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Delito de Opinião

Mali, Senegal ou Congo: é só escolher

Pedro Correia, 18.01.24

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Reparo no logótipo eleitoral 2024, que vi aqui pela primeira vez.

Passámos mesmo então a ter oficialmente três cores listadas: verde, amarelo e vermelho. Como o Mali, o Senegal, a Etiópia, a Guiné, o Congo, Benim, Gana ou os Camarões. Por vontade do Executivo com maioria absoluta de menor duração da nossa história democrática.

Enfim, um governo absolutamente incapaz de fazer reformas ao fim de oito anos de mandato ininterrupto encontrou aqui um desígnio reformista: transformar a bicolor bandeira portuguesa em tri - talvez como símbolo da "interseccionalidade", ou lá como chamam a essa treta.

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Mas se o amarelo da esfera armilar tem pujança suficiente para ser promovido a faixa cromática autónoma, emparceirando com o verde e o vermelho, por que raio discriminar o azul e o branco, que também pigmentam o escudo nacional?

Eis outra sugestão "reformista", agora já só possível de aplicar na próxima legislatura. Uma bandeira pentacolor. À atenção de quem se prepara para congeminar o programa eleitoral do P(Nuno)S.

Entretanto, deixo aqui três cromos. Com as bandeiras de alguns dos países africanos a que estes génios da desgovernação nos querem equiparar. Façam o favor de escolher qual é a da vossa preferência.

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Bandeira do Mali

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Bandeira do Senegal

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Bandeira do Congo

Facto nacional de 2023

Pedro Correia, 16.01.24

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QUEDA DO GOVERNO DE MAIORIA ABSOLUTA

Em 2022, o PS emergia eufórico das urnas: acabara de conquistar a segunda maioria absoluta da sua história - a primeira havido sido em 2005, com José Sócrates. António Costa via-se inesperadamente premiado pelos eleitores após uma campanha desastrosa do PSD, em que Rui Rio foi acumulando erros do princípio ao fim. Com o BE e o PCP a pagarem o preço político de terem contribuído para a geringonça durante quatro anos e chumbado o Orçamento do Estado de 2022.

Mas o impensável aconteceu: o PS absoluto revelou-se muito mais frágil do que o PS relativo. O Governo recauchutado de Costa protagonizou uma sucessão de monumentais trapalhadas - desde os 14 ministros e secretários de Estado que foram abandonando o barco pelos motivos mais diversos até à inenarrável nomeação de João Galamba para ministro das Infraestruturas e à sua manutenção no cargo, contra todas as evidências e o parecer expresso do Presidente da República, por obstinação do chefe do Executivo, já desligado da realidade.

Tinha tudo para correr mal. E correu mesmo. O copo transbordou em 7 de Novembro, com o anúncio de que Galamba estava a ser investigado pelo Ministério Público, tal como o "facilitador" Diogo Lacerda Machado (melhor amigo do primeiro-ministro) e o próprio chefe de gabinete de Costa, Vítor Escária - este apanhado com 75.800 euros em notas escondidas no gabinete de São Bento, a escassos 20 metros da secretária do chefe do Governo. Pior ainda: o próprio Costa era alvo desta "Operação Influencer" por suspeita do crime de prevaricação.

«Obviamente, apresentei a minha demissão a sua excelência, o senhor Presidente da República», declarou o primeiro-ministro ao princípio dessa tumultuosa tarde. Marcelo Rebelo de Sousa anunciaria depois a dissolução da Assembleia da República a 15 de Janeiro (concretizada ontem) e a marcação de eleições legislativas antecipadas para 11 de Março. Virava-se a página, nada voltaria a ser igual.

 

Esta estrondosa queda do Governo de maioria absoluta foi eleita, por larga maioria, o Acontecimento Nacional de 2023 pelos autores do DELITO DE OPINIÃO. Que aqui, como em qualquer outro capítulo das nossas escolhas anuais, podem sempre votar em mais de um tema.

«Inenarrável, tanto o Governo, como a sua queda» - foi um dos comentários registados. «Apenas um ano depois de Costa nos garantir que iriam ser mais quatro anos», houve quem lembrasse. Enquanto a «descoberta de 75.800€ em dinheiro escondidos no gabinete contíguo ao de António Costa» justificava menção específica.

 

Em segundo lugar, não muito distante, ficou o colapso do Serviço Nacional de Saúde - tema que percorreu todo o ano de 2023 em Portugal e já se prolongou para 2024. Algo «gravíssimo», sublinhou um dos autores deste blogue. Enquanto outra voz se levantava para destacar isto: «Foi o facto de maior impacto directo na vida dos cidadãos deste país e é o exemplo acabado da falta de visão e má gestão dos sucessivos governos desde há muitos anos.» Já em 2022 este assunto fora aqui mencionado, oscilando entre as designações "caos nos hospitais" e "derrocada no SNS".

Terceiro lugar para a histórica Jornada Mundial da Juventude, que congregou em Agosto cerca de milhão e meio de visitantes, jovens na sua esmagadora maioria, transfigurando durante mais de uma semana a face de Lisboa. Também com a presença do Papa Francisco, nesta sua primeira visita à capital portuguesa enquanto dirigente supremo da Igreja Católica. 

 

Três outros factos, cada qual com um voto. Passo a enunciá-los para ficarem lavrados em acta como sempre sucede, ano após ano, no nosso blogue:

- Revelações sobre abusos sexuais na Igreja (facto já mencionado no ano anterior).

- A bicicleta atirada contra as portas de vidro do Ministério do Ambiente: «É o símbolo de muito, senão de tudo o que sucedeu, ainda por cima coroado de rídiculo e inverosímil. Quando tentei explicar o que tinha sucedido a colegas estrangeiros, riram-se na minha cara, com imensa dificuldade em acreditar.» 

- A decadência generalizada do regime, envolvendo acontecimentos já mencionados e alguns outros. Desta forma: «A queda do Governo; o afundamento do SNS; a estultificação do ensino público; o caso Galamba; a novela TAP, o que se descobriu na CPI e foi pressurosamente varrido para debaixo do tapete; 75 mil euros em notas encontrados escondidos em São Bento; a promiscuidade na gestão dos assuntos públicos.»

 

Facto nacional de 2010: crise financeira

Facto nacional de 2011: chegada da troika a Portugal

Facto nacional de 2013: crise política de Julho

Facto nacional de 2014: derrocada do Grupo Espírito Santo

Facto nacional de 2015: acordos parlamentares à esquerda

Facto nacional de 2016: Portugal conquista Europeu de Futebol

Facto nacional de 2017: Portugal a arder de Junho a Outubro

Facto nacional de 2018: incúria do Estado

Facto nacional de 2019: novos partidos no Parlamento

Facto nacional de 2020: o vírus que nos mudou a vida

Facto nacional de 2021: vacinação em massa

Facto nacional de 2022: o regresso da inflação

Liberdade sim, mas só para nós

Pedro Correia, 03.01.24

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Meio século depois do 25 de Abril, chegámos a isto: queremos a democracia para nós enquanto toleramos e até aplaudimos a implantação de ditaduras noutros quadrantes. Tenho pensado nisto enquanto escuto à minha volta várias vozes mostrando indiferença ou até uma discreta simpatia pelos regimes de Cabul e de Teerão, entre outros.

Ao ouvir isto concluo, uma vez mais, que pecamos por falta de apego à liberdade. Tenho a convicção de que muitos portugueses não se importariam de voltar a ver por cá um regime "musculado". Só isso explica a defesa que fazem, nas redes sociais, dos regimes autoritários ou ditatoriais implantados além-fronteiras.

 

O mais contraditório é que muitas das pessoas que emitem opiniões deste género estão sempre a enaltecer o "nosso" 25 de Abril. Enquanto negam que outros povos tenham o seu próprio 25 de Abril. Democracia aqui, tudo bem; ditadura noutros países, tudo bem também.

«Não me venham falar em direitos humanos», vou lendo e escutando demasiadas vezes. Frase que poderia ter sido proferida por Salazar, reeditada neste Portugal do século XXI. Como se a atracção pelos regimes de "pulso forte" estivesse inscrita no nosso código genético. E se calhar está mesmo.

Por ocasião da data da Restauração *

Paulo Sousa, 07.12.23

Na passada sexta-feira celebramos o Feriado da Restauração. No primeiro de Dezembro de 1640 restauramos a nossa independência da coroa espanhola e reassumimos o controle do nosso destino. Portugal e Espanha são hoje países muito diferentes do que eram então. Importa também lembrar que desde a sua génese, a natureza política da unidade dos dois países ibéricos foi sempre muito distinta. Em contraste com a nossa homogeneidade, Espanha é um estado multinacional, que alberga dentro de si diferentes identidades, línguas e sensibilidades. Nesse sentido, podemos dizer que de entre todos os povos ibéricos que assim o desejassem, os portugueses foram os únicos que alcançaram a pretensão de não serem espanhóis. Olhando para o que por lá se passa nestes dias e para as confusões que a nossa conquista de 1640 nos poupa, encontraremos fortes motivos para celebrar.

Alargando o olhar, numa actualidade recheada de lutas e reivindicações protagonizadas por movimentos identitários, o caso português é uma notável excepção. Com as fronteiras terrestres mais antigas do mundo, Portugal, uma nação antiga, tem, juntamente com o Brasil, quase o exclusivo dos casos em que a sua língua coincide rigorosamente com o seu território, ou seja, saindo do país em qualquer direcção, sai-se igualmente do espaço da língua nacional. Na Europa isso não acontece em nenhum outro país. Fala-se francês na Bélgica, mas não na Córsega, fala-se italiano na Suíça, mas não na Sardenha, fala-se alemão na Alemanha, mas também Áustria, em algumas regiões da Finlândia a língua dominante é o sueco e fala-se finlandês numa parte da Rússia, fala-se grego em partes da Albânia e também no Chipre. Os exemplos seguem para fora do mapa da Europa.

Não podemos dizer que este estado de excepção de que beneficiamos seja de nosso exclusivo mérito, pois foi a geografia que nos permitiu essa graça. Localizados onde a terra acaba e o mar começa, nos nossos longos séculos de história fomos apenas invadidos pelas tropas napoleónicas que por cá andaram pouco tempo. Pelo contrário, no centro e leste da Europa, inúmeras cidades já pertenceram a diferentes reinos e impérios, levando a que por aí coexistam diferentes credos, línguas e alfabetos.

Enquanto pilar identitário, a língua portuguesa tem ainda outras particularidades interessantes. Todos os países que a partilham, são banhados pelo mar e todos eles são rodeados por países de línguas diferentes, o que me permite imaginar a língua portuguesa como um arquipélago, que só pode ser ligado pelo mar.

Num mundo em ebulição, em que se recorre à força para tentar impor identidades, a homogeneidade da identidade dos portugueses é um tremendo factor de estabilidade que nos poupa a imensos desassossegos e sobressaltos e é também isso que celebramos neste primeiro de Dezembro.

Brindemos então à nossa relativa independência e à nossa sólida identidade.

 

* Texto publicado no jornal O Portomosense

Tudo do avesso

Sérgio de Almeida Correia, 24.11.23

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É natural que a Procuradora-Geral da República possa dizer com toda a naturalidade "Não me sinto responsável por coisa nenhuma", o que aliás parece não ser coisa nova lá para os lados do rectângulo.

E estou em crer que é uma visão partilhada, comungada e subscrita por todos os que por ali tudo cumprem escrupulosamente sem que ninguém seja responsável por coisa nenhuma.

Veja-se, por exemplo, o Conselho de Estado de onde sai tudo, ninguém confirma, todos se desmentem, sem que ninguém viole as suas obrigações de sigilo.

E deve ser tudo tão natural que até é um juiz, titular de órgão de soberania e sindicalista, quem vem publicamente fazer de defensor oficioso da actuação do Ministério Público, não obstante as minhas dúvidas sobre se isso será compatível com o dever de reserva que sobre ele impende e decorre do respectivo estatuto.

Mas depois de ver magistrados jubilados, um deles conselheiro, a exercerem funções pouco compatíveis com o seu estatuto e, pelo menos num caso, sem o conhecimento do CSM, em Macau, presumo que tudo isso devam ser apenas consequências menores de frases infelizes, minudências, bizarrias e disfuncionalidades sistémicas da alegre vida das corporações e dos partidos que cuidam de nós.

 

P.S. Então e o Sócrates publica as memórias antes ou depois de ser julgado? Temo que, entretanto, ao tempo que as coisas duram, também fiquem todos afectados pelo Alzheimer, como o outro. 

"O modo português de ser socialista"

jpt, 12.11.23

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Nos governos de Sócrates houve uma constante defesa daquele líder, independentemente do que era tão óbvio. Nisso se afadigaram militantes do PS, e basta recordar as maiorias "albanesas" que Sócrates obtinha nos congressos do partido. E também os simpatizantes foram "activistas" produtores da nuvem de fumo que pretendia esconder a malandragem governativa. E não seria necessário recordar esse período não fosse ter vária dessa gente transitado para os governos de Costa, como Fernando Medina ou Augusto Santos Silva - esse que agora vai ao Conselho de Estado afirmar que é necessário "pôr em ordem o Ministério Público", e que foi o único governante socialista que gozou a população por causa do escândalo do socratismo, ao dizer-se "parolo" por não ter percebido o detalhe do seu homónimo e alegado "financiador" do neto do volframista, nisso tanto demonstrando o seu desplante avesso à democratização do país. Ou recompensados com tenças em Estrasburgo/Bruxelas, como o braço-direito Silva Pereira, ou Marques e Leitão Marques. E também muitos desses militantes e ou simpatizantes, então, pois mais jovens, apenas frenéticos publicistas do socratismo, ascenderam ao governo, como o célebre Galamba ou o agora mui mudo Adão e Silva.

Tendo regressado ao poder, após o hiato da gestão da quase catastrófica crise financeira global, o PS de Costa tentou barrar o processo ao socratismo. E o afastamento de Marques Vidal da PGR foi o caso mais sonante, no fundo uma manobra desse desejado "pôr em ordem o Ministério Público", para além de todas as manobras de controlo da comunicação social - e será de lembrar que chegaram ao ponto de nomear como responsável da informação do serviço público uma prima de Costa, que se viu obrigada a demitir-se tais práticas teve nesse posto. Depois, tão insuportável era o conúbio com a imagem de Sócrates que o PS decidiu dele se apartar, deitar borda fora aquele lastro para resistir à tormenta: o ardil foi simples, em dias consecutivos num final de semana, o presidente do partido Carlos  César, a célebre Câncio, renomada publicista socratista, e Galamba, então mero deputado e criatura de Sócrates, vieram demarcar-se publicamente do ex-primeiro-ministro.

Assim enviado o fedorento cadáver político às revoltas águas da Ericeira o PS de Costa seguiu livre no poder. Entre inúmeros - e tantos deles patéticos - "casos e casinhos" a pax costista estabeleceu-se. Primeiro com o apoio dos partidos comunistas, seduzidos por algumas prebendas redistribrutivas para as suas bases e clientelas. E depois sozinhos, por quatro anos, que nos habituássemos nós. Grosso modo, as pessoas eram as mesmas, as práticas são as mesmas, as diferenças virão apenas dos trejeitos individuais.

Na passada semana "o modo português de ser socialista", para glosar Gilberto Freyre, sofreu um KO técnico. Ontem, António Costa reergueu-se e veio ao ringue apresentar a "narrativa" que o PS procurará apresentar aos seus fiéis e restantes adeptos, temerosos do que a malvada "direita" lhes fará. No fundo Costa apresentou-se como epígono de Isaltino de Morais, num trinado um pouco diferente: "temos dinheiro nos gabinetes mas fazemos".

Caberá aos jornalistas, a politólogos ou mesmo a historiadores da contemporaneidade o elencar com detalhe a miríade de "casos e casinhos", e suas articulações, destes oito anos. Para a sua compreensão será muito produtivo associá-los ao acontecido nos governos do anterior primeiro-ministro socialista. E, para uma visão mais "antropológica" - mais estrutural, por assim dizer - julgo que será relevante fazer recuar esta análise ao historial da administração socialista de Macau, molde que foi do modus faciendi das posteriores gerações de políticos daquele  partido. Cujos últimos restantes agora (definitivamente?) colapsam.

Trata-se de um partido de gentes que já há mais de vinte anos estavam incapazes de rebelarem contra os presidentes Soares abraçado ao fugitivo Craxi, ou Sampaio abraçado a Abílio Curto, sempre em nome de uma tal de "amizade". Ou seja, o que hoje se passa não é um momento, é sim fruto de uma mundividência colectiva, predominante naquele partido. Sendo assim, o PS não se regenerará, sofre de necrose política. Estuporado diante da visão de Madrid é incapaz de sopesar, e nisso actuar sobre si mesmo, o que aconteceu aos seus congéneres de França, Grécia, Itália... Pois o problema não é "Costa", é tudo aquilo. E, para mal dos nossos muitos pecados, diante de toda esta decadência temos o pior presidente da República do nosso regime, o mais incompetente pois o mais ininteligente, uma total inadequação sobre a qual me repito desde há muitos anos. É assim necessário sublinhar isto: estamos muito mal entregues. Pois assim o votámos.

Entre a incessante série de comentários recebidos sobre a actual situação escolho divulgar estes três. Porque dizem tudo o que é básico sobre a torpe "narrativa" que António Costa quer legar ao seu partido. 

 

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Prontos para continuar

Sérgio de Almeida Correia, 09.11.23

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(créditos: Miguel A. Lopes/Lusa)

Depois das belas mistelas que têm andado a fazer na cozinha e na copa desde que a despensa ficou à sua guarda, e em que ainda não se percebeu o que esteve o Chef a preparar durante quase dois anos, é natural que a louça suja se acumule, os copos estejam um nojo e cheios de dedadas e marcas de batom, as baratas corram vertiginosas de um lado para outro, haja restos de comida pelo chão, as luvas se apresentem com cortes, todas encharcadas por dentro e a cheirar mal, os puxadores das gavetas impregnados de restos de comida e o chão pingado e pegajoso, onde são visíveis as marcas das pegadas dos ajudantes da copa com restos de farinha e massa, sendo impossível no meio de tanta falta de higiene e ausência de limpeza distinguir os panos que servem para limpar a bancada dos que são usados para enrolar as tortas.

Não obstante, há sempre um figurão de roupão e pantufas, que chegou com o anti-ciclone dos Açores e passa a vida a entrar e a sair da cozinha enquanto vai espreitando para dentro do frigorífico a ver se já lá estão as lampreias e os fios de ovos, não escondendo nesse ínterim o afã dos dedinhos sapudos na recolha de umas lascas de presunto caídas na banca, perguntando a todos aqueles com quem se cruza e que envergam avental se a mesa já está posta e o vinho escolhido.

Não, não está e já não vai estar.

Porque com o lote de ajudantes respeitáveis, com experiência de alta culinária, doçaria conventual e salgados que arranjaram, os únicos que se alambazam são os ratos que de quando em vez são pulverizados com insecticida pelos especialistas do Palácio Palmela, razão que os motiva a continuarem as suas frequentes e prolongadas incursões às gavetas dos pacotes de bolachas e afins quando vislumbram junto ao fogão e ao forno mais movimento dos barões de polainas e das duquesas de cores garridas.

De qualquer modo, enquanto os empregados da tasca da esquina, chefiados pelo chefe de sala do Ribadouro, correm à procura de bandejas, se afadigam a colocar aventais novos e apertam os laçarotes pretos na ânsia de iniciarem funções, talvez seja melhor arranjarem uma máquina para cortar a pasta, não vá a supervisão do Banco de Portugal abrir uma investigação para apurar a razão de não guardarem, na falta de lei especial, o fundo de maneio no porta-luvas do BMW. Ou, por causa dos assaltos, no bolso do avental. 

Delítio de Opinião

jpt, 07.11.23

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(Foto de José Sena Goulão, Lusa)

Está tudo estupefacto pelo terramoto acontecido. Ainda a quente permito-me este "delítio de opinião"* diante da derrocada destes oito anos de Costa, e isto em pleno seu crescendo da arrogância "maioritária" - tão demonstrada há dias no Parlamento, naquela patuscada de Costa ao atirar Galamba para o fecho da discussão do Orçamento, óbvia afronta ao Presidente mas também a todos o que tanto criticaram não só a ascensão do publicista do socratismo como a sua manutenção e recente promoção.

Esbardalha-se Costa agora devido à teia tentacular (passe o absurdo zoomórfico) de interesses de um partido que governou o país durante 22 dos últimos 28 anos, deixando para outros - a tenebrosa "direita", dizem-nos - a gestão das monumentais crises.

Costa, talentoso, apareceu hoje a demitir-se em pose de Estado, competente. Até à "direita" lhe gabam a "dignidade política e pessoal". Assumiu que sai ciente de nada se arrepender e de nada ter incumprido, de "cabeça erguida" - e "mãos limpas" depreendeu. Apenas porque não pode haver suspeitas de comportamentos criminalizáveis de um primeiro-ministro. E nem se vitimizou, apenas se disponibilizou à "Justiça" e às "instituições democráticas".

Melíflua "dignidade". Pois nem uma palavra para o realmente relevante: teve um chefe de gabinete, e manteve-o até ao limite do possível, acusado de umas trapaças autárquicas. Substitui-o por um outro, homem de estrita confiança, agora detido. O seu grande amigo, instrumento para as negociações oficiosas, está detido. Isto é o seu pessoal mais próximo. Tem ministros arguidos - entre os quais o famigerado Galamba, alguém por quem Costa tanto finca-pé tem feito. Isto para além das inúmeras trapalhadas que se têm seguido nos seus governos, algumas das quais o pudor me impede de aludir neste momento de queda desta gente. 

Ou seja, a questão não é se Costa tem comportamentos criminosos, à imagem de um seu antecessor correligionário - e acredito que não os tenha.  O problema é estritamente político. Por um lado é individual, residindo nos critérios que este primeiro-ministro tem para escolher as suas pessoas de confiança na condução do país - que são, vê-se, paupérrimos. Tornando-o um incompetente. E, note-se, nisso indigno, pois irresponsável. Por um outro lado é colectivo - e por isso muito mais importante -, e radica no estado desde há muito degenerado do Partido Socialista, cujas elites são useiras e vezeiras em malfeitorias patrimonialistas, minando o desenvolvimento do país. E por isso durante os anos destes três últimos governos tudo fizeram para parecer que "o socratismo nunca existiu". Mas não só existiu como lhes é o âmago.

Mas após a alegria da queda deste governo, e - sonho - desta malfadada geração "socialista", logo se levanta a angustiada questão. Quem para lhes suceder? Pois urge mudar, desenvolver o país. E é óbvio que para isso nos partidos democráticos se impõem "chicotadas psicológicas", passe o futebolês. E novos modelos tácticos. Que venham, e já. Sem atentar nos pesares de algumas vaidades e anseios pessoais.

* Agradeço a CFN, veterana leitora deste blog, que logo me enviou a sua exigência de que escrevesse eu ainda hoje um "delítio de opinião"...., assim tornando irresistível o apelo.

Casamento Real?

jpt, 08.10.23

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No actual Portugal não há qualquer razão para desvairos regicidas, simbólicos que sejam, ou matafradismos. Somos uma república sossegada, num Estado suficientemente laico, que integra uma simpática e tradicional família Bragança, esta necessariamente algo conservadora e decentemente benfazeja. E um casamento nas suas hostes é algo a acolher com apreço, num bem hajam todos, noivos, familiares e amigos.
 
Já outra coisa são os sonsos acompanhamentos mediáticos, numa descarada propaganda política e ideológica, feita de ignorância e atrevimento. A imprensa - desde a histriónica TVI, a do "Manel Luís....", ao nada liberal jornal "Observador", passando por vários outros "órgãos" - regurgita de notícias sobre o "casamento real". Repito, bem hajam os noivos, suas famílias e amigos, bem como aqueles alguns que hoje acorreram ao adro do "Calhau". Mas não é um "casamento real" e cada jornalista que o escreve, bem como cada um dos directores que aprovam esses títulos, são meros energúmenos aldrabões. "Energumenice" que é assim partilhável, dada a arreigada conivência, por todos os seus colaboradores (desde os ufanos gratuitos nos nada liberais jornais - pois não pagam as "colaborações", avessos que são às leis do "Mercado" laboral - até aos doutores comentadores que acorrem aos "paineis comentatórios" televisivos). Sobre essa reles propaganda política - e os descarados louvores à "causa monárquica" papagueados em plena televisão - nem vale a pena dizer mais...
 
E há ainda a mais perversa, abjecta até, propaganda ideológica, a "santificar-se" na água benta clerical e no encanto da celebração do amor conjugal. Ao que diz ele vindo de Óbidos, na TVI - e enquanto comenta o cerimonial - um padre muito afectado, vogando no típico sotaque pose do invertido burguesote, apelida as "costureiras" como "povo simples".
 
É preciso argumentar sobre isto? Convocam-se patriarcas, cardeais, bispos, presidentes e primeiros-ministros, condecorados avulsos, embrulham-nos num monumento "património", e mete-se a televisão a tratar os cidadãos telespectadores como "povo simples"?
 
Não sou nenhum Buíça, para mim um tipo quase tão repugnante como o asqueroso Otelo, ainda que mais corajoso - passe o anacronismo. Mas impõe-se um bom palavrão nas fuças do padreca adamado. E, já agora, outro nas dos jornalistas que ecoam este tipo de mundividência a propósito do matrimónio dos simpáticos jovens cidadãos que hoje casaram em Mafra. Recém-casados "simples", concidadãos de todos nós, costureiras que somos.

Do Turismo

jpt, 25.08.23

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Num mural de Facebook - de tipo que tem a cabeça no sítio, e não está a gemer sobre o assunto... - vejo uma série de comentários dos tradicionais imbecis "lisboetas", esses burguesotes ufanos, tão loquazes eles sempre vêm, uns em registo "doutor" outros mais a la "morcão". O dono do sítio coloca uma foto de gente a dormir em estação ferroviária - muito me parece que será a Estação do Oriente, em Lisboa. Por lá passei no dia seguinte ao final das Jornadas Católicas e estava apinhada de dorminhocos. Sorri e quase fotografei, mas segui, resmungando com o calor na minha via para nenhures...
 
Os comentários dos tais atávicos burguesotes lisboetas vêm numa mescla que nem sortido. Entre o apatetado lamento pela desgraça alheia, como se isto fosse um pungente episódio neo-realista. E o muito pior resmungo com os "turistas", esses malvados que vieram perturbar a paz cidadã - num país que nem cresce nem se desenvolve há um quarto de século, de algemado a pruridos e preconceitozitos dos pequenos privilégios e estuporado pelos fazedores de opinião a la Câncios e quejanda gente. E que para se aguentar vai contando, por enquanto, pelo fluxo da rapaziada turista ("de pé descalço", desprezam os desprezíveis) que cá vem ao vinho barato, ao peixe grelhado e ao Sol ("ai, que calor insuportável que está").
 
Leio os patrícios imbecis - os "doutores" e os "morcões", que são a mesma coisa, diga-se - e regurgito perdigotos. Teclo-os. Raisparta isto, fartei-me eu, e tantos da minha geração e decerto que das subsequentes, de dormir em estações ferroviárias por essa Europa afora, mochila nas costas, "pé rapado" que não descalço, a feder de suor e falta de banhos, a rapar a fome do sem taco para comer, turista de inter-rail no bolso. Exactamente como estes mais-novos de agora, aqueles católicos que vi, outros de outros credos... Qual é o mal humanitário disto, a desgraça que impende sobre os assim mal-dormidos? E qual a mácula na Gesta Pátria?
 
As pessoas não se "fazem de estúpidas". São, genuinamente, imbecis. E peroram. Não é legítimo calá-las, censurá-las. Mas é necessário, urgente, obrigatório, insultá-las. O dever cívico do insulto. Burras!

Século XXI, às portas de Lisboa

Pedro Correia, 23.08.23

Um cidadão português chega ao Hospital de Loures com uma anca fracturada e morre estendido numa maca de bombeiros num corredor das urgências, onde aguardou durante seis horas transferência para o Hospital de Santa Maria por alegada falta de ambulâncias disponíveis.

Às portas de Lisboa, neste século XXI. Sob a maravilhosa "gestão pública" que agora promete, com a habitual língua de pau dos burocratas, a «abertura de um processo de inquérito com carácter de urgência para cabal apuramento dos factos». 

Quando o diagnóstico está feito pelo próprio Ricardo Leão, autarca socialista do concelho de Loures: o hospital deve regressar sem demora à gestão privada.

 

Leitura complementar: «Nem deixaram tratar o meu pai, morreu no corredor.»

A mentalidade do não-vale-a-pena

Vivemos no país do queixume permanente, com tudo a empurrar para baixo

Pedro Correia, 22.08.23

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Terreiro do Evangelistas, no Bom Jesus do Monte (Braga)

 

Vivi longe de Portugal em dois períodos e destinos diferentes. Totalizando 12 anos e meio.

À distância temporal, não tenho a menor dúvida em considerar que o balanço é largamente positivo. Falo por mim, mas creio falar por quase todos. Abrimos horizontes, conhecemos diferentes línguas e culturas, fazemos novas amizades, ganhamos arcaboiço para enfrentar o inesperado.

E sobretudo - gostaria de sublinhar isto - saímos de uma atmosfera social que demasiadas vezes nos empurra para baixo. Refiro-me ao desânimo, ao desalento, à mentalidade do não-vale-a-pena, à convicção de que tudo só muda para pior, às certezas de que todos os esforços são inúteis. À atmosfera de crise permanente, do queixume como senha de identidade, da insistência em ver o copo meio vazio mesmo quando está cheio porque o resto da tribo também o vê assim.

 

Enquanto estive fora, na maior época de "vacas gordas" em Portugal, quando cá vinha de férias só ouvia falar em crise. Crise do jornalismo, da televisão, do teatro, do cinema, do comércio, da cultura, da indústria, da economia, das finanças, da política. Como sucedia dez anos antes, como continuou a ser dez anos depois (já com as vacas bem magras, quase esqueléticas).

Encontrei as mesmas pessoas nos mesmos bares, sentadas nas mesmas cadeiras, com as mesmas conversas, dizendo mal de tudo e de todos. Uma década depois.

Disso não tive saudades. Nem voltaria a ter se emigrasse de novo.

 

Falta-nos mentalidade mais positiva, algo que muitas vezes só adquirimos quando saímos, quando vivemos em países de brumas e regressamos com saudades do sol.

A nova Europa

Cristina Torrão, 21.08.23

No passado dia 6, apresentei aqui as últimas sondagens alemãs, indicando o AfD como segunda força política do país. O AfD é um partido conotado com a extrema-direita, o que, vindo da Alemanha, tem sempre um peso especial.

Tem? Ou tinha?

Na verdade, no que a este blogue diz respeito, os comentadores, em geral, contemporizaram, filosofando sobre o valor das sondagens, os fracassos dos actuais governos europeus e o verdadeiro significado da expressão “extrema-direita”. Fiquei surpreendida. Há uns anos (não muitos), uma sondagem alemã que apontasse um partido destes como segunda força do país provocaria uma torrente de indignações. Falar-se-ia das tendências racistas alemãs, de Hitler, do nazismo e haveria decerto quem se apressasse a distanciar o líder do Chega de tais correntes.

Hoje já não é possível. O referido líder português esteve, há pouco tempo, num congresso do AfD, em Magdeburgo. O que não deixa de ser estranho, tendo em conta a aversão que os nossos “cheguistas”, na afirmação da sua lusitanidade, têm em relação aos europeus loiros e de olhos azuis. A verdade é que o nosso “chefe” debitou (em inglês) uns lugares-comuns sobre a construção de mesquitas em solo europeu e foi muito aplaudido. Ou, pelo menos, assim parece, num vídeo publicado no canal do seu partido no YouTube.

Para quem torne a duvidar do carácter extremista do AfD, não é segredo nenhum, na Alemanha, que o partido conta, nas suas fileiras, com elementos do antigo NPD, esse, sim, assumidamente nazi. E, de vez em quando, surgem exemplos, indicando as suas verdadeiras tendências. O seu líder revelou, recentemente, os planos que tem no caso de chegar ao poder na região de Turíngia e, para a educação, deu a entender que irá determinar que as crianças com deficiência seriam proibidas de frequentar as escolas do ensino regular. Gerou uma onda de protestos dos outros partidos. Este é um tema muito sensível, na Alemanha, pois, como se sabe, o regime nazi era muito discriminatório, nesta questão, chegando a aplicar a eutanásia em pessoas com deficiência.

O chefe do AfD em Hamburgo causou igualmente perplexidade, numa entrevista de Verão, ao defender a construção de uma qualquer barreira à volta de um centro de apoio a viciados em droga, a fim de os esconder dos turistas. Esse centro situa-se perto da Estação Central de Hamburgo e, na sua opinião, os visitantes da cidade têm o direito de não serem incomodados com a visão da “miséria” (já agora, digo eu, escondam-se igualmente os pobres e os pedintes). Estas declarações chocaram ainda mais, pois havia a ilusão de que os representantes do partido, em Hamburgo, teriam princípios mais democráticos do que os seus colegas do Leste.

Também o aumento do anti-semitismo, neste país, é motivo de preocupação. A extrema-direita, incluindo a alemã, é cada vez mais aceite e ganha adeptos. Os partidos dos vários países unem-se. Mesmo o nosso representante, como vimos, já é “tu cá, tu lá” com a versão branqueada dos nazis. E, se os partidos crescem, nada mais nos resta do que aceitar a escolha popular.

Que seja! Pergunto-me, sobretudo, se esse camaradismo a nível europeu continuaria, caso os partidos chegassem ao poder. Não me custa imaginar uma guerra entre a Alemanha e a França, pela liderança da “nova Europa” (sim, que a Le Pen tem pêlo na venta e não se deixava ficar). E, se o VOX chegasse a um qualquer acordo com o vencedor da disputa, Portugal seria, finalmente, uma província espanhola. O nosso “chefe” com muito gosto se subjugaria, em nome de uma qualquer segurança, ou de uma sociedade limpa de misérias e de teorias inclusivistas.

O espelho das nossas elites

Sérgio de Almeida Correia, 18.08.23

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Que por esse Portugal fora, e há dezenas de anos, as autarquias têm sido pasto fértil para a produção das nossas elites políticas, não constitui facto novo.

Que, muitas vezes, os respectivos titulares têm estado envolvidos em múltiplos casos judiciais, de má gestão de dinheiros públicos, de clientelismo, nepotismo, compadrio, favorecimento de familiares e amigos, e em milhares de investigações e processos de natureza criminal, que vão do abuso de poder ao peculato, à falsificação de documentos, ao branqueamento de capitais e à corrupção pura e dura, também não é nada, infelizmente, que seja novo para os portugueses. Tudo isso tem feito parte dos quase cinquenta anos de democracia que levamos.

Também é verdade que alguns autarcas, e muitos deles praticamente desconhecidos, têm feito trabalho exemplar nas autarquias, não raro sem alarido e de modo mais ou menos discreto, junto das comunidades que servem, beneficiando o país e as populações, resolvendo problemas, fazendo o que o Estado centralista e despesista não consegue fazer.

E depois há os outros. E dos outros, de quando em vez, lá se vai sabendo qualquer coisa.

Uma notícia e uma reportagem publicadas hoje na revista Sábado vieram lembrar-nos que para lá do país real, dos que não têm dinheiro para pagar as contas em casa ou suportarem os encargos com a saúde e as escolas dos filhos, há um outro país que vive, literalmente, à pala das autarquias, do "tacho". Há uns que só por serem do partido A ou B têm trabalho e salário garantido, mesmo depois de perderem eleições, e outros que fazem vidas de rico com "salários de miséria". 

No primeiro caso, em Sesimbra, temos o ex-deputado comunista Miguel Tiago, a quem a Câmara continua a oferecer anualmente um contrato de trabalho para prestação de serviços de "assessoria técnica na área do ambiente e desenvolvimento sustentável", à razão de cerca de 3.000 euros brutos por mês. Relata a Sábado que o Miguel foi contratado após "consulta" a três entidades, mas ninguém foi capaz de dizer quem mais foi consultado para prestar esse serviço (p. 20). 

A outra situação é bem mais escabrosa e reveladora da falta de vergonha, do desplante, da dimensão do abuso e dos gostos de novo-rico de alguns servidores da causa pública. 

Repare-se que não tenho nada contra o conforto, o luxo ou o gosto por coisas boas e caras, desde que se tenha dinheiro para elas sem andar a roubar, a esfolar o erário público, a enganar o próximo, ou a abusar da posição que transitoriamente se ocupa, embora considere que a ostentação é exemplo de muito mau gosto, coisa para labregos e laparotos.

Mas mais grave do que os almoços de trabalho – é o que está em causa na reportagem – de Isaltino Morais e seus muchachos (páginas 43 a 46), porque também os há em qualquer latitude, e muitas vezes são imprescindíveis, é verificar que essas refeições ocorrem com uma regularidade impressionante, nos melhores restaurantes de Oeiras e Lisboa, e incluem, pelas facturas a que a revista teve acesso, invariavelmente, quantidades generosas de frutos do mar e da terra, de lagostas a gambas, ostras e refinados presuntos, santola, lavagante, leitão, robalos, peixes-galo, queijos de Azeitão, sushi, sapateiras, caranguejos, camarão-tigre de Moçambique, sem esquecer os muitos gelados para a sobremesa, que ali é tudo gente de alimento, gulosa e lambona.

É natural que quem assim tem necessidade de almoçar para poder trabalhar e resolver os problemas dos outros, por vezes tenha de estar a comer até depois das 20 horas, altura em que pede a conta, e seja obrigado a consumir "saké afrodisíaco", os melhores vinhos, e bebidas espirituosas em quantidade suficiente para que ninguém se esqueça da agenda de trabalho nem do motivo do repasto. 

O resultado, está claro, são refeições de centenas de euros pagas com o dinheiro da autarquia noutros tantos milhares de refeições ao longo de cinco ou seis anos. Um "almoço de trabalho" a mais de 140 euros por cabeça não é um almoço de trabalho. É um "banquete de trabalho". Daí que se veja como normal que uma vereadora se tenha alapado com 450 refeições, o presidente, o chefe de gabinete, o vice-presidente e uma adjunta com cerca de 300 refeições cada um, e até o antigo secretário de Estado da Cultura do poupado Passos Coelho, Barreto Xavier, se alambazou com 77 refeições de 2019 para cá.

Evidentemente que a inclusão de tabaco na conta (charutos?) foram "lapsos", a corrigir oportunamente, mas fico com dificuldade em perceber como é possível arranjar apetite para se chegarem a fazer quatro, três e até dois almoços no mesmo dia! As facturas não devem mentir. 

Onde é que aquela gente "enfiará" tanta comida? Ou será que aproveitam para levar alguma para casa para depois convidarem os amigos e distribuírem à família e aos vizinhos?

Confesso, todavia, que o que me faz mesmo mais confusão é a lata desta malta, pois que a maioria se não estivesse nos lugares em que está não seria com os seus ordenados de "políticos" e de funcionários públicos remediados que ao longo de anos encheriam as suas vistosas protuberâncias com tais iguarias. 

Porque não seria, certamente, com os "salários de miséria" que se poderiam dar ao luxo de terem tantos almoços de trabalho, a ponto de haver necessidade de em três facturas de outras tantas refeições, a cerca de 300 euros cada, se ser obrigado a rabiscar no verso "Saladas Sr. Presidente", sinal de que nesses dias Sua Excelência estaria de dieta, ou, quem sabe, ainda a recuperar do almoço de trabalho do dia anterior.

Sempre ouvi dizer que quem não tem dinheiro não tem vícios. E que a discrição é uma virtude, até para não se ofender ninguém. Mais a mais quando se ocupa um cargo público. E que há que respeitar os sentimentos dos outros, por vezes, também, a desgraça alheia, pois que nem todos têm a mesma sorte na vida. Mas pelos exemplos que diariamente nos chegam das nossas elites políticas e empresariais não terá sido essa a cartilha de muitos.

O juiz Carlos Alexandre, exemplo que também me pareceu extremo e de muito mau gosto para o ter confessado a um jornalista, atenta a sua posição no universo dos profissionais pagos pelo Estado, ainda que com estatuto especial, pode não ter dinheiro para mudar a fechadura da porta de casa depois de ter sido visitado por desconhecidos mais do que uma vez. E muitos mais haverá como o tal juiz, por Portugal fora, que não só não têm para a fechadura como para comer decentemente e alimentarem os seus filhos. O que constitui uma tragédia que a todos nos envergonha. Porém, para alguns autarcas, pese embora esse universo desigual e a necessidade dos outros portugueses terem de partilhar com eles o mesmo país, não há-de faltar o Pêra Manca e o lavagante à custa das autarquias, isto é, dos outros e dos impostos que estes pagam. Não era preciso serem como o miserável do Botas ou como o Cunhal, mas fossem muitos deles a pagar do seu bolso e continuariam nos croquetes, nos bitoques e nas febras.

E não interessa se trabalham muito ou pouco; não é isso que está em causa.

Podem ter bom gosto, e ultimamente mais caro e refinado, que serão sempre uns pacóvios e umas deslumbradas que dão mau nome às autarquias, à classe política em geral, sempre à espera de uma oportunidade para se armarem em finórios. E que são, por muito que nos custe, o espelho das nossas miseráveis e ignorantes elites.

Uma democracia consolidada, sim, é verdade; não deixando de ser um país de isaltinos, de venturas e de "só-cretinos". 

Lost in Fuseta "reloaded"

Cristina Torrão, 14.08.23

E a saga continua.

Já lá vão quatro anos (6 de Julho de 2019), desde que falei, pela primeira vez, dos "Portugal-Krimis".

E está quase a fazer um ano (9 de Setembro de 2022) que escrevi sobre a criação de uma série televisiva, baseada num desses policiais em língua alemã, mas tendo Portugal como cenário.

Lost in Fuseta.jpg

Recordando: o investigador alemão Leander Lost, com o síndrome de Asperger, é colocado na Fuseta. Nesse postal de 2022, dei a minha opinião sobre os dois episódios, passados no ARD, o primeiro canal alemão. Agora, soube pela comentadora Manuela Regueiras que a RTP 2 os transmitiu no passado fim-de-semana. E, como o Pedro Correia me informou, muita gente, à procura de informações sobre a série, aterrou aqui no Delito.

Gostei de saber.

Para quem viu a série: espero que tenham apreciado.

Há sempre alternativa

Pedro Correia, 08.08.23

1º GOVERNO CONSTITUCIONAL DE PORTUGAL.jpeg

Ramalho Eanes empossa Mário Soares como chefe do I Governo Constitucional (1976)

 

Recordo que em 47 anos de Estado de Direito, na vigência da actual Constituição, já houve:

- Governos minoritários PS

- Governo PS-CDS

- Governos de iniciativa presidencial

- Governos AD (PSD-CDS-PPM)

- Governo PS-PSD

- Governo minoritário PSD

- Governos maioritários PSD

- Governos PSD-CDS

- Governos maioritários PS

- Governo minoritário PS com apoio parlamentar PCP+BE

 

Ementa variada.

Em democracia, felizmente, há sempre alternativas. Por mais que isso possa baralhar algumas boas almas.

Ouvir e reflectir

Sérgio de Almeida Correia, 03.08.23

Tenho-o criticado algumas vezes, não tanto pelo que diz ou faz em relação à política nacional, mas pelas desgraçadas declarações que proferiu em matéria de direitos humanos, em relação à RPC e a Macau, nomeadamente na(s) comissão(ões) parlamentar(es) a que pertenceu na Assembleia da República, num seminário e numa visita que fez àquele país. Admito que, embora seja pouco crível, que tivesse sido mal aconselhado, que fossem momentos de muita infelicidade, que estivesse rodeado pelas pessoas erradas – o que seguramente aconteceu em Macau com alguns com quem confraternizou –, ou que se tivessem servido dele sem que de tal se apercebesse. 

Mas isso não o impede, nem a qualquer outra pessoa decente e com bom senso, de se aperfeiçoar, de se informar, de melhorar, de afinar a mira e corrigir o tiro. E também não retira mérito a algumas das intervenções que tem feito sobre outras matérias, talvez até menos consensuais na sociedade portuguesa.

A intervenção que Sérgio Sousa Pinto, o deputado socialista, aqui sim com toda a propriedade, fez há dias na Associação Comercial do Porto merece ser ouvida, mesmo por quem em regra possa não concordar com ele, relativamente ao que diz em relação à nossa democracia, à acção do Estado, aos partidos políticos, ao nível do parlamento que integra, ao recrutamento das elites, ao exercício de cargos políticos, enfim, sobre toda uma série de coisas sobre as quais há muito se escreve e todos falam sem que nada de relevante aconteça, sem que seja dado um forte abanão – não me refiro ao que o Presidente Marcelo fez ontem ao Papa Francisco, sem que este lhe fizesse mal algum, no Aeroporto de Figo Maduro – nas estruturas necrosadas do regime democrático.

Não se admirem com a extensão do vídeo. Vale a pena ouvir e reflectir sobre o que ele diz.

Do proibicionismo militante

Pedro Correia, 31.07.23

Nação.jpg

 

Nação, palavra proibida de Janeiro a Dezembro. E que só ressuscita três dias por ano, a propósito do chamado debate do Estado da Nação (adaptação lusitana do original norte-americano State of the Union).

Caída a cortina parlamentar, voltamos ao proibicionismo militante. Nação, termo interdito. Remetido para o segundo verso do Hino, só entoado em três ou quatro estádios de futebol.

Fala-se de país (pequeno), de Estado (grande), de lugar, de rectângulo. De sítio, de coisa. Até de choldra. Como se fossem sinónimos. Como se fossem termos mais apresentáveis para nos designar.

Mas não são.

Portugal em sintonia com a Europa

Paulo Sousa, 25.07.23

A jornalista Teresa de Sousa escreve ao Domingo no Público. Partilho aqui alguns excertos do seu último artigo.

 

“Em 2008, antes da crise financeira, o PIB da zona euro (que inclui 20 países, entre os quais as maiores economias) a preços correntes era ligeiramente inferior ao dos EUA. Hoje o PIB americano está a aproximar-se do dobro do conjunto desses países europeus.
(…)
Hoje, o rendimento per capita dos países da EU é inferior aos de todos os 50 estados norte-americanos, incluindo o Idaho ou o Mississipi.
(…)
O modelo social europeu é caro. O crescimento é um factor determinante para a sua sustentação, sobretudo quando somos confrontados com o envelhecimento das populações.
(…)
E, no entanto, o discurso económico europeu está estranhamente distante da ambição de regressar às taxas de crescimento mais altas.
(…)
Isso exige outras políticas e outras atitudes. A primeira das quais é deixar de lado o discurso de auto-satisfação.
(…)
Das 30 melhores universidades do mundo, segundo o ranking de Xangai e do THE (Times Higher Education), só há uma europeia continental e três britânicas.”

 

Há dias, o ranking das universidades e a forma como se pode lidar com os seus resultados, foi referido aqui no blog. As reacções da maioria são idênticas às dos que acham que o crescimento económico resulta das boas intenções dos governantes e da imensidão de leis que conseguem produzir. A auto-satisfação, referida no texto, é uma forma de negação e encaixa como uma luva na narrativa que sustenta uma certa forma de estar na política, em Portugal e não só. Não existem  impossíveis que um mentiroso não consiga garantir.

Se os resultados não são agradáveis, ajuste-se a fórmula do cálculo de ranking e se, ainda assim, o sucesso insistir em mostar o seu mau-feitio, acabem-se então com os exames.

À nossa capacidade e consistência em manter Portugal na cauda dos rankings positivos europeus (não importa quais os adversários, acabaremos sempre por ficar no pódio de baixo), deve ser acrescentado o detalhe de que é também a própria União Europeia a afundar-se nas comparações entre blocos económicos.