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Delito de Opinião

Estórias de portugueses como nós

Sérgio de Almeida Correia, 11.04.25

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Há uns dias tive oportunidade de fazer uma visita ao Museu de História de Hong Kong. No programa estava mais uma exposição da série “Multifaceted Hong Kong” com o título “Estórias Lusas – Stories of the Hong Kong Portuguese”. E que estórias.

O meu amigo e saudoso Luís Sá, que ficará sempre entre os melhores, os mais sérios e os mais competentes que por estas terras passaram, e que deixou obra publicada, já nos tinha legado o magnífico “The Boys from Macau – Portugueses em Hong Kong”, pelo que foi com bastante curiosidade, aumentada com a passagem que por lá fez há umas semanas, na sua viagem de propaganda eleitoral, o cantinflas que faz de ministro dos Negócios Estrangeiros, que me predispus a programar a visita.

Em boa hora o fiz. Trata-se de um trabalho cuidado e que merece bem o tempo que lhe puder ser destinado.

Começando por um pequeno vídeo colocado à entrada, que traça o percurso dos portugueses desde que iniciaram a epopeia das Descobertas, com Ceuta à cabeça, em 1415, descendo ao longo da costa de África, até à chegada à Índia, e daí ao delta do Rio das Pérolas, a exposição inclui inúmeros elementos didácticos, fotografias, reprodução de documentos, réplicas, mobiliário, dando-nos a conhecer os rostos, as famílias e os percursos de alguns dos mais notáveis lusos, muitos constituindo já fruto da miscigenação cultural, ali deixando prolífica descendência, mas que jamais ocultaram, sempre se orgulhando dessa condição de portugueses e de luso-descendentes, honrando e dignificando a sua memória, muitas vezes em contextos de hostilidade, como aconteceu no período da ocupação japonesa durante a II Grande Guerra.

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Achei curioso, sendo a exposição preparada por chineses, num período pós-colonial, em que para se poder lá chegar é preciso, primeiro, passar por uma outra mostra dedicada à Segurança Nacional e aos valores patrióticos do país anfitrião, que no vídeo inicial e nas imagens projectadas não faltassem sequer os painéis de São Vicente, o Infante D. Henrique, Vasco da Gama e Afonso de Albuquerque, contrariando-se assim algumas narrativas imbecis que confundem a obra e a época histórica com as leituras feitas à luz dos dias de hoje por alguns ignorantes para quem tudo o que constitui herança colonial é mau, sendo incapazes de separar o trigo do joio, o muito mau e o péssimo daquilo que não nos envergonha como povo e como nação aberta ao mundo e que em qualquer latitude sabe respeitar e fazer-se respeitar para ser respeitada.

Na sua esmagadora maioria foram portugueses de Macau os primeiros etnicamente não-chineses, o que ali é sublinhado, que se fixaram em Hong Kong. Proficientes em inglês e cantonense já na antiga colónia portuguesa eram contratados por empresas inglesas, ainda antes de se virem a fixar em Hong Kong, por serem fluentes na língua, para  desempenharem funções como tradutores e intérpretes, e por se afirmarem como conhecedores profundos da cultura e dos costumes chineses.

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Em Hong Kong ocuparam posições relevantes, embora sem nunca poderem ascender a lugares de chefia na administração colonial britânica, sobretudo a partir de finais do século XIX, bem como no comércio e na indústria, destacando-se quanto a esta última a sua herança nas artes gráficas, onde dirigiram importantes casas editoriais e  chegaram a dominar o sector, caso das famílias Noronha e Xavier.

A presença de portugueses na área jurídica foi desde sempre importante. As linhagens dos Remédios e os D’Almada Castro – Francisco Xavier D’Almada e Castro, Leonardo D’Almada e Castro Sr., Leonardo D’Almada e Castro Jr. e Christopher D’Almada e Castro – como mais recentemente Ruy Barreto, também com direito a uma fotografia, ou Albert T. da Rosa Jr., actualmente, deixaram nome e história no foro local. Leonardo D’Almada e Castro Jr. ocuparia aos 33 anos um lugar no Legislative Council, antes pertenç de J. P. Braga, vindo a tornar-se no primeiro português a integrar o Conselho Executivo. Em 1953 ser-lhe-ia atribuído o título de “Commander of the Most Excellent Order of the British Empire” (CBE).

Outros portugueses sobressaíram na arquitectura, estando na génese do chamado “Garden City Movement”, como sucedeu com Francisco Paulo de Vasconcelos Soares, ou projectando casas em Ho Man Tin e na área residencial de Kadoorie Hill, como foi o caso de José Pedro Braga, por volta de 1931. Este último também jornalista e editor, se bem recordo, foi, aliás, o primeiro  português do Conselho Legislativo de Hong Kong, em 1929, tornando-se em 1935 no primeiro português local a receber o título de “Officer of the Most Excellent Order of the British Empire” (OBE).

Mas também nas artes, os lusos e seus descendentes gravaram o seu nome na história local através das pinturas de Marciano António Baptista Sr., aluno do famoso George Chinnery, de seu filho com o mesmo nome e Jr. no final, de “Naneli” Baptista e de Alfonso Orlando Barreto, e nas emissões radiofónicas do lendário “Uncle Rey”, que entrevistou os Beatles quando estes passaram por Hong Kong, ou nas músicas popularizadas pelos “The Mistycs” e Joe Junior a partir da década de 60 do século passado.

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Instituições contemporâneas como a Escola Camões – fundada em 1947 –, que a partir de determinada altura cresceu graças aos alunos chineses e de origem indiana que a frequentaram, acabando em 1996, antes da transferência de soberania de Hong Kong para a RPC, por ser confiada pela Portuguese Community Education and Welfare Foundation  à Escola Po Leung Kuk, que lhe mudou o nome, relocalizou-a e adaptou-a aos programas curriculares locais, ou o Clube Lusitano não foram esquecidos.

Merecem, igualmente, destaque todos os portugueses que integraram o Hong Kong Volunteers Defence Corps, a partir de 1854, e os que com a ocupação japonesa se alistaram, a partir de Dezembro de 1941, para a defesa da cidade.

Muitos foram feitos prisioneiros, torturados e morreram às mãos do invasor, mas como aí se diz nunca perderam a esperança e espalharam optimismo junto dos outros prisioneiros para lhes elevarem o moral.

Na retaguarda, atrás das linhas inimigas, foram fundamentais para o trabalho dos serviços secretos, na passagem de informações, homens como Eduardo Liberato Gosano e, mais tarde elevado à categoria de “Sir”, Rogério Hyndman Lobo (Roger Lobo), havendo alguns que no pós-Guerra, depois do final da ocupação japonesa, integrariam os tribunais militares.

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Incontornável é o nome de Arnaldo de Oliveira Sales, homem de negócios que em 1957 foi nomeado para o Urban Council, onde se tornou no seu Unofficial Chairman, depois conhecido como “Mayor of Hong Kong”, servindo a instituição até 1981. O reconhecimento pela excelência do seu trabalho é ainda hoje visível em muitos locais da cidade.

Sales foi um dos homens mais influentes do desporto de Hong Kong e asiático, chegando a liderar até ao final do século XX o seu Comité Olímpico, e sendo presidente da Commonwealth Games Federation, da Asian Games Federation (AGF) e do Comité Olímpico da Ásia (OCA). Quando faleceu, o South China Morning Post disse dele ser o “Pai do Desporto de Hong Kong”.

Presentes estão ainda as ligações a Macau, com fotografias e uma velha bandeira com as armas da cidade e do Leal Senado, e a culinária de raízes portuguesas, onde não falta um vídeo com a falecida D. Aida de Jesus e a sua filha Sónia Palmer.

Nota final neste brevíssimo apontamento para um espaço dedicado ao relevante papel dos portugueses nas famosas corridas de cavalos – em 1863 foi criada a Lusitano Cup – e à figura e aos troféus dessa lenda chamada Tony Cruz, jockey filho de outro jockey.

Considerado o maior representante do desporto português em Hong Kong, coleccionou o número espantoso de 946 vitórias. Desde 2016, com a criação de um troféu anual, o Hong Kong Jockey Club homenageia-o. O Tony Cruz Award destina-se a premiar o jockey com mais vitórias numa temporada. Como treinador do Silent Witness, Tony Cruz conquistou 17 vitórias consecutivas. Na temporada de 2010/2011 venceu 72 corridas com o Beauty Flash, que só em apostas rendeu quase 80 milhões de HK dólares. Um palmarés rico e impressionante.

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E mais não vos digo. Os que puderem, e que se aventurarem por estas paragens, que não deixem de passar pelo Museu de História de Hong Kong enquanto lá estiver esta exposição.

Como português, quando de lá saí, não pude deixar de me sentir agradecido, esmagado, comovido, e ao mesmo tempo satisfeito e honrado por poder fazer parte desta gente simples, trabalhadora, corajosa, para muitos incógnita, que tanto engrandeceu, e continua a honrar, tão longe e quase sempre sem quaisquer apoios, o nome de Portugal.

Século após século. Contra ventos e marés.

E, o que é mais espantoso, não obstante a gritante mediocridade, ignorância, falta de sentido ético, político e de Estado da tropa trauliteira que tomou conta dos partidos e das suas instituições e que nas últimas décadas nos (des)governa e diariamente nos envergonha.

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Sessenta anos de emigração portuguesa na Alemanha

Cristina Torrão, 10.09.24

A 10 de Setembro de 1964, chegava à estação de Colónia, na Alemanha, o português Armando Rodrigues de Sá, de 38 anos, natural de Vale de Madeiros, distrito de Viseu. Como muitos outros, que partiam à procura de melhores condições de vida, era um homem simples e tímido. Não desejaria, decerto, tornar-se no centro das atenções, num país desconhecido. Mas os altifalantes da estação anunciaram o seu nome, uma multidão, que incluía autoridades, cercou-o, bombardeando-o com numa língua imperceptível, uma banda de música começou a tocar. Sem ainda bem saber o motivo para tal balbúrdia, passaram-lhe um ramo de flores para a mão e ofereceram-lhe uma motorizada Zündapp.

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Quis o destino que Armando Rodrigues de Sá fosse o milionésimo Gastarbeiter (“trabalhador convidado”, um eufemismo para “imigrante”), na sequência do Gastarbeiterprogramm, criado pelo Governo da República Federal da Alemanha, nos anos 1950, a fim de colmatar a escassez de mão-de-obra na reconstrução do país. A Itália foi, em 1955, a primeira nação com quem os alemães estabeleceram um acordo de recrutamento bilateral. Seguiram-se a Grécia e a Espanha (1960), a Turquia (1961), Marrocos (1963), Portugal (1964), Tunísia (1965) e a antiga Jugoslávia (1968).

A fim de se assinalarem os 60 anos da comunidade portuguesa neste país, o Grupo de Reflexão e Intervenção – Diáspora Portuguesa na Alemanha organizou uma exposição itinerante, inaugurada durante a festa portuguesa de Heinsberg a 7 de Abril passado. Os vinte cartazes que compõem a exposição abordam tópicos históricos como os conteúdos do acordo bilateral entre os dois países, a chegada do milionésimo trabalhador convidado Armando Rodrigues de Sá, as péssimas condições de vida e de trabalho dos primeiros emigrantes portugueses, o surgimento das primeiras associações portuguesas na RFA, o trabalho social da Caritas, das missões portuguesas e dos sindicatos alemães (informações obtidas no jornal Portugal Post, edição de Abril passado).

Também um livro foi agora publicado, com a chancela da Oxalá Editora (editora portuguesa na Alemanha), liderada por Mário dos Santos, que, em 1993, criou igualmente o Portugal Post, o único jornal português neste país. Há uns anos, o jornal mudou de mãos, sendo o seu director actual Tiago Pinto Pais.

Nas palavras da editora, “este livro é uma homenagem aos portugueses que fizeram da Alemanha o seu país de adopção, ou seja, a sua terra de trabalho, de vida, de construção de família e do seu presente e do seu futuro. São 23 histórias de portugueses de várias gerações que partilham a experiência pela qual passaram desde a sua chegada a este país”.

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Foi-me concedido o privilégio de fazer parte deste livro. A editora deu-nos algumas orientações, por exemplo, indicar as razões de saída de Portugal, qual foi a nossa primeira impressão da Alemanha, o que mais estranhámos, o que mais apreciámos, se alguma vez pensámos em regressar por não sermos capazes de continuar aqui, que relação temos hoje com Portugal, se pensamos permanecer aqui para sempre…

Certas coisas custaram-me mais a passar para o papel do que esperava, coisas em que evitamos pensar:

“As minhas raízes estão em Portugal, foi lá que nasci e cresci, o português é a minha língua materna. Por outro lado, já vivi na Alemanha mais tempo do que no meu país (…) Como nós emigrantes sabemos, chega-se a uma altura em que o nosso país, e quantas vezes a própria família, nos considera estrangeiros (…) Ficamos sem saber onde pertencemos (…) Sendo jovens, temos tendência para ver [a emigração] como uma aventura aliciante, sem fazer ideia de que, a partir do dia em que passamos a fronteira, nada mais tornará a ser como dantes”.

Não deixa de ser simbólico que o imigrante “um milhão” na Alemanha tenha sido português. No grupo de 1.106 trabalhadores estrangeiros que seguiam naquele comboio, apenas 173 eram portugueses. Os restantes 933 eram espanhóis. Mas foi Armando Rodrigues de Sá o escolhido, à sorte, na lista dos passageiros. Destino. Ou fado, pois claro.

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picture-alliance / dpa/dpaweb - Berliner Zeitung

Dias épicos

Sérgio de Almeida Correia, 20.11.16

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O modo como se tinham comportado nos treinos e como geriram as suas passagens pela pista faziam antever uma jornada competitiva e que deixava em aberto a possibilidade de no final surgirem nos lugares da frente. O que ninguém esperava é que dois dos melhores pilotos portugueses da actualidade fizessem um interregno nas suas corridas habituais para se proporem vencer em categorias onde habitualmente nem sequer competem duas das três principais provas do cartaz deste fim-de-semana da 64.ª edição do Grande Prémio de Macau.

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Depois de Tiago Monteiro se impor categoricamente na última prova do Campeonato do Mundo TCR, averbando o primeiro triunfo português numa corrida de carros de turismo na Guia, ao volante de um Honda, foi a vez de António Félix da Costa mostrar toda a sua classe e dizer a todo o mundo, em especial a muitos patrocinadores que continuam a apostar milhões em pilotos sem um décimo do seu talento, por que merece ter um volante na Fórmula 1. Félix da Costa, o “Formiga”, venceu sem apelo nem agravo as 15 voltas da Taça do Mundo de F3, a seguir a ter vencido ontem a corrida de classificação para a prova de hoje. As suas ultrapassagens ficarão por muitos anos na retina de quem as viu e são um verdadeiro manual da arte de bem conduzir.

Tiago Monteiro e Félix da Costa (este último inscrevendo pela segunda vez o seu nome entre os vencedores) foram absolutamente imperiais e bastava ouvir os comentários dos jornalistas britânicos ou italianos para se perceber o quanto haviam sido brilhantes. Hoje foram os canais televisivos de Hong Kong, da China e do Japão a darem a notícia. Amanhã, os jornais desportivos de todo o mundo assinalarão mais este feito que encheu de emoção, satisfação e contentamento os portugueses que estiveram por estes dias no mítico circuito e onde por duas vezes a bandeira nacional subiu no mastro mais alto em provas organizadas pela FIA (Federação Internacional de Automobilismo).

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Deixo aqui também uma palavra especial para o André Pires, que com galhardia e muita coragem correu na prova comemorativa dos 50 anos do Grande Prémio de Motociclos, bem como para o André Couto, que correndo com um carro novo e que conduziu pela primeira vez em Macau, voltou a estar ao seu nível, levando um Lamborghini que “não andava” e com problemas de afinação nas suspensões até ao final da corrida da Taça do Mundo de GT, corrida prematura e inexplicavelmente terminada devido a uma decisão administrativa que ainda vai fazer correr muita tinta.

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2016 poderá não vir a ser o melhor ano de sempre do automobilismo nacional (Pedro Lamy, João Barbosa, Álvaro Parente, Filipe Albuquerque, Rui Águas, entre outros, também conseguiram resultados notáveis), mas vai ser recordado durante muitos anos como um ano de corridas inesquecíveis, com resultados tão espectaculares que desmentem os habituais cépticos. E que servem para dizer que com armas iguais às dos outros os portugueses, senhores do seu destino, até conseguem ser muito melhores do que a concorrência alemã, inglesa, francesa, holandesa, espanhola, sueca, finlandesa, russa ou italiana. É só darem-lhes uma oportunidade.

Vhils (2)

Sérgio de Almeida Correia, 21.03.16

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Num dia como este o seu trabalho ainda ressalta mais. Em Hong Kong, no Terraço do Cais 4, ali nas traseiras da Hong Kong Station e com Kowloon ao fundo. Inaugurou hoje às 19h e vai estar por aqui até dia 4 de Abril, com o apoio da HOCA Foundation. Os créditos das fotos pertencem ao António Trindade (CESL-ASIA), que me autorizou a partilhá-las com os leitores do Delito de Opinião.