão seguramente o Ambiente, cuja gestão tem sido um fiasco, a Educação e as Infraestruturas e Habitação.
E também de que maneira influenciará futuras escolhas no PSD, o aparecimento de um novo partido ou admitirá antecipar eleições legislativas num cenário de reforço da sua legitimidade.
De um lacrau sabe-se com o que se pode contar. De Marcelo, como de Paulo Portas, nunca se sabe até que ponto o calculismo e o oportunismo políticos condicionarão a decisão futura.
(editado às 11:00 de Lisboa para correcção do número de votos conquistados por MRS em relação a 2016)