As gambas dos subúrbios
Em Portugal existe preconceito de classe. Quem veio do nada e chegou a algum sítio será sempre, e invariavelmente, um arrivista. O apego serôdio aos títulos académicos é causa e sintoma desse preconceito. Em boa verdade, classe talvez não seja o substantivo adequado uma vez que nos remete para a propriedade material. Em Portugal, creio, o problema é de pedigree. O mais importante é o outorgado pela família e, quando este não existe, socorremo-nos do académico. Quem disponha dos dois é elegível para figura tutelar da pátria.
Das diferentes inanidades e vergonhas saídas do caso Raríssimas, é curioso notar que as críticas não se ficam pela censura do nepotismo e do abuso de poder. Há também, como refere o Samuel de Paiva Pires, a reprovação velada a uma “suburbana” que começou a vida profissional a vender revistas num quiosque. Pior só mesmo um suburbano que chega a Primeiro-Ministro e que, depois de sê-lo, insiste em viver nos arrabaldes.
Ao contrário do Samuel, não tenho a certeza que sejamos mais complacentes quando o abuso vem das “pessoas certas”. Mas tenho a certeza que somos impiedosos quando vem daqueles que têm as origens erradas. Aliás, basta que alcancem lugares de poder para que, enquanto país, sejamos impiedosos – a ocorrência de abusos apenas serve para confirmar que há gente que não pode sair da favela.
Este plano inclinado – e inquinado – é, a meu ver, a origem de muitos dos males que assolam Portugal. As origens certas, os amigos certos, frequentar os circuitos sociais certos podem fazer muito por uma carreira. Há, felizmente, excepções. Porventura as necessárias para confirmar a regra.
Embora exija zelo e pudor na gestão de dinheiro público, quanto mais não seja porque parte dele é meu, e critique abusos e deslumbramentos, há algo de admirável em alguém que vindo de um quiosque (para efeitos de argumento aceito a premissa) edificou uma associação para proteger quem padece de doenças raras e fez lobbying (do bom) a favor dessas pessoas e dos seus familiares. O João Taborda da Gama, que prudentemente alerta para o risco do argumento “ad isaltinum”, tem razão quando escreve que o “espaço público cada vez mais parece o Ramiro: só interessam as gambas”.