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Delito de Opinião

A praxe como reflexo de nós mesmos

João André, 13.02.14

Apesar de muita gente entender que o debate sobre a praxe é um fait-divers que distrai a atenção de coisas mais importantes (leia-se, a crise), pessoalmente não o vejo como tal. O debate é, pelo contrário, um excelente momento para se reflectir não sobre a própria praxe mas sobre a cultura da população e, especialmente, dos jovens que enviamos para as universidades.

 

Quase toda a gente já viu o vídeo onde surge um jovem a explicar que tem «o direito a ser humilhado». Esta afirmação, apresentada desta forma, pode ser de imediato colocada como um exemplo da falta de cultura do próprio e como sintoma dos podres da Geração Mais Bem Preparada De Sempre® (GMBPDS). A verdade é que nada sabemos sobre o jovem em causa. Nem sobre ele nem sobre os outros cujas intervenções foram escolhidas para o vídeo. Tal como não sabemos nada sobre outros que indubitavelmente fizeram intervenções bem ponderadas a favor ou contra a praxe. Não, aquilo que escolhemos foi a intervenção de um jovem que não conhece os conceitos de direitos e deveres.

 

Não vale a pena pensar se o jovem em questão é um exemplo da sua geração, tal como não vale a pena imaginarmos que nós - individualmente falamos - somos exemplos da nossa. Não falo em bons ou maus, apenas representativos. Assumamos por um momento que sim, que aquele rapaz, no seu jeito meio desajeitado, é um perfeito exemplar da sua geração. Que demonstra a falta de formação cultural e cívica de todos esses jovens que seguem para o ensino superior.

 

O que falhou então? Será ele um exemplar de inteligência diminuta? Caminhamos nós alegremente na direcção de um país com uma queda na inteligência média? Vou assumir - algo a custo, admito - que não. Os nossos jovens não são mais burros que as gerações anteriores. Serão então mais desconhecedores, tem que ser. O que poderiam eles ter feito para não o ser? A minha resposta é simples: nada.

 

Quando nascemos o nosso conhecimento será essencialmente zero. Nada sabemos sobre a sociedade porque esta é uma construção humana, não é algo que se apreende de forma inata. É necessário compreender o nosso lugar na sociedade que nos acolhe. Parte desse processo passa por entender quais os nossos direitos e deveres. Portugal é um local onde durante décadas se viveu à sombra dos deveres e cujos direitos passavam por ouvir o fado, ir à missa e gritar golo. Há hoje a percepção que a sociedade dá direitos, mas não impõe deveres. Isso pode notar-se na questão do sorteio das facturas, onde um dever se transformou de repente num direito.

 

Quando vemos um jovem a exigir o direito a ser humilhado, e se o virmos como um exemplo da sua geração, só podemos sentir-nos tristes por lhe termos falhado. Falhámos na sua educação, porque ele não entende a diferença entre direitos e deveres. E este é um aspecto fundamental, especialmente quando se invoca que a ignorância de uma lei não é motivo de defesa - se um indivíduo ignora os conceitos de direitos e deveres, como lhe poderemos exigir que compreenda as leis?

 

E é então aqui que se nota o falhanço da sociedade. Não é na ignorância de jovens, é nas causas da sua ignorância. A nossa sociedade - no seu todo - falhou os nossos jovens. Não conseguiu cumprir com a sua obrigação - o seu dever - de os fazer entender qual a sociedade em que vivem - direito à educação. Isto pode ter muitas razões, as quais não quero agora aprofundar, mas a consequência é uma geração que não entende a barulheira sobre um acto que é profundamente humano e que, na sua essência, seria o equivalente a cantar kumbaiá em volta de uma colher de pau. Os excessos da praxe não são de hoje e nunca desaparecerão, mesmo que praxe desapareça. Os excessos são resultado de uma sociedade que não compreende os conceitos de tradição, direitos, deveres e não sabe sequer quais os objectivos de um acto. Culpar jovens que nós deveríamos ter ensinado é o mesmo que culpar o analfabeto por não saber ler.

O comentário da semana

Pedro Correia, 09.02.14

«Li muito interessada o seu texto desde o princípio até ao fim. Vale bem a pena porque é o primeiro que leio sobre praxes, que nos mostra os praxistas pelos olhos dos caloiros e de facto, sem nunca ter sido praxada ou vivido sequer de perto cenas dessas, é mais ou menos isto que penso dessa malta. E sim, os meus filhos que são anti-praxe, é isso que dizem deles -- a maior parte são feios, "grunhos" e parvos (pois se não fossem, não "curtiam"cenas parvas, claro está). Mas... eu andei no ISCTE há 30 anos, lembro-me do António José Seguro ser da Associação de Estudantes e nunca, mas nunca lá vi praxe nenhuma nesses anos. Coisa que aliás me deixa triste, quando vejo a estupidez que por lá agora se passa. Tirando alguma imprecisão no tempo, é um texto muito aproximado ao que um jovem comum pensa daquela meia dúzia de totós que aproveita este período para enfim, dar asas a algumas estranhas "fantasias"...»

Da nossa leitora Fátima Neto. A propósito deste texto do António Manuel Venda.

Quem não os conhecer que os compre

Laura Ramos, 03.02.14

 

Pois eu, por mim, não tenho problema algum em dividir a minha cidade com a estudantada.

 

Deploro os exageros escusados, o asneiredo de criar bicho, mas tenho muito boas memórias desse meu tempo, em que vivi a festa no melhor e mais enriquecedor sentido do termo.

Aliás, lutei, rigorosamente, por ela. Com a pele. O que não me faz subscrever os desvios comportamentais, longe disso.

Mas o que me dá um enfoque geracional muito interessante e suculento, para quem sabe reconhecer de onde vem o dedo de muitos degrenidores activos da soi-disant praxe académica (não confundir com os indignados passivos).

Infelizmente, há uns tantos anormais cujos actos permitiram que esses tais voltassem a pôr as unhas de fora.

Quem não os conhecer que os compre.

Reuniões produtivas.

Luís Menezes Leitão, 31.01.14

 

Depois de todas as consequências trágicas provocadas pelas praxes, esperar-se-ia do Ministério da Educação uma reacção enérgica a disciplinar e a punir essas práticas, semelhante à que aqui defendi. O Ministro da Educação parece achar, no entanto, que o seu papel se limita a ser o de inventar exames absurdos aos professores, deixando os alunos totalmente em roda livre, independentemente de quais sejam as consequências para outros alunos envolvidos. Precisamente por isso no final da reunião limitou-se a proclamar o direito dos alunos a resistirem às praxes. Seria o mesmo que se o Ministro da Administração Interna, em lugar de usar a polícia para reprimir as agressões, tivesse dito que os agredidos tinham o direito de resistir. Entende o Ministro que o seu Ministério e as Universidades não têm a obrigação de garantir a segurança dos seus alunos? Não por acaso, foi esta a imagem que a Imprensa Falsa deu do resultado da reunião. Eu só pergunto como é que Nuno Crato ainda continua no Governo.

Considerações sobre a praxe

João André, 27.01.14

Como quero escrever sobre a praxe, um primeiro esclarecimento: estudei em Coimbra, o local onde a praxe, como fenómeno organizado e denominado como tal terá surgido. Quando entrei li o Código da Praxe (tinha sido revisto nesse mesmo ano) de fio a pavio e decidi que não era para mim. Ao longo do  meu período na Universidade de Coimbra nunca vesti o traje académico, tomei parte em praxes ou participei no cortejo da Queima das Fitas. Por outro lado, nunca tomei uma posição anti-praxe, preferindo antes uma posição de "vive e deixa viver".

 

Esta minha posição teve como origem a minha interpretação da praxe: não as actividades a que os "doutores" sujeitam os "caloiros", mas de facto o conjunto das tradições estudantis da Universidade de Coimbra, as quais determinam também o tipo de traje académico, a organização da Queima das Fitas e coisas semelhantes. Não me incluí na praxe porque, pura e simplesmente, achei estúpido que a hierarquia tivesse em conta apenas os anos de experiência dos estudantes e que aqueles que fossem piores estudantes - ou seja, prevertessem os objectivos da sua presença na universidade - fossem as figuras de maior autoridade perante a praxe (veteranos, ou seja, aqueles com mais anos de universidade que de curso).

 

Foi de facto essa a minha maior objecção à praxe: o seu espírito profundamente anti-democrático. Já o acto de praxar (que é apenas uma parte da praxe) me pareceu essencialmente inofensivo. A esmagadora maioria das praxes a caloiros eram relativamente benignas e vi piores humilhações nas salas de aula às mãos de professores excessivamente convencidos da sua superioridade. Todos os casos que vi de caloiros a pedir para não ser praxados foram respeitados. Conheci também suficientes casos em que abusos de poder em praxes foram severamente castigados (de um ponto de vista da praxe, bem entendido) e um caso em que um abuso durante uma praxe foi comunicado à polícia a conselho do Conselho de Praxe.

 

O que quero com isto dizer é que a praxe de caloiros não é em si algo de bárbaro. O tipo de praxe depende simplesmente de quem a pratica. Sem regras que sejam respeitadas, o espaço para abuso aumenta. o Código da Praxe da Universidade de Coimbra proíbe (ou proibia, hoje em dia não sei), por exemplo, que se pintasse ou riscasse a cara dos estudantes. As suas regras são (ou eram) respeitadas pelos estudantes, que se fiscalizavam uns aos outros. Os abusos que houvesse poderiam ser comunicados à polícia.

 

Noutras universidades será diferente. Poderemos começar uma campanha de erradicação da praxe porque na sua ausência a sociedade nada perderia, antes pelo contrário. Aquilo que temo é que as humilhações dos estudantes não só se mantivessem como pudessem aumentar, uma vez que passariam a ser (ainda mais) ilegais. Não esqueçamos aquelas que vemos em filmes americanos e que glorificam as (ainda mais) bárbaras fraternidades americanas. Basta ver filmes como Oldschool. Por outro lado, rituais de iniciação estão presentes em todo o lado. Desde empresas a clubes de futebol, passando pelo principal exemplo dos mesmos: as forças armadas.

 

Como no caso de drogas, não sou a favor do fim da praxe (embora, repito, ela não faça a menor falta). Sou antes a favor da regulamentação. Para isso ser possível é no entanto necessário começar por educar. Não só os estudantes que praxam ou são praxados mas, e antes de mais, os professores que, nos órgãos de gestão das faculdades, permitem as piores práticas porque também as viveram. Não resolveria o problema mas, na minha opinião, seria um passo na direcção certa.

A praxe não tem lugar num mundo civilizado

José Gomes André, 25.01.14

A defesa da praxe recorre aos habituais argumentos: serve para “integrar” e “facilitar o entrosamento”, e em caso de excessos torna-se reprovável e os seus autores devem ser punidos. Nada mais falso. O equívoco reside nesta dicotomia, que define os contornos de uma praxe “boa” e de uma praxe “má”. A primeira procuraria familiarizar os indivíduos com a instituição a que agora pertence; a segunda utilizaria meios violentos para o atingir.

 

Trata-se de uma mistificação. A essência da praxe não é a “integração”, mas sim a humilhação. A praxe não existe para introduzir um indivíduo num contexto social harmónico ao qual ele aspira pertencer, mas sim para clarificar desde logo a relação de forças que existe nesse mesmo contexto, ou seja, para tornar evidente que o noviço se encontra na base da estrutura hierárquica da instituição, devendo submeter-se às condições impostas pelo topo da pirâmide. Evitando uma longa e penosa explicação teórica destas circunstâncias, a praxe manifesta, num instante físico conciso e intenso, os contornos exactos dessas regras, instaurando uma relação imediata entre o senhor e o servo, o dominador e o submisso.

Não se trata de um ritual iniciático, cujo móbil é o desejo de inscrever e assimilar. A praxe é uma cerimónia puramente exclusiva, que define os espaços interditos ao aspirante, confinando-o às rígidas fronteiras da hierarquia imutável da instituição. Na verdade, só o tempo permitirá a ascensão na pirâmide, embora apenas com o intuito de cristalizar a ordem pré-definida. Em rigor, a praxe é o mais acabado exercício de mumificação que as sociedades modernas engendraram. Uma sociedade civilizada devia erradicar este fenómeno puro de exclusão, esta coacção psicológica necessariamente violenta, esta forma de opressão perpétua. Num mundo esclarecido, não há lugar para a praxe. Sem excepções.

[Escrevi este texto em 2007 e já o republiquei duas vezes. O "Dux" não lhe ligou nenhuma. Talvez tenha melhor sorte desta vez]

O lado negro das praxes

Helena Sacadura Cabral, 20.01.14
Abordo hoje o tema das praxes académicas, que tem estado na ordem do dia pelas piores razões.
Devo confessar que tais tradições sempre me deixaram de pé atrás – onde estudei elas não existiam –, porque infelizmente aquilo que supostamente seria uma maneira de integração dos novos alunos está, a meu ver, a tornar-se num meio de humilhação, de desrespeito e até de ameaça à própria vida. A situação é profundamente lamentável e exige que se tomem medidas urgentes.
A grosseria e a violência destas práticas atingiram níveis tão inadmissíveis que não podemos continuar a encolher os ombros, ou a não nos indignarmos.
É que todos somos mais ou menos cúmplices do que se passa, consequência de uma certa forma de demissão das funções paternas e de uma educação com fortes laivos de laxismo e permissividade.
Parece ser cada vez mais a altura de pensarmos nisto, num tempo em que quase todos os jornais admitem que a tragédia do Meco poderá ter tido como origem praxes académicas. 

Desmistificar as fezes

Pedro Correia, 20.01.14

 

Uma caloira da Escola Superior Agrária de Santarém foi sujeita em Outubro de 2002 a uma "praxe" violenta que incluiu ser esfregada com excremento de porco e meterem-lhe a cabeça num bacio cheio de fezes. Denunciou o ocorrido numa carta ao ministro que tutelava o ensino superior e accionou judicialmente os responsáveis por tão edificantes práticas. O tribunal de Santarém acabou por dar-lhe razão em Maio de 2008, condenando seis ex-alunos daquela escola a multas entre 640 e 1600 euros. Um outro foi condenado por coacção.

Este caso - de que me recordei numa altura em que as praxes voltam a estar em questão a propósito da tragédia que vitimou seis estudantes universitários na praia do Meco - foi exemplar a vários níveis. Desde logo por culminar numa sanção judicial, embora pouco mais que simbólica, a autores de "praxes" degradantes e sexistas a que durante demasiado tempo as autoridades escolares fecharam os olhos, em nome de uma intolerável "tradição" académica. Também por constituir um acto de inegável coragem da ex-aluna da ESAS, que aliás se viu forçada a transferir a matrícula para o Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa.

Mas também foi exemplar por maus motivos. Quando um caso destes demora quase seis anos a ter um desfecho em tribunal, ficou tudo dito sobre o péssimo estado da justiça neste país que tanto gosta de proclamar a sua "modernidade" aos quatro ventos.

E é ainda tristemente exemplar também por isto: segundo relatou na altura o Público, em artigo da jornalista Andreia Sanches, entre os testemunhos abonatórios dos sete réus incluiu-se um ex-professor da Escola Superior Agrária que foi a tribunal garantir que "é preciso desmistificar as fezes". Enquanto o então director do estabelecimento assegurou que ali era "normal a praxe com bosta".

Com professores assim, com "responsáveis" assim, não admira que algum do nosso ensino "superior" esteja como está. Uma bosta.