Retratos de falência
Longe dos corredores do poder, de algumas tribunas periodísticas, e do 'circuito da mão-fria' – os simpáticos e elegantes eventos onde um copo on the rocks arrefece a mão de quem o segura –, há um país que se move como pode.
Os transportes públicos são, a um só tempo, um espaço de desespero e de privilégio. De desespero para quem os usa, porque os atrasos, as supressões e a degradação do chamado “material circulante” pintam uma paisagem magrebina. Em bem mais de uma década como passageiro da CP nunca assisti a um estado tão calamitoso de serviço prestado. Contudo, e apesar do quadro de miséria, ser passageiro é também um privilégio, uma vez que as redes de transportes públicos são um exclusivo de três ou quatro centros urbanos.
Perante a ineficiência do serviço prestado, os passageiros que dispõem de rendimentos para ter carro próprio têm alternativa. Os restantes submetem-se ao não-há-nada-a-fazer, chegando tarde ao seu local de trabalho, perdendo consultas e vagas para exames médicos, problemas resumidos num longo e penoso etcétera. Os serviços públicos deveriam mitigar as desigualdades, mas, no caso em apreço, servem para as agravar.
Um texto publicado hoje no Observador revela um lado mais dramático do caos instalado: pessoas que perdem o emprego e que são preteridas em entrevistas de trabalho por residirem na margem sul do Tejo. A explicação não reside em preconceito, mas sim no temor dos empregadores a contratar alguém que depende dos barcos da Soflusa para cruzar o rio. A posição dos empregadores é compreensível, mas a penalização sobre os residentes na margem sul tem tanto de inaceitável como de terceiro-mundista.
Os preços do imobiliário na capital empurraram famílias para a periferia, o que tem um custo horário nos movimentos pendulares quotidianos entre casa e local de trabalho. A esse custo acresce agora uma penalização laboral, única e exclusivamente por ineficiência dos serviços de transporte.
Este quadro inenarrável de penalização de quem menos tem, que agrava de sobremaneira a desigualdade social, suscita várias dúvidas. Por exemplo, saber o paradeiro daqueles que no passado recente se especializaram em ‘grandoladas’. Ou perceber o que aconteceu aos arautos do ‘povo’ e dos mais pobres. Ou, ainda, perguntar à oposição – assumindo que existe – o que tem a dizer sobre o assunto. Suspeito que são perguntas sem resposta.
O discurso do 'nós vs. eles', do 'povo vs. elites', é perigoso e inútil. A melhor forma de o combater é garantir que não tem adesão à realidade diária de quem vota.