Olha, a Vidal voltou a escrever no DELITO
Em nome do Pai?
Sr. Padre Gonçalo Portocarrero de Almada, li o seu artigo no Observador e fiquei estupefacta. Pior, fiquei irritada, coisa que vou procurando evitar porque preciso de poupar as minhas energias para o que realmente interessa, e este somatório de patetices paternalistas e contraditórias não devia merecer-me nem o levantar de uma sobrancelha. Mas infelizmente sou curiosa e fui lendo, sem querer acreditar no que lia mas à espera de ver até que ponto iria o delirante disparate.
Repare, eu não me sinto minimamente ofendida pelas suas palavras. É-me impossível respeitar quem não argumenta seriamente, sem sequer ter o respeito mínimo, nem pelas mulheres nem pelos homens, de considerá-las/os inteligentes. Quem acha que umas patacoadas aparentemente bem dispostas e sem qualquer fundamento são o "bacalhau basta" para que elas fiquem a sentir-se muito elogiadas e eles complacentes, de sorriso cúmplice e travesso, não pode ser levado a sério.
Ainda assim, gostaria que me respondesse a algumas perguntas. Vamos por partes, como diria Jack, o estripador (vê como também consigo ser “bem disposta”?).
1. Sabe, realmente, o que significa a palavra “feminismo”? Não me parece que saiba. É a procura e garantia de paridade, de rigorosa igualdade de direitos para “as duas modalidades do género humano”, para usar as suas próprias palavras. Ora, pretende justificar que Deus é feminista (essa extraordinária confidência que Deus parece ter-lhe feito ao ouvido numa noite especialmente iluminada) afirmando em todo o seu texto a superioridade de uns e a inferioridade de outros?
Na sua religião (a Igreja Católica Apostólica Romana) verifica-se essa rigorosa paridade? Se sim, dê-me, por favor, alguns nomes de Papisas, cardeais*, bispos* e padres* do género feminino (*para estas palavras creio que nem sequer existe o equivalente feminino) que a provem. Ou será que Deus é feminista mas a ICAR (produto dos homens) não cumpre, afinal, as directrizes do Seu legado?
2. “É óbvio que Deus tem um fraquinho forte pelo sexo fraco”, diz o Sr. Padre. Outra contradição: ou sustenta que as mulheres são o sexo fraco ou que são seres superiores aos homens, de tão “beneficiadas” que foram por Deus, como todo o seu texto pretende provar. As duas teses é que não me parecem conciliáveis. Ou será que “o sexo fraco” se refere apenas ao ínfimo pormenor da força física, sendo que nem mesmo esse é inquestionável?
As mulheres são mais bonitas do que os homens? Essa agora. Quem garante isso? É a sua opinião indiscutível ou a de Deus, seu confidente privilegiado? “Também foram beneficiadas na idade madura porque, quando eles começam a ficar calvos, elas, pelo contrário, ainda penteiam fartas melenas que, diga-se de passagem, fazem as delícias e o lucro de muitos cabeleireiros e a inveja de muitos carecas”. Desculpe, aqui tenho mesmo de perguntar-lhe: está a gozar com o pagode?
3. Não contesto o privilégio que é ser mãe, sinto-o desde que o fui e enche-me de felicidade. Mas é também, ninguém pode negá-lo, uma carga tremenda em quase todas as sociedades desde há muitos séculos, carga essa que as mulheres suportam sozinhas, ou quase, na maioria das vezes. E que as conduz a inúmeras situações de injustiça e discriminação, inadmissíveis mas generalizadas, no mundo do trabalho e não só. E, portanto, que faz com que esses seres “infinitamente superiores e beneficiados por Deus” sejam, afinal, tratados pelos homens como se fossem exactamente o oposto.
4. “Até o diabo está de acordo com Deus. Quando o demónio quis perder o género humano, tentou primeiro a mulher, Eva, porque sabia que ela depois se encarregaria de fazer pecar o homem”. Ah, pois. Assim se justifica muito convenientemente, desde sempre, a inocência crédula do homem – coitadinho, não percebeu nada do que estava a fazer – e a astúcia ardilosa da mulher, essa megera espertalhona que o domina sempre em favor do Mal. Belo alibi, de facto. Deste estigma muito “feminista” (deixe-me rir, sim?) deriva o sentimento de culpa que as mulheres carregam desde que nascem.
5. A palavra “virgindade” aplicada a Maria ao conceber um filho sem contacto carnal, não consensual nos Evangelhos e há muito questionada por haver quem defenda tratar-se de um erro de tradução da Bíblia do aramaico para o hebraico, e penso que nem sequer sendo um dogma da Igreja (não sou especialista na matéria, aceito correcções de bom grado), é tudo menos um prémio para as mulheres. Porquê? Porque nenhuma mulher humana estará nunca à altura de tal prodígio – a não ser com os novos meios de fertilização, mas nem esses dispensam a participação de um homem, mesmo sem contacto directo – o que a deixa numa situação de inferioridade, de ficar irremediavelmente “aquém” de Maria, o ideal de Mãe. Para já não falar da inevitável associação das relações sexuais a qualquer coisa de sujo, de pecaminoso.
6. O seu parágrafo seguinte é quase pueril, de tão fácil de desmontar. Dá-nos um rol de homens que traíram, negaram, condenaram, flagelaram e crucificaram Jesus, e outro de mulheres que o choraram e lhe limparam o rosto ou que intercederam por ele, no caso da mulher de Pilatos. O que aconteceu foi, simplesmente, que todos eles fizeram o que estava ao seu alcance na hierarquia do poder, o papel que lhes cabia na sociedade. Cite-me, por favor, os nomes de apóstolas que estiveram à mesa com Jesus na última ceia. Os nomes de imperadoras, membros femininos do Sinédrio, altas dignitárias e até de mulheres com carreira militar que existiam à época no império romano? Quem tomava as decisões? Quem servia, limpava, lavava e executava todas as tarefas domésticas? No máximo, no caso a mulher de Pilatos, o poder das mulheres de homens influentes limitava-se aos bastidores.
7. Finalmente, a ideia peregrina de que o sacerdócio foi reservado aos homens pelo próprio Jesus Cristo (onde está isto escrito, se Jesus não deixou uma única linha escrita pela sua mão?) não como um privilégio, mas como um “prémio de consolação” por serem inferiores. Admitindo a estapafúrdia hipótese de isto ser verdade, que sentido faria Jesus Cristo entregar às menos capazes das suas criaturas a enorme responsabilidade de propagar e defender a sua doutrina? Juro que nunca me passou pela cabeça ouvir (ou ler) um argumento tão inacreditavelmente absurdo. Quem pode, repito, levar isto a sério?
8. Uma última nota, relativa às roupas. Desde a antiguidade, ao longo dos tempos e respectivas modas, capas e vestes longas sempre foram usadas tanto por homens como por mulheres (valha-nos essa única antiga paridade). O que G.K. Chersterton se esqueceu de notar foi que também as mulheres começaram a usar calças após a revolução industrial, pondo-se generosamente ao nível dos seres “inferiores”.
Eu não sei se Deus existe. Admito que exista, ou não. Gostaria muitíssimo de poder dizer convictamente que sim, que existe e me protege de todo o mal. De ter fé suficiente para aceitar dogmas sem questioná-los, sem lhes procurar a origem e a explicação. De ver em absurdos, hipocrisias e injustiças flagrantes, sagradas sentenças sobre as quais não precisamos de reflectir nem ter opinião. Mas não sou assim, e quase me apetece dar graças a Deus por isso, por mais contraditório que pareça. No entanto, gosto de considerar-me cristã (o que é diferente de ser católica, como sabe muito melhor do que eu), cá pelos meus motivos. Acredito que Jesus (Cristo ou não) deixou aos humanos uma mensagem de Amor que não exclui ninguém, nem sequer os inimigos. Uma mensagem de uma originalidade insuperável, corajosa, revolucionária e dificílima de praticar. Amai-vos uns aos outros. Tão difícil que tudo ou quase tudo foi deturpado por esses mesmos humanos. Incluindo eu, que não me considero melhor do que ninguém.
Mas, por favor, não me chamem idiota com textos destes.
* Texto da "nossa" Ana Vidal no Facebook a propósito deste artigo lamentável.