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Delito de Opinião

História bucólica

José Meireles Graça, 28.03.22

À borda da pista, num baldio coberto da erva túrgida de uns dias de chuva, uma velhota frágil, de óculos, segava-a com uma foice. Parei. Boa tarde. Boa tarde, respondeu. Está a cortar erva para os seus coelhos, aposto, disse com um sorriso – a velha parecia simpática. Estou, disse ela com um molho de ervas numa mão e a foice na outra, levantando-se. E tem muitos?, perguntei, a pensar que nem sequer um cesto trazia, dali não levaria grande coisa. Não, disse ela, só quatro coelhas e um coelho. Morreram-me cinco, não sei o que deu nos filhos da puta, e já larguei o coelho às coelhas mas nada. Se daqui a uma semana estiver igual mato-as. A elas?, perguntei. E ele? – se calhar a culpa é dele. Olhe que tem razão, vai-se a ver é paneleiro, o grande caralho.

Às vezes gosto do meu povo.

Arrogância

Pedro Correia, 01.03.15

Tavares_001[1].jpgO Público divulga hoje uma entrevista de três(!) páginas com Rui Tavares, líder do Livre, que deixa bem evidente um dos maiores pecados da esquerda portuguesa situada algures entre o PS e o PCP: a arrogância intelectual.

Tavares imagina o seu micropartido como peça essencial no novo tabuleiro político português: «O Livre tem como objectivo ter um programa próprio, um discurso próprio, mobilizar o seu eleitorado e governar. Em maioria absoluta, em teoria, ou governar com quem nós considerarmos que são os partidos nossos congéneres.» Mas que traz afinal este partido de diferente ao espectro partidário nacional? «Havia causas que não tinham representação autónoma: a ecologia, as liberdades, a democracia europeia.»

Extraordinário. Foi preciso o Livre aparecer para surgir tudo isto: ninguém antes se tinha lembrado de tão magnos temas. Lamentavelmente incompreendido, Tavares permanece nas sondagens atrás de António Marinho e Pinto, que se prepara para repetir nas próximas legislativas, agora sob a sigla PDR, o brilharete alcançado em 2014 nas europeias com o MPT.

Quando os entrevistadores - e bem - o questionam sobre o que originou os dois eurodeputados eleitos pelo MPT, Tavares não esconde o seu imenso desdém pelo fenómeno. Com estas palavras bem reveladoras: «Atenção mediática nas televisões generalistas. Marinho e Pinto é uma figura de programas da manhã.»

Temos, portanto, um representante da esquerda "genuína", que se preocupa com os pobres e remediados, a referir-se com sobranceria aos «programas da manhã» que as classes mais desfavorecidas gostam de ver e acompanham com interesse nos canais generalistas.

Podia ser mais uma frase inócua, entre tantas outras contidas nesta entrevista. Mas é afinal bem reveladora sobre a enorme distância a que algumas cabeças pensantes da esquerda portuguesa se encontram do povo para o qual dizem falar.

Não admira que exista também um abismo entre aquilo que ambicionam e o que depois conseguem recolher nas urnas. Nada acontece por acaso.

Cenas da luta de classes nos subúrbios

José Navarro de Andrade, 02.05.12
Frans Floris, "Banquete dos deuses", 1550

 

O que se passou ontem no Pingo Doce, não a corrida aos supermercados mas o êxtase ideológico que dela decorreu, é mais um episódio do infindável conflito entre platónicos e pragmáticos.

Os platónicos têm a verdade no bolso, sabem perfeitamente quais são os princípios ideais por que se deve reger a boa sociedade e não perdem ocasião para derramá-los sobre qualquer acontecimento que se lhes depare. Os platónicos são moralistas porque tudo para eles é uma questão moral, consequência primeira de quem tem dificuldades em encaixar a realidade nos preclaros princípios. Se estes são incontestavelmente certos e justos, logo aquela, se lhes resiste, está errada ou é má. Os platónicos são, assim, judicativos a outrance, sempre de dedo apontado aos modos e às acções dos outros – os alienados.

No tempo de Marx não havia classe média. Havia pequena-burguesia que era uma categoria social diferente. Os caixeiros e escriturários não constituíam uma chusma significativa para ganhar estatuto de classe. A classe média é uma criação da esquerda, das sociais-democracias europeias e americana, pelo que higienicamente tende a abjurar o conservadorismo. Com bastante pertinência, sobretudo em Portugal onde a classe média é débil e muito recente, ela associa os valores conservadores: 1) ao snobismo dos pretensos fidalgos que mal disfarçam a bastardia do seu arbusto genealógico, mas ainda assim pavoneiam e reivindicam uma pretensa superioridade social; 2) aos suaves modos da elusiva alta burguesia financeira, que desde o sr. Burnay verdadeiramente manipula a economia portuguesa desde o seu refúgio de Cascais; 3) ou à marialva bruteza dos remanescentes latinfundários, que embora nunca tenham lido “O Delfim” já intuíram o fim do tempo em que vinham a Lisboa passar os dias que demoravam a gastar 40 contos em coristas.

Daqui resulta que a classe média vive em permanente crise de identidade marxista, de modo que para aliviar a sua má consciência fez do platonismo de esquerda a sua ideologia. Com indisfarçável desdém aponta baterias ao Cavaco de Boliqueime, ao Passos de Massamá e, sem complexos, ao Jerónimo de Pirescoxe, substituto do grandioso dr. Cunhal. Sobre estes prefere sobremaneira a esquerda gentrificada dos drs. Soares e Louçã.

Como não podia deixar de ser, a classe média platonicamente moralista horrorizou-se com as hordas suburbanas que ontem pilharam os Pingo Doce por 50% do preço de rótulo, vendo nela o fim do mundo saciado, nivelado e elegante com que sonha. Fizeram-se filmes no pressuposto de que as imagens falam por si obliterando a máxima de Godard segundo a qual “un travelling est une affaire de morale” – tudo está no modo como se vê, não no que é visto.

Zombies, alienados, indignos, terceiro-mundistas, consumistas, coitadinhos a tirar a barriga de misérias, a barbárie, eram os outros, ou o Grande Outro, para usar a tranquilizadora terminologia lacaniana, que se agitava nos corredores do Pingo Doce, sem ao menos evocar os uivos de Ginsberg. E claro, para que tudo bata certo, tratou-se de uma provocação. O que não se quis ver foi uma coisa simples e demasiado chã: uma oportunidade. O povo (o que quer que esta designação signifique), sempre pragmático nas suas escolhas, viu essa oportunidade. O moralista chama-lhe oportunismo, mas isso é porque os seus princípios o cegam.