Estórias de portugueses como nós
Há uns dias tive oportunidade de fazer uma visita ao Museu de História de Hong Kong. No programa estava mais uma exposição da série “Multifaceted Hong Kong” com o título “Estórias Lusas – Stories of the Hong Kong Portuguese”. E que estórias.
O meu amigo e saudoso Luís Sá, que ficará sempre entre os melhores, os mais sérios e os mais competentes que por estas terras passaram, e que deixou obra publicada, já nos tinha legado o magnífico “The Boys from Macau – Portugueses em Hong Kong”, pelo que foi com bastante curiosidade, aumentada com a passagem que por lá fez há umas semanas, na sua viagem de propaganda eleitoral, o cantinflas que faz de ministro dos Negócios Estrangeiros, que me predispus a programar a visita.
Em boa hora o fiz. Trata-se de um trabalho cuidado e que merece bem o tempo que lhe puder ser destinado.
Começando por um pequeno vídeo colocado à entrada, que traça o percurso dos portugueses desde que iniciaram a epopeia das Descobertas, com Ceuta à cabeça, em 1415, descendo ao longo da costa de África, até à chegada à Índia, e daí ao delta do Rio das Pérolas, a exposição inclui inúmeros elementos didácticos, fotografias, reprodução de documentos, réplicas, mobiliário, dando-nos a conhecer os rostos, as famílias e os percursos de alguns dos mais notáveis lusos, muitos constituindo já fruto da miscigenação cultural, ali deixando prolífica descendência, mas que jamais ocultaram, sempre se orgulhando dessa condição de portugueses e de luso-descendentes, honrando e dignificando a sua memória, muitas vezes em contextos de hostilidade, como aconteceu no período da ocupação japonesa durante a II Grande Guerra.
Achei curioso, sendo a exposição preparada por chineses, num período pós-colonial, em que para se poder lá chegar é preciso, primeiro, passar por uma outra mostra dedicada à Segurança Nacional e aos valores patrióticos do país anfitrião, que no vídeo inicial e nas imagens projectadas não faltassem sequer os painéis de São Vicente, o Infante D. Henrique, Vasco da Gama e Afonso de Albuquerque, contrariando-se assim algumas narrativas imbecis que confundem a obra e a época histórica com as leituras feitas à luz dos dias de hoje por alguns ignorantes para quem tudo o que constitui herança colonial é mau, sendo incapazes de separar o trigo do joio, o muito mau e o péssimo daquilo que não nos envergonha como povo e como nação aberta ao mundo e que em qualquer latitude sabe respeitar e fazer-se respeitar para ser respeitada.
Na sua esmagadora maioria foram portugueses de Macau os primeiros etnicamente não-chineses, o que ali é sublinhado, que se fixaram em Hong Kong. Proficientes em inglês e cantonense já na antiga colónia portuguesa eram contratados por empresas inglesas, ainda antes de se virem a fixar em Hong Kong, por serem fluentes na língua, para desempenharem funções como tradutores e intérpretes, e por se afirmarem como conhecedores profundos da cultura e dos costumes chineses.
Em Hong Kong ocuparam posições relevantes, embora sem nunca poderem ascender a lugares de chefia na administração colonial britânica, sobretudo a partir de finais do século XIX, bem como no comércio e na indústria, destacando-se quanto a esta última a sua herança nas artes gráficas, onde dirigiram importantes casas editoriais e chegaram a dominar o sector, caso das famílias Noronha e Xavier.
A presença de portugueses na área jurídica foi desde sempre importante. As linhagens dos Remédios e os D’Almada Castro – Francisco Xavier D’Almada e Castro, Leonardo D’Almada e Castro Sr., Leonardo D’Almada e Castro Jr. e Christopher D’Almada e Castro – como mais recentemente Ruy Barreto, também com direito a uma fotografia, ou Albert T. da Rosa Jr., actualmente, deixaram nome e história no foro local. Leonardo D’Almada e Castro Jr. ocuparia aos 33 anos um lugar no Legislative Council, antes pertenç de J. P. Braga, vindo a tornar-se no primeiro português a integrar o Conselho Executivo. Em 1953 ser-lhe-ia atribuído o título de “Commander of the Most Excellent Order of the British Empire” (CBE).
Outros portugueses sobressaíram na arquitectura, estando na génese do chamado “Garden City Movement”, como sucedeu com Francisco Paulo de Vasconcelos Soares, ou projectando casas em Ho Man Tin e na área residencial de Kadoorie Hill, como foi o caso de José Pedro Braga, por volta de 1931. Este último também jornalista e editor, se bem recordo, foi, aliás, o primeiro português do Conselho Legislativo de Hong Kong, em 1929, tornando-se em 1935 no primeiro português local a receber o título de “Officer of the Most Excellent Order of the British Empire” (OBE).
Mas também nas artes, os lusos e seus descendentes gravaram o seu nome na história local através das pinturas de Marciano António Baptista Sr., aluno do famoso George Chinnery, de seu filho com o mesmo nome e Jr. no final, de “Naneli” Baptista e de Alfonso Orlando Barreto, e nas emissões radiofónicas do lendário “Uncle Rey”, que entrevistou os Beatles quando estes passaram por Hong Kong, ou nas músicas popularizadas pelos “The Mistycs” e Joe Junior a partir da década de 60 do século passado.
Instituições contemporâneas como a Escola Camões – fundada em 1947 –, que a partir de determinada altura cresceu graças aos alunos chineses e de origem indiana que a frequentaram, acabando em 1996, antes da transferência de soberania de Hong Kong para a RPC, por ser confiada pela Portuguese Community Education and Welfare Foundation à Escola Po Leung Kuk, que lhe mudou o nome, relocalizou-a e adaptou-a aos programas curriculares locais, ou o Clube Lusitano não foram esquecidos.
Merecem, igualmente, destaque todos os portugueses que integraram o Hong Kong Volunteers Defence Corps, a partir de 1854, e os que com a ocupação japonesa se alistaram, a partir de Dezembro de 1941, para a defesa da cidade.
Muitos foram feitos prisioneiros, torturados e morreram às mãos do invasor, mas como aí se diz nunca perderam a esperança e espalharam optimismo junto dos outros prisioneiros para lhes elevarem o moral.
Na retaguarda, atrás das linhas inimigas, foram fundamentais para o trabalho dos serviços secretos, na passagem de informações, homens como Eduardo Liberato Gosano e, mais tarde elevado à categoria de “Sir”, Rogério Hyndman Lobo (Roger Lobo), havendo alguns que no pós-Guerra, depois do final da ocupação japonesa, integrariam os tribunais militares.
Incontornável é o nome de Arnaldo de Oliveira Sales, homem de negócios que em 1957 foi nomeado para o Urban Council, onde se tornou no seu Unofficial Chairman, depois conhecido como “Mayor of Hong Kong”, servindo a instituição até 1981. O reconhecimento pela excelência do seu trabalho é ainda hoje visível em muitos locais da cidade.
Sales foi um dos homens mais influentes do desporto de Hong Kong e asiático, chegando a liderar até ao final do século XX o seu Comité Olímpico, e sendo presidente da Commonwealth Games Federation, da Asian Games Federation (AGF) e do Comité Olímpico da Ásia (OCA). Quando faleceu, o South China Morning Post disse dele ser o “Pai do Desporto de Hong Kong”.
Presentes estão ainda as ligações a Macau, com fotografias e uma velha bandeira com as armas da cidade e do Leal Senado, e a culinária de raízes portuguesas, onde não falta um vídeo com a falecida D. Aida de Jesus e a sua filha Sónia Palmer.
Nota final neste brevíssimo apontamento para um espaço dedicado ao relevante papel dos portugueses nas famosas corridas de cavalos – em 1863 foi criada a Lusitano Cup – e à figura e aos troféus dessa lenda chamada Tony Cruz, jockey filho de outro jockey.
Considerado o maior representante do desporto português em Hong Kong, coleccionou o número espantoso de 946 vitórias. Desde 2016, com a criação de um troféu anual, o Hong Kong Jockey Club homenageia-o. O Tony Cruz Award destina-se a premiar o jockey com mais vitórias numa temporada. Como treinador do Silent Witness, Tony Cruz conquistou 17 vitórias consecutivas. Na temporada de 2010/2011 venceu 72 corridas com o Beauty Flash, que só em apostas rendeu quase 80 milhões de HK dólares. Um palmarés rico e impressionante.
E mais não vos digo. Os que puderem, e que se aventurarem por estas paragens, que não deixem de passar pelo Museu de História de Hong Kong enquanto lá estiver esta exposição.
Como português, quando de lá saí, não pude deixar de me sentir agradecido, esmagado, comovido, e ao mesmo tempo satisfeito e honrado por poder fazer parte desta gente simples, trabalhadora, corajosa, para muitos incógnita, que tanto engrandeceu, e continua a honrar, tão longe e quase sempre sem quaisquer apoios, o nome de Portugal.
Século após século. Contra ventos e marés.
E, o que é mais espantoso, não obstante a gritante mediocridade, ignorância, falta de sentido ético, político e de Estado da tropa trauliteira que tomou conta dos partidos e das suas instituições e que nas últimas décadas nos (des)governa e diariamente nos envergonha.