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Delito de Opinião

As gambas dos subúrbios

Diogo Noivo, 18.12.17

Em Portugal existe preconceito de classe. Quem veio do nada e chegou a algum sítio será sempre, e invariavelmente, um arrivista. O apego serôdio aos títulos académicos é causa e sintoma desse preconceito. Em boa verdade, classe talvez não seja o substantivo adequado uma vez que nos remete para a propriedade material. Em Portugal, creio, o problema é de pedigree. O mais importante é o outorgado pela família e, quando este não existe, socorremo-nos do académico. Quem disponha dos dois é elegível para figura tutelar da pátria.

Das diferentes inanidades e vergonhas saídas do caso Raríssimas, é curioso notar que as críticas não se ficam pela censura do nepotismo e do abuso de poder. Há também, como refere o Samuel de Paiva Pires, a reprovação velada a uma “suburbana” que começou a vida profissional a vender revistas num quiosque. Pior só mesmo um suburbano que chega a Primeiro-Ministro e que, depois de sê-lo, insiste em viver nos arrabaldes.

Ao contrário do Samuel, não tenho a certeza que sejamos mais complacentes quando o abuso vem das “pessoas certas”. Mas tenho a certeza que somos impiedosos quando vem daqueles que têm as origens erradas. Aliás, basta que alcancem lugares de poder para que, enquanto país, sejamos impiedosos – a ocorrência de abusos apenas serve para confirmar que há gente que não pode sair da favela.

Este plano inclinado – e inquinado – é, a meu ver, a origem de muitos dos males que assolam Portugal. As origens certas, os amigos certos, frequentar os circuitos sociais certos podem fazer muito por uma carreira. Há, felizmente, excepções. Porventura as necessárias para confirmar a regra.

Embora exija zelo e pudor na gestão de dinheiro público, quanto mais não seja porque parte dele é meu, e critique abusos e deslumbramentos, há algo de admirável em alguém que vindo de um quiosque (para efeitos de argumento aceito a premissa) edificou uma associação para proteger quem padece de doenças raras e fez lobbying (do bom) a favor dessas pessoas e dos seus familiares. O João Taborda da Gama, que prudentemente alerta para o risco do argumento “ad isaltinum”, tem razão quando escreve que o “espaço público cada vez mais parece o Ramiro: só interessam as gambas”.

Amigos, amigos, ensinos à parte

Laura Ramos, 03.01.13

Tenho filhos crescidos. Senão, arranjaria a maneira de retomar uma pequena luta e empenhar-me-ia em contaminar os decisores (pais e professores) para as evidências demonstrativas que movem a European Association Single Sex Education (EASSE).
É verdade. Confesso que exulto quando vejo confirmados, de maneira autorizada, os juízos que a experiência me fez construir acerca das desvantagens do ensino misto, passada que está a era da desigualdade de oportunidades educativas e do apartheid social que levava a separar meninos e meninas, por causa do temor de enrolanço fulminante entre as partes ou dos funestos efeitos do seu livre convívio na paz das famílias e das paróquias em geral.
O assunto é interessante. Mas nunca alimentei qualquer disposição apriorística para ele até aos dias em que tive de assumir o papel de mãe-educadora, vagamente a contra gosto (mas alguma vez os meus ascendentes meteram o nariz na minha vida escolar? Tempos idos.)

Digo-vos que era um título difícil: aguentar aquelas reuniões de pais, ouvir os longos discursos circulares dos progenitores carenciados de tempo de antena, radiantes por encontrar uma plateia caída dos céus. Ou, pior ainda, suportar a apologética estafada, óbvia e tantas vezes medíocre dos directores de escola, sentindo que confundiam claramente a prática com a prédica, o sujeito com o objecto, a realidade com a ficção.

A maior parte das vezes calei-me: “piquei o ponto” para não prejudicar a prole por delito de ausência; bichanei com alguns outros sofredores cépticos e afins; e saí irritada com a perda do meu precioso tempo.
Depois, quando em casa cumpria o meu papel e me empenhava em levar os filhos pelos trilhos certos (os seus e muito seus próprios trilhos), esbarrava nas provas constantes de um ensino desajustado do intelecto masculino e de uma avaliação voltada para parâmetros monocórdicos, sem imaginação, eivados de vícios. Errados, já não tinha dúvidas.

Salvo honrosas excepções, lembrarei sempre aquela força magnética negativa dos gabinetes dos directores de escola, ou de turma, convertidos em cenário de encontros difíceis entre mães ou pais dos rapazes - é claro, muito dotados mas sempre ao contrário da batuta -a contrastar com a paz celestial das breves reuniões - toantes e consoanantes - dos abençoados progenitores das meninas...

Afinal tínhamos razão.

Longa vida à EASSE.

El negro

Rui Rocha, 18.03.12

Estamos num refeitório de uma universidade alemã. Uma aluna loirinha e indiscutivelmente germânica retira a bandeja com o prato do dia e senta-se numa mesa. Nesse momento, repara que se esqueceu dos talheres e vai buscá-los. Ao regressar, descobre com surpresa que um rapaz negro – vindo provavelmente de algum lugar bem ao sul do Sahara – está sentado no seu lugar e come da sua bandeja. A rapariga sente-se desconcertada e indignada. Mas  ocorre-lhe que o africano não está habituado ao sentido de propriedade privada e de intimidade dos europeus. Ou, quem sabe, que talvez não tenha dinheiro suficiente para comprar a sua própria refeição, apesar de esta ser barata na universidade quando comparada com o elevado custo de vida na Alemanha. A rapariga decide então sentar-se em frente ao rapaz negro, sorrindo amistosamente. Ele responde com outro sorriso pacífico. Em seguida, a alemã começa também a servir-se da bandeja, tentando demonstrar a maior naturalidade possível. Compartilha a refeição com o colega com saborosa generosidade e cortesia. Assim, ele vai comendo a salada, enquanto ela come a sopa. Dividem o prato principal. Para sobremesa, ele escolhe o iogurte. Ela fica com a fruta. Tudo isto  sempre acompanhado de diversas expressões educadas e tímidas por parte do rapaz. E condescendentes e compreensivas por parte dela. Terminado o almoço, a aluna alemã levanta-se para ir buscar um café. Descobre então, na mesa que estava atrás dela, o seu próprio casaco colocado numa cadeira e, em frente a esta, uma bandeja de comida intacta. A sua própria bandeja.

 

* tradução livre do texto publicado por Rosa Montero, em 2005, no El Pais.

A campanha Kony 2012 e os diferentes tipos de preconceito

Rui Rocha, 15.03.12

O preconceito tem manifestações estúpidas e evidentes. Mas, para lá destas, há um outro nível menos explicito, subliminar. O preconceituoso explícito traduz a sua estupidez na depreciação directa e injustificada da vítima (os brancos são isto, os negros são aquilo, as mulheres aqueloutro). Já o preconceituoso subliminar traduz a depreciação  na convicção de que só ele está em condições de proteger as vítimas do preconceito. Só existe uma salvação: aquela que o preconceituoso subliminar proporciona, nos termos em que proporciona. Paradoxalmente, este preconceito subliminar está presente, em alguns casos, nos campeões das causas. Bem intencionados, sobrepõem ao interesse real da vítima aquilo que consideram, sem as ouvirem, ser o seu interesse. O paternalismo é evidente. A campanha Kony 2012 pode muito bem ser um destes casos. Ninguém nega que Kony é um criminoso da pior espécie. Os argumentos dos críticos da campanha também já são conhecidos: o principal problema do Uganda já não é Joseph Kony e as preocupações deviam ser dirigidas à corrupção no poder politico, à  doença e a outras chagas que afligem as populações. A este propósito é útil considerar a reacção de Ugandeses que visionaram o filme da promotora da campanha (IC - Invisible Children) na localidade de Lira. As elevadas expectativas iniciais deram lugar à raiva. Lapidares as palavras de uma das mulheres presentes que comparou a recolha de fundos que a IC está a efectuar com uma hipotética venda de objectos com a imagem de Bin Laden para ajudar os americanos. Parece evidente que a IC procurou apenas a história que mais lhe convinha contar, sem ter em conta a versão daqueles que diz querer proteger. Se o fez de forma ingénua, incorreu no preconceito subliminar que a impediu de perceber que a história  que interessa é a daqueles que a vivem. Se o fez oportunisticamente, com mero intuito de autopromoção, estamos conversados.