Frans Floris, "Banquete dos deuses", 1550
O que se passou ontem no Pingo Doce, não a corrida aos supermercados mas o êxtase ideológico que dela decorreu, é mais um episódio do infindável conflito entre platónicos e pragmáticos.
Os platónicos têm a verdade no bolso, sabem perfeitamente quais são os princípios ideais por que se deve reger a boa sociedade e não perdem ocasião para derramá-los sobre qualquer acontecimento que se lhes depare. Os platónicos são moralistas porque tudo para eles é uma questão moral, consequência primeira de quem tem dificuldades em encaixar a realidade nos preclaros princípios. Se estes são incontestavelmente certos e justos, logo aquela, se lhes resiste, está errada ou é má. Os platónicos são, assim, judicativos a outrance, sempre de dedo apontado aos modos e às acções dos outros – os alienados.
No tempo de Marx não havia classe média. Havia pequena-burguesia que era uma categoria social diferente. Os caixeiros e escriturários não constituíam uma chusma significativa para ganhar estatuto de classe. A classe média é uma criação da esquerda, das sociais-democracias europeias e americana, pelo que higienicamente tende a abjurar o conservadorismo. Com bastante pertinência, sobretudo em Portugal onde a classe média é débil e muito recente, ela associa os valores conservadores: 1) ao snobismo dos pretensos fidalgos que mal disfarçam a bastardia do seu arbusto genealógico, mas ainda assim pavoneiam e reivindicam uma pretensa superioridade social; 2) aos suaves modos da elusiva alta burguesia financeira, que desde o sr. Burnay verdadeiramente manipula a economia portuguesa desde o seu refúgio de Cascais; 3) ou à marialva bruteza dos remanescentes latinfundários, que embora nunca tenham lido “O Delfim” já intuíram o fim do tempo em que vinham a Lisboa passar os dias que demoravam a gastar 40 contos em coristas.
Daqui resulta que a classe média vive em permanente crise de identidade marxista, de modo que para aliviar a sua má consciência fez do platonismo de esquerda a sua ideologia. Com indisfarçável desdém aponta baterias ao Cavaco de Boliqueime, ao Passos de Massamá e, sem complexos, ao Jerónimo de Pirescoxe, substituto do grandioso dr. Cunhal. Sobre estes prefere sobremaneira a esquerda gentrificada dos drs. Soares e Louçã.
Como não podia deixar de ser, a classe média platonicamente moralista horrorizou-se com as hordas suburbanas que ontem pilharam os Pingo Doce por 50% do preço de rótulo, vendo nela o fim do mundo saciado, nivelado e elegante com que sonha. Fizeram-se filmes no pressuposto de que as imagens falam por si obliterando a máxima de Godard segundo a qual “un travelling est une affaire de morale” – tudo está no modo como se vê, não no que é visto.
Zombies, alienados, indignos, terceiro-mundistas, consumistas, coitadinhos a tirar a barriga de misérias, a barbárie, eram os outros, ou o Grande Outro, para usar a tranquilizadora terminologia lacaniana, que se agitava nos corredores do Pingo Doce, sem ao menos evocar os uivos de Ginsberg. E claro, para que tudo bata certo, tratou-se de uma provocação. O que não se quis ver foi uma coisa simples e demasiado chã: uma oportunidade. O povo (o que quer que esta designação signifique), sempre pragmático nas suas escolhas, viu essa oportunidade. O moralista chama-lhe oportunismo, mas isso é porque os seus princípios o cegam.