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Delito de Opinião

Os rótulos fáceis do jornalismo preguiçoso

Pedro Correia, 13.12.23

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A SIC fez esta estrondosa descoberta: 56% dos eleitores argentinos são de "extrema-direita". Eis uma demonstração prática de jornalismo preguiçoso - aquele que se apressa a pôr rótulos na política e varre contextos, circunstâncias e questões concretas para debaixo do tapete. Neste caso, vale a pena lembrar que a Argentina já foi um dos países mais ricos do globo: em 1912 tinha a nona economia mundial, à frente de países como Alemanha, França e Dinamarca.

Nos últimos anos os rótulos mais frequentes desta subespécie de jornalismo são "populista" e "extrema-direita". Sem nunca haver os respectivos contrapontos. O que define a diferença entre um populista e um não-populista, por exemplo.

Será não-populista o governo peronista que terminou funções com o país mergulhado em 143% de inflação anual, uma moeda que perdeu 99,2% do valor face ao dólar nos últimos 20 anos e quatro em cada dez argentinos em situação de pobreza nesta que já foi a mais próspera nação da América do Sul?

Se proliferam os extremistas de direita, onde andam os extremistas de esquerda, suas réplicas do campo oposto?

Faz sentido designar 56% dos eleitores como extremistas, seja qual for a ideologia política que estiver em causa?

O jornalismo preguiçoso não responde a nada disto. Nem esclarece como é que um ultraliberal, como o recém-empossado Presidente argentino, Javier Milei, pode ser catalogado de "extrema-direita" e até rotulado de fascista quando o fascismo proclama a existência de um Estado forte e este economista, pelo contrário, quer um Estado mínimo. Consciente - mal ou bem - de que na Argentina, nove bancarrotas depois, o aparelho estatal não faz parte da solução, mas do problema. 

 

Hoje, mais que nunca, não há "direita". Há direitas. Meter no mesmo saco os herdeiros ideológicos do marechal Pétain e os herdeiros ideológicos do general De Gaulle, só para mencionar duas figuras históricas da direita conservadora, nacionalista e até reaccionária que se combateram entre si em França, é grave erro de análise. Tal como, por exemplo, meter Giorgia Meloni e Milei na mesma gaveta. A verdade é que Milei acaba de derrotar nas urnas os discípulos ideológicos de Juan Domingo Perón, esse sim um fascista clássico (e amigo de nazis).

Casos diferentes que devem ser analisados não como amálgama, antes como sintoma generalizado dum protesto difuso com aspectos comuns mas motivações tão diversas que escapam a rótulos simplistas. E têm igualmente erupções à "esquerda", como ocorreu em 2015 na Grécia, com a vitória eleitoral do Syriza

A dicotomia partidos velhos versus partidos novos está hoje presente nos cenários eleitorais um pouco por toda a parte. Isto tem a ver com dinâmicas históricas e crises sociais: nenhuma etiqueta pronta-a-colar a explica.

 

A verdade é que os partidos e os próprios sistemas políticos, tal como as pessoas, também envelhecem.

Em Portugal, não por acaso, do vetusto PPD/PSD já emergiram três novas forças políticas na última década. Impulso de regeneração de um sistema que gera anticorpos: nuns casos resulta, noutros nem por isso. Resultou em proporções diferentes, e até ver, com a erupção do Chega e o nascimento da Iniciativa Liberal. Não resultou com a efémera Aliança do evanescente Santana Lopes.

Acontecerá o mesmo ao PS quando passar à oposição.

Isto ainda acaba tudo numa churrascada com ovos moles à sobremesa

Sérgio de Almeida Correia, 14.11.23

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(créditos: Tiago Petinga/LUSA)

Já era de esperar. À ameaça sucedeu o anúncio. A concretização chegou à hora marcada com a formalização da candidatura de Pedro Nuno Santos à liderança do PS.

O ex-ministro, enfant terrible da jotinha socialista, o terror dos banqueiros e da troika, e qualquer dia também dos justiceiros do Ministério Público e dos juízes de instrução criminal, há muito que não conseguia esconder a sua ansiedade por este momento. Fico satisfeito por ele. Depois do anúncio da localização do novo aeroporto, em que tanto se empenhou, embora tivesse durado pouco, o rosto maior, e mais alto, do nunismo pode finalmente dar largas à sua euforia e facúndia sem os constrangimentos do costismo. 

Em relação aos melões costuma dizer-se que só se sabe se são bons depois de abertos. Não é o caso do candidato Pedro Nuno Santos. É melão grande e que não engana.

Aqui estamos perante um melão vistoso que se tentou abrir várias vezes e como que por artes mágicas fechava-se de cada vez que o queriam cortar. Ou porque se percebia logo que estava a ser cortado pelo lado mais verde, ou porque a faca tinha dificuldade em entrar, ou porque começavam logo a sair umas sementes com formas curiosas que besuntavam tudo e mais ninguém queria continuar com a cirurgia. O resultado é que, como não podia ficar ao ar para não se estragar, enfiavam-no de novo dentro do frigorífico, onde já não teria qualquer hipótese de voltar a amadurecer. Esse processo durou vários anos sem que, todavia, à primeira vista, produzisse melhorias substanciais, com excepção de um aumento de pilosidade na casca.

A consequência dessas tentativas de servirem o melão antes do tempo foi que, entretanto, não só não amadureceu como o bom presunto com cura de 40 meses que havia sido oferecido por algumas empresas para lhe servirem de acompanhamento, quando fosse a inauguração do novo aeroporto de Lisboa, acabou devorado por alguns camaradas mais esfomeados na festa de passagem de ano 2022/2023, assim que perceberam que com os Reis chegariam tempos difíceis.

Após sucessivas galambadas e marcelices, eis que trazem de novo o melão para a mesa numa altura em que escasseiam o presunto e as facas. Pois bastou abrirem a porta do frigorífico e o danado do melão rolou pelo chão da cozinha, depois de olimpicamente resistir à queda da terceira prateleira do frigorífico sem se desmanchar no contacto com o soalho. Milagre, é milagre, gritaram em Belém.

A partir daí, logo Francisco Assis doutoralmente filosofou sobre a qualidade do melão e aquilo que ainda se poderia esperar dele, estando eu neste momento convencido de que muitos dos apóstolos que comungaram com José Sócrates, traíram Seguro e enganaram Costa vão aparecer a toda a velocidade para se sentarem na grande mesa corrida onde vão servir o melão aos fedayin que fizeram carreira na JS.

Ninguém sabe se o melão chegará para todos, nem de onde virá o presunto, se de Sines se do Palácio Palmela, mas começaram os empurrões para ver quem consegue chegar primeiro aos bancos onde se vão sentar os elementos do novo Secretariado. Mais os cônjuges, os filhos, os enteados, as noras, os primos, os netos e os vizinhos.

Enquanto isso, José Luís Carneiro, ciente de que os portugueses estão cansados de tanto melão, tantas foram as vezes em que lhes saíram uns exemplares farinhentos e com sabor a robalo, está a tratar de ver se consegue arranjar uma equipa capaz de preparar umas saborosas pataniscas de bacalhau, sequinhas, sem o óleo daquela mercearia do Largo do Rato onde ultimamente se têm abastecido, acompanhadas por um arroz de tomate malandrinho, a fugir pelo prato, que sem grande cozedura permita aproveitar um dos vinhos correntes e populares que o autarca Isaltino prometeu oferecer ao próximo secretário-geral do PS.

Neste momento ninguém sabe qual dos dois, se Pedro Nuno Santos ou José Luís Carneiro, acabará no Master Chef a mostrar os seus talentos ao provador de vichyssoises, acompanhado pelo candidato que virá do Ribadouro – e anda em todo o lado a prometer, à pala de Marques Mendes, camarão de Espinho e postas mirandesas à fartazana sem encargos para o pessoal –, mais o liberal das lampreias, o pirilampo rabeador do Algueirão, a padeira bloquista e o camarada dos paios alentejanos.

Na verdade, essa ignorância em que os portugueses estão não traz nada de novo. E tem um lado positivo, para além do de colocar os banqueiros, e não só os alemães, a tremer. É que se no fim o melão for intragável, não houver camarão, lampreia, doçaria de feira, queques ou broa para todos, o melhor será escreverem ao Secretário-Geral da ONU, que nos deixou à guarda de um infantário em autogestão, com a lotação esgotada, onde os cães alçam a perna em qualquer lugar sabendo que gozam da protecção do PAN, e não há limoeiro que escape, para ver se o cavalheiro arranja algum sítio, mas longe da Urbanização da Coelha, onde nos possam acolher e preencher as declarações do IRS. Com tudo a zeros.

Besteira mesmo

Sérgio de Almeida Correia, 13.09.23

Em Fevereiro de 2000, o Brasil assinou o compromisso de adesão ao Tribunal Penal Internacional, cujo estatuto foi depois publicado e entrou em vigor na ordem interna brasileira pelo Decreto 4388, de 25 de Setembro de 2002, assinado pelo então Presidente Fernando Henrique Cardoso. Ou seja, há mais de 20 anos que o Estatuto de Roma se aplica no Brasil.

Entre 1 de Janeiro de 2003 e 1 de Janeiro de 2011, Lula da Silva foi presidente do Brasil. E este ano voltou a tomar posse para um novo mandato.

As declarações que proferiu, ignorando o princípio da separação de poderes e o Estado de direito, e as dúvidas que levantou, não só não dignificam o Presidente da República Federativa do Brasil, como o diminuem, bem como ao país, passando uma versão cada vez mais básica e atrozmente ignorante de quem ascendeu ao cargo.

A adesão ao TPI não é uma questão de "Maria vai com as outras". E não é pelo facto de outros não aderirem, por razões egoístas e de puro e recalcado nacionalismo, que deve orientar as escolhas racionais de estados soberanos civilizados que respeitam o Direito Internacional Público.  

O chorrilho de inanidades que tem vindo a ser debitado por Lula da Silva, que ainda não está senil, começa a parecer acompanhar o nível dos seus amigos Maduro e Putin; mas o mais grave nem é isso.

O pior é o Brasil ter-se libertado do cabo de esquadra Bolsonaro, visando recuperar a sua dignidade e o respeito internacional, e para isso reelegeu Lula da Silva, para se colocar agora, quase diariamente, na esquina errada da democracia, dos direitos humanos, do conhecimento, da civilização, do progresso e do desenvolvimento, enveredando pela mais aberrante a aterradora das versões populistas.

Não sei o que Lula deve ao ditador e facínora Putin, mas mais de duzentos anos após ter conquistado a sua independência, o Brasil não merecia tão grande enxovalho.

Vitaminas para o autoproclamado quarto pastorinho

Paulo Sousa, 30.05.23

Depois de, por afirmações de João Galamba (ministro que merece toda a confiança do PM), termos ficado a saber que o mesmo contactou o secretário de estado adjunto do PM para solicitar a intervenção do SIS, continuamos a aguardar pela confirmação disso mesmo por parte de António Costa ou por Mendonça Mendes. Esta dupla de governantes recusa-se ferreamente a qualquer declaração sobre este assunto.

Eu gostava de lhes perguntar o seguinte:

- Têm V.exas. consciência de que, ao optarem por não prestar explicações sobre a vossa actuação no já tão debatido episódio da intervenção do SIS estão a alimentar o desapontamento de quem quer acreditar nas instituições, de quem quer acreditar na responsabilidade política e na lisura de procedimentos, e dessa forma estão a promover as abordagens mais radicais que ameaçam a saúde da democracia?

Cebolagate

Paulo Sousa, 13.03.23

Há dias chegou-me à mão a publicação “Ecos do Século XX – Distrito de Leiria” editada pelo Jornal de Leiria. É um documento de grande importância histórica e que já vai sendo difícil de encontrar. Foi publicado em fascículos, um por cada década, ao longo do ano 2000.

A sua elaboração foi o resultado do trabalho do jornalista Damião Leonel, desaparecido há pouco tempo, e que foi ele próprio uma personagem invulgar e merecedora de ser lembrada.

Numa das páginas, dedicadas ao ano 1919, surge a seguinte nota:

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Em tempos de crise, a inflação e o açambarcamento de víveres, com ou sem falcatruas de variada ordem, são fenómenos antigos. O estado, na notícia corporizado pela Câmara Municipal, intervém para salvaguardar o interesse público e limitar os prevaricadores. O público concorda e revê-se nas medidas contra os abusos. É também para isso que o Estado existe e, sim senhor, fizeram muito bem.

Regressando à actualidade, soubemos pelas notícias que as fiscalizações da ASAE detectaram, por exemplo na cebola, margens de lucro superiores a 50%. Perante tal ignomínia, dei por mim a questionar-me sobre os valores que estavam em causa.

Olhando para os preços praticados por um distribuidor de referência, calculei um preço médio de venda ao público da cebola de 2,40€/kg.

O primeiro valor de média que obtive era bem superior e por isso excluí do cálculo as referências mais caras, por estimar que tenham menor peso no consumo global. Só por aqui já se poderia classificar o método a que recorri de diversas formas, mas nenhuma onde a palavra "rigor" pudesse fazer parte. Mas, adiante.

Ora:

Quando falamos num preço de venda do público (PVP) de 2,40€, estamos a falar em 2,264€ de mercadoria, acrescido de 6% de IVA.

Se 2,264€ é o PVP sem iva e se este valor resulta de uma margem comercial do 50%, podemos calcular que o custo de aquisição da cebola para o supermercado é de 1,509€.

Não nos podemos esquecer que, tal como acontece em todos os produtos hortícolas, a cebola é um produto perecível, e por isso os quilogramas adquiridos pelos supermercados não são exactamente os mesmos quilogramas vendidos. Existe desperdício e isso tem de ser considerado.

Então qual seria a margem de lucro aceitável para a distribuição? Considerando o já referido desperdício e assegurando o normal funcionamento do estabelecimento, arrisco que uma margem razoável ronde os 30%.

Existe quem não aceite que possa haver lucro, quem pense que os supermercados não têm de pagar salários, electricidade, água, seguros, limpeza e higiene, não têm de cumprir as exigência imposta pelas normas HCCP, não têm de dar formação obrigatória aos funcionários, não têm de disponibilizar equipamentos individuais de protecção, de pagar taxas e licenças variadas (i.e. licença paga à SPAutores pela música ambiente), de suportar manutenção de equipamentos de frio, de elevadores, de equipamentos de carga, todo isto acrescido de impostos vários e derrama. Esta não é uma lista exaustiva pois estou certamente a deixar para trás muitas parcelas de despesas operacionais de um supermercado.

Para os mais desligados destes cálculos, os naïfs que por ignorância e alienação acham que a abundância nas prateleiras resulta de uma ordem sobrenatural inabalável, para esses, e com uma risada de escárnio, designarei estes 30% com Margem Moral Máxima – MMM. É uma boa sigla que merecia passar a constar nos manuais de micro-economia.

Assim temos:

Preço de custo da cebola: 1,509€/Kg

Preço MMM: 1,962€/Kg

Preço verificado: 2,264€

E assim chegamos a uma diferença entre o preço moralmente aceitável e a realidade de 0,302€/Kg.

Consideremos então os dados divulgados pelo COTHN Centro Operativo e Tecnológico Hortofrutícola Nacional, o consumo médio anual de cebola em Portugal é de 13Kg/per capita.

Assim teremos:

13kg/per capita x 10 milhões habitantes = 130 000 000 kg

Valor do escândalo do preço da cebola, o cebolagate = 39,26 M€.

Importa referir que no ponto de vista da AT existe ainda outra diferença:

Iva arrecadado aplicando a MMM: 15,3 M€

Iva arrecadado com o preço verificado: 17,66 M€ (= receita fiscal adicional de 2,36 M€)

Total desembolsado a mais pelos consumidores = 39,26 M€ + 2,36 M€ = 41,62 M€. (4,162 €/per capita)

Termino assim comparando estes escandalosos e inaceitáveis valores com um “aceitável investimento”.

- O escândalo da cebola custa a cada português 4,162 €.

- O "investimento estratégico" “não reembolsável” na companhia das caravelas portuguesas do século XXI custa a cada português 340€.

Os responsáveis pelo referido "investimento estratégico", muito se alegrarão que o cebolagate tenha o máximo de atenção possível.

Adenda:

Entretanto, e a partir dos relatórios de contas da Sonae (Modelo e Continente) e da Jerónimo Martins (Pingo Doce e Recheio), divulgados numa notícia do Jornal Eco, podemos observar que estes dois operadores do mercado de distribuição alimentar reduziram as suas margens de lucro nos últimos anos.

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Gráfico: Jornal Eco

Destaco ainda o seguinte excerto:

"Fica apenas a faltar nesta equação o Estado, que atua no mercado através da carga fiscal que aplica sobre os bens de consumo através do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA). E de todos os intervenientes na cadeia de valor, o Estado foi o único que não fez qualquer alteração na sua margem de lucro:não baixou nem reviu o IVA sobre os bens alimentares básicos, como fez Espanha, nem parece ter intenção de o fazer. E o resultado da inação por parte do Estado é bem visível nas suas contas."

Ainda sobre este assunto, termino com a recomendação do programa Conta-Corrente, que mereceu o título: "ASAE não foi fiscalizar preços, foi fazer política".

Novamente o Iluminismo

Paulo Sousa, 21.11.22

No final de 2020 postei aqui sobre este livro. O Iluminismo Agora, de Steven Pinker, é uma obra que nos permite observar a actualidade de uma forma menos pessimista. Toda a obra assenta na observação de dados estatísticos e, a partir deles, procura conclusões que, na generalidade, contrariam a percepção pessimista que corre nas veias de quem acompanha a actualidade.

É muito provável que ao folhear o livro, observando os seus gráficos e a relação que o autor estabelece entre eles, mesmo os deploráveis deste mundo, possam ver uma realidade que vai para além do pessimismo que os faz procurar nos populistas resposta fáceis e simples, mas que não são mais do que respostas contra-iluministas.

As limitações da nossa memória restringem a percepção que temos dos ciclos temporais. Sem um pouco de história, é fácil alinhar em explicações e soluções fáceis para o que não está bem.

O autor diz-se motivado a escrever o livro para nos lembrar alguns dons, que tomamos como garantidos: recém-nascidos que viverão oito décadas, mercados a abarrotar de comida, água potável que surge com o estalar de dedos e o desperdício que desaparece com o estalar de outro, comprimidos que curam doenças dolorosas, filhos que não serão enviados para a guerra, filhas que podem andar na rua em segurança, críticos dos poderosos que não são presos ou assassinados, o conhecimento do mundo e da cultura que cabe no bolso do casaco, são todas estas maravilhas, feitos humanos, e recentes.

Os ideais do Iluminismo são produtos da razão humana, mas estão sempre em conflito com outras facetas mais antigas da natureza humana, como a lealdade à tribo, a deferência à autoridade, o pensamento mágico e a culpabilização dos malfeitores pelo infortúnio.

Através do historiador David Wootton, o autor recorda-nos que um inglês culto em 1600 acreditava que bruxas podiam convocar tempestades e afundar navios, acreditava em lobisomens, e que mesmo que não existisse nenhum em Inglaterra, eles podiam ser encontrados na Bélgica, acreditava que o corpo de uma vitima de homicídio sangraria na presença do homicida, acreditava ser possível transformar metal comum em ouro, acreditava que o arco-íris era um sinal de Deus e que os cometas eram presságios do mal e, obviamente, acreditava que a Terra permanecia imóvel e o Sol e as suas estrelas giravam em seu redor a cada 24 horas. Um século depois, um descendente deste inglês, não acreditava em nenhuma destas patranhas.

Apesar disso foi só no final do Séc. XIX que a esperança média de vida dos europeus ultrapassou os 40 anos. Para os asiáticos e africanos este valor foi apenas atingido após a Segunda Guerra Mundial. Um africano nascido hoje pode esperar uma longevidade idêntica à de uma pessoa nascida na Europa na década de 1930.

A variável mais determinante para o aumento da esperança média de vida é a redução da mortalidade infantil. Na Suécia do séc. XIX, entre os 25% e 30% das crianças não chegavam ao 5º ano de vida. Estes valores não diferem muito do período em que éramos simples caçadores-recolectores. Em menos de um século, os registos mostram-nos que este parâmetro foi reduzido em cerca de 100 vezes.

Sobre a mortalidade materna, o autor refere que há 100 anos atrás, para uma mulher norte-americana era tão perigoso ficar grávida como hoje ter cancro da mama, levando a que esta variável tenha sido reduzida em cerca de 300 vezes.

A evolução das conquistas médicas têm sido igualmente notável.

Segundo um relato médico de uma epidemia de febre amarela em Memphis em 1878, os doentes “rastejavam para buracos com os seus corpos contorcidos; os seus cadáveres eram descobertos mais tarde somente pelo cheiro nauseabundo da sua carne em decomposição. {Uma mãe foi encontrada morta} prostrada na cama… vómito negro como grãos de café espalhado por toda a parte… as crianças enroladas no chão, a gemer”. Nem mesmo os ricos eram poupados: em 1836, o homem mais rico do mundo, Nathan Rothschild morreu com uma infecção provocada por um abcesso. O Presidente americano Harrison adoeceu pouco depois da sua tomada de posse em 1841 e morreu 31 dias depois com um choque séptico. Em 1924, o filho de 16 anos do então presidente Coolidge Jr. morreu por causa de uma bolha infectada que fez a jogar ténis.

No dia 12 de Abril de 1955, uma equipa de cientistas validou a segurança e a eficácia da vacina de Jonas Salk contra a poliomielite. Nesse dia, segundo relato de Richard Carter, “as pessoas observaram momentos de silêncio, tocaram sinos, tocaram cornetas e fizeram silvar as chaminés das fábricas, dispararam salvas de canhão… tiraram o resto do dia para si, fecharam as escolas e convocaram assembleias onde fizeram brindes, abraçaram crianças, visitaram a igreja, sorriram aos estranhos e perdoaram inimigos”.

Estima-se que com a descoberta de Karl Landsteiner, dos grupos sanguíneos, se tenham salvado um bilião de vidas humanas. Com a coloração da água, sugerida por Wolman e Enslow pouparam-se 177 milhões. A lista é extensa e inclui a estratégia de erradicação da varíola, diversas vacinas como a do sarampo, tétano, difteria, tosse convulsa, a invenção da penicilina, entre outras contribuições. O número de vidas salvas ultrapassa muitas centenas de milhões, nos quais facilmente podemos incluir cada um de nós, os que estamos a ler este texto.

Muitos outros apontamentos e estatísticas que reflectem variáveis como a subsistência alimentar, a riqueza, a desigualdade, o ambiente, a paz, a segurança, a igualdade dos direitos, o conhecimento, são igualmente referidos nesta obra, que permite ao leitor termina-la com uma visão diferente do mundo, o que não é nada pouco.

Pessoalmente considero que devia ser lida, ao menos por jornalistas, especialmente pelos que se dedicam à entrevista, pois contém informação válida, capaz de abalar os profetas da desgraça, o que é outra forma de me referir aos políticos populistas. A estatística é o kriptonite contra esses palermas.

 

PS: Muitos dos críticos do livro acabam por não conseguir ser mais do que críticos do seu autor. Preferem debater o mensageiro do que a sua mensagem, o que sabemos ser uma táctica bem antiga.

O iluminismo agora

Paulo Sousa, 26.12.20

O populismo faz parte da actualidade e parece que está para durar. Este movimento político baseia-se num pessimismo sobre o sentido em que o mundo caminha, num cinismo para com a modernidade e na incapacidade de conceber um propósito superior. A razão, a ciência, o humanismo e o progresso, os ideais do iluminismo parecem estar fora de moda. Outras facetas da natureza humana como a lealdade para com a tribo, a deferência para com a autoridade, o pensamento mágico e a culpabilização de malfeitores pelo infortúnio, parecem hoje ser muito mais apelativas. Parece que os países estão a ser arrastados por forças malignas para um paraíso distópico em que a única salvação passará pela resistência inspirada por um líder forte que impulsione o país para trás, para o levar de regresso a um chão conhecido. A modernidade parece ter falhado e a vida encontra-se numa crise profunda. Sem o progresso que temos vivido, os problemas seriam bem mais simples de resolver. O Ocidente está tímido em relação aos seus valores e não tem confiança no liberalismo que o trouxe até aqui.

Mas se observarmos os dados do que somos, e do que fomos, talvez possamos avaliar todo este fenómeno de outra forma.

Este é um pequeno resumo do início do livro “O iluminismo agora” de Steven Pinker que recebi ontem de prenda de Natal.

Os dados comparativos entre a actualidade e o passado não muito recuado são imensos e arrasadores para quem insista em ser pessimista.

Imagino que da leitura deste livro possam surgir alguns textos que aqui tentarei publicar.

A título de exemplo deixo uma representação da evolução da percentagem da população mundial que viva no que descrevemos como sendo pobreza extrema.

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Que denunciantes queremos?

Sérgio de Almeida Correia, 29.01.20

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Ultimamente são muitos os que têm saído em defesa do hacker Rui Pinto. De Ana Gomes a Miguel Sousa Tavares, de Pacheco Pereira a Manuel Carvalho, já sem falar nos seus advogados, em Portugal e no estrangeiro, que aliás mais não cumprem do que o seu papel, são muitas as vozes que querem elevar o estatuto do fulano a um herói, um quase semideus, à espera de ser condecorado pelo Presidente da República e venerado pelos portugueses.

Se há coisa em que os portugueses perdem com facilidade o sentido do equilíbrio, das proporções e do bom senso é quando vêem a turba aos gritos e aos empurrões, altura em que tendem a alinhar com ela, esquecendo o básico.

Gostaria, no entanto, antes de avançar de fazer a minha declaração de interesses, e já agora de simpatias e antipatias, para que as pessoas possam analisar o assunto com a atenção que entendam dar-lhe.

E quanto a este ponto, em poucas linhas direi que desde que me conheço que combato no meu dia-a-dia, pessoal e profissional, a corrupção, o compadrio, o clientelismo, o tráfico de influências, e que desde sempre procurei denunciá-los, existindo algumas largas centenas de textos em que o fiz, independentemente dos riscos e do custo que isso iria ter. E algumas vezes teve. Disso não me queixo. Cumpri. Quero, apenas, acrescentar que não conheço o hacker Pinto de lado nenhum e que tenho estima, simpatia pessoal e até admiração e amizade por alguns dos que agora saíram em sua defesa.

Posto isto, quero deixar bem claro que, em primeiro lugar, a Constituição da República define Portugal como um Estado de direito democrático, subordinado à Constituição e que se funda na legalidade democrática, que o sigilo da correspondência, dos meios de comunicação privada e das telecomunicações é um direito fundamental, e que as autoridades públicas só podem interferir nesses meios se para tal estiverem autorizadas em matéria criminal, sendo “nulas todas as provas obtidas mediante (...) abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”.

Sublinho que estes são, até à data, os princípios que nos regem, os que vinculam o Estado, os órgãos de soberania, os seus titulares, e que foram por todos nós reconhecidos, democraticamente, com ou sem o apoio de cada um de nós enquanto indivíduos, como aqueles em que nos revemos e fundamos a nossa comunidade.

A compatibilização do que aqui temos — não sendo pertinente neste momento estar a aprofundar o mais que consta da legislação vigente, até porque este debate deve ser aberto, acessível e compreensível por todos em termos absolutamente inequívocos, e não restrito a juristas, meia dúzia de entendidos e políticos em geral — com a imperiosa, e desde sempre inadiável necessidade de combate à corrupção e crimes conexos e associados, é o que nos deve mobilizar, mas tal deverá acontecer em termos racionais, deixando de lado a emotividade, a hipocrisia e o populismo em que normalmente os nossos predestinados cavalgam.

Querer transformar quem, primeiro, entrou ilicitamente em redes de comunicações privadas, espiolhou, copiou e guardou o que muito bem entendeu para uso futuro; depois distribuiu como quis parte dessa informação, a coberto do anonimato, a qual entretanto serviu para denunciar e julgar em praça pública quem não se pôde defender; e a seguir aproveitou para tentar, está por apurar se directa ou indirectamente, obter dividendos financeiros dos actos ilegais que cometeu, não me parece que seja suficiente para lhe lavar a alma e transformar um vilão num impoluto campeão do combate à corrupção.

Não está em causa, importa frisá-lo, a gravidade dos factos apurados ou a importância dos documentos divulgados, nem as consequências da sua divulgação pública por parte de quem criteriosamente os investigou para apurar da sua veracidade e actualidade. Há muito que se suspeitava do que foi divulgado, há muito que muita gente desconfiava de tudo o que se veio a revelar através dos documentos, e não poucos foram os que alertaram o Estado português e seus responsáveis, de Cavaco Silva a Passos Coelho, de Durão Barroso a Paulo Portas, de José Sócrates a António Costa, da necessidade de não nos colocarmos de cócoras de cada vez que falávamos com a família dos Santos, respectiva prol e criadagem empresarial, política, militar ou civil, de cá ou de lá.

Também há muitos anos que muita gente assumiu a denúncia e o combate às sociedades offshore como prioritário, e há muito que esses instrumentos deviam ter sido banidos e sujeitos a pesadas sanções. Em Portugal não só não foram banidos como depois disso ainda se alinhou numa política de criação de vistos gold que se nalguns casos correspondeu a verdadeiro investimento, noutros só serviu para ajudar a lavar,  branquear, pagar comissões a quem nada fez e enganar compradores que pagaram preços exorbitantes por imóveis que valeriam um terço do que foi pago.

A propósito das offshore recordo-me, inclusivamente, de ter estado num debate, em Braga, num congresso do PS aí realizado, em que também participaram Ana Gomes, Filipe Brandão Rodrigues, Luís de Sousa, autarcas e muitos outros, em que foram feitas denúncias vigorosas contra as offshore e a inacção do próprio PS sobre essa matéria, tendo havido inclusivamente alguém que lá estava na assistência que desenvolveu explicações sobre o funcionamento em concreto de alguns esquemas em jurisdições offshore, perante o espanto de Ana Gomes, que uma vez mais se interrogou, sem que até hoje tenha havido qualquer mudança ou vaga de fundo para se acabar com essas entidades que servem para dar guarida à bandidagem nacional e internacional que usa colarinhos de todas as cores, formas e feitios, comendo à mesa de reis, presidentes e chefes de governo para parecerem sérios.  

Pelo meio, ao longo de décadas, tivemos em Portugal dezenas de processos em que em causa estava a realização de escuta telefónicas não autorizadas por ordem judicial. Do que me recordo, não houve um único em que, por exemplo, Miguel Sousa Tavares considerasse, e com razão, que se devesse dar crédito a essas escutas atenta a forma invasiva, arbitrária e ilegal como foram obtidas; fosse nos célebres casos em que o Presidente do FCP andou envolvido, nos da Casa Pia ou do ex-primeiro-ministro Sócrates.

Curiosamente, o que hoje se vê é que toda essa gente que se manifestou contra a utilização das escutas, de Pinto da Costa ou de Sócrates, algumas até mandadas destruir por um antigo presidente do STJ, sem que outros conhecessem o respectivo conteúdo e apenas porque embora recolhidas legalmente excederiam o objectivo da recolha, venha agora manifestar-se em defesa do hacker Rui Pinto, como se este não fosse efectivamente um criminoso.

É evidente que não deixa de o ser, sendo certo que isso não coloca em causa a importância do que, num segundo momento, e, em minha opinião, apenas para se safar e criar um ambiente favorável à sua pessoa junto da opinião pública e da comunicação social, divulgou junto de um consórcio de jornalistas independentes aparentemente, digo eu, sem exigir contrapartidas.

Idêntico procedimento não foi seguido com os documentos obtidos do Sport Lisboa e Benfica, que foram directamente parar ao Futebol Clube do Porto, certamente que aos olhos do hacker Pinto a entidade mais isenta, imparcial e idónea para proceder à sua divulgação aos bochechos, alimentando as noites televisivas de alguns canais e enchendo as páginas da imprensa que vive da escandaleira, da devassa e da intromissão na vida dos outros.

Pergunto, por isso mesmo, se a forma como o hacker Pinto acedeu aos conteúdos que divulgou é menos intrusiva do que as escutas telefónicas abusivas, e se estas devem ser consideradas mais ou menos abusivas em função do juízo que se venha a fazer da importância do conteúdo divulgado?

É por isso de grande hipocrisia querer desvalorizar a ilicitude dos actos de intromissão em redes e computadores privados, quaisquer que eles sejam, face às regras vigentes.

Convém não confundir a atitude de Rui Pinto, o hacker, com a de gente como Snowden ou Frederic Whitehurst, ou seja, com verdadeiros whistleblowers, lista da qual Pinto não faz parte, embora para si se esforce em agora reclamar tal estatuto.

Considero ser necessária a criação de um estatuto, que já devia existir, destinado à protecção dos verdadeiros denunciantes. Isto é, daqueles que o fazem no cumprimento de deveres de cidadania, e não dos que só se lembram da cidadania quando são apanhados a fazer exactamente aquilo que um cidadão sério, consciente e responsável não faria. Sim, porque ninguém vai entrar em redes privadas e em computadores de terceiros, devidamente seleccionados, seja de Estados, empresas ou particulares, incluindo magistrados e advogados, apenas porque está a navegar pela Internet, a ver a paisagem.

A questão coloca-se a meu ver de forma pertinente não em relação aos que procuram aceder, e acedem, à informação de forma absolutamente ilícita, entrando abusivamente em redes, devassando e muitas vezes destruindo informação, apropriando-se da que lhes convém, mas no que diz respeito a todos os que, designadamente em razão do seu desempenho profissional, acedem legitimamente à informação e sobre os quais é discutível se têm ou não um dever de denúncia, por um lado, ou de bufaria, melhor dizendo, e se o tendo, quando confrontados com a sua obrigação de confidencialidade e preservação do sigilo, o devem exercer e fazer prevalecer sobre as outras obrigações que sobre si recaiam.

A solução não é simples e coloca muitas vezes problemas que estão muito para além da mera denúncia, envolvendo juízos éticos e morais que não são fáceis. Acontece que, em regra, quanto a este tipo de profissionais importa saber até que ponto é que aquelas são compatíveis com as necessidades de combate ao crime e à corrupção. E quando estas devem prevalecer sobre aquelas. E em que momento.

Abreviando, direi tão só que estou de acordo com a criação do estatuto de denunciante, de maneira a que esta condição confira protecção efectiva a quem se coloca em risco para cumprir deveres de cidadania, levando-se em consideração que na outorga desse estatuto  deverá ser feita uma separação clara entre aqueles que abusiva e totalmente à margem da lei circulam, devassam e pirateiam redes de comunicações, muitas vezes apenas com o propósito de destruírem, de se divertirem ou de chantagearem, daqueles outros que licitamente ou por mero fortuito têm acesso à informação e por a considerarem de interesse público a entender divulgar e remeter às autoridades competentes.

Uma coisa é certa: não poderá haver dois pesos e duas medidas. E o que vier a ser decidido não deverá ter carácter retroactivo, independentemente de poder haver um regime mais leniente para aqueles casos em que quer a informação não fosse acessível por outra forma, quer à acção criminosa se tenham sucedido actos inequívocos de arrependimento — o que não parece ser o caso de quem se recusa a divulgar as passwords de acesso aos discos rígidos contendo informação que foi obtida ilegalmente sem obtenção de contrapartidas — que levassem à divulgação dos conteúdos imprescindíveis para a investigação dos factos pelas autoridades e à punição dos criminosos.

Quero, ainda, acrescentar que considero absolutamente humilhante e procedimento indigno do nosso sistema judicial que se passeiem e divulguem imagens de arguidos, como no caso do hacker Rui Pinto, algemados e exibidos nas televisões e jornais como troféus de caça. Se as polícias o fazem, os magistrados deviam ser os primeiros a impedi-lo, pois que por aí não nos distinguimos em nada das imagens que os canais de televisão chineses apresentam em relação aos que do outro lado do mundo aguardam que se faça justiça. 

Combata-se a corrupção, sim, de forma clara e transparente, mas sem hipocrisias, partidarites e clubites, e acima de tudo respeitando o Estado de direito.

Como ainda ontem escrevia no Público a procuradora Maria José Fernandes, “porque não rever princípios no âmbito da doutrina constitucional e na jurisprudência, sem o objectivo de abastardar valores do Estado de direito, que tanto custaram a consagrar, mas sim para introduzir modulações de equilíbrio nas novas realidades da vida social? Uma possibilidade, a consagração de exce[p]ções baseadas na proporcionalidade, adequação, hierarquia de valores, por forma a que a realização da Justiça acompanhe as profundas modificações valorativas da sociedade de hoje, resultantes da evolução tecnológica, económica e ambiental.”.  

Mudem-se as regras do jogo, não se mudem os princípios de acordo com as circunstâncias e as conveniências do momento.

Faça-se isso sem populismo e sem a habitual demagogia retórica destinada a manipular a turba ignorante, visando a punição de alguns criminosos caídos em desgraça para se satisfazer o desejo de vingança das massas e do voyeurismo televisivo, enquanto ao mesmo tempo se heroicizam outros para se desvalorizar a gravidade dos crimes por estes cometidos, e assim se lhes permitir que, saindo impunes, continuem a praticar outros.

Porque é isto o que está verdadeiramente em discussão. Saber se queremos bandidos-denunciantes ou cidadãos-denunciantes.

Protejam-se os cidadãos que denunciam, não os bandidos que disso procuram tirar partido. Pelo menos até que se chegue à conclusão de que os fins justificam os meios, coisa contra a qual houve quem se indignasse quando se tratou das escutas telefónicas de outros processos que acabaram em nada.

A censura populista ao blog "Do Portugal Profundo"

jpt, 12.01.20

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Corre a notícia de que as ligações ao blog "Do Portugal Profundo" estão proibidas no Facebook, tal como é vedado citá-lo. Surpreso, ainda que não espantado, fui confirmar. Confere, a minha tentativa de partilhar uma ligação ao seu último postal (que denuncia a censura de que é alvo nesta rede social) foi negada, e fui informado de que o referido blog "viola os princípios da comunidade".

Estas coisas são simples, e sabe-se a metodologia (o processo geral já foi publicada em jornais portugueses, e decerto que é esse o que agora acontece): o blog é vetado no FB devido a denúncias várias às quais se segue uma série de tarefeiros que decide "na hora" se deve ou não vedar acesso ou apagar conteúdos. Há recurso, para "superiores hierárquicos" que mantêm ou não a decisão. Ou seja, e para além do falível funcionamento da empresa - a notícia que li há tempos falava de impreparação dos jovens funcionários temporários e da extrema rapidez exigida aos processos - surge aqui um perverso sistema de censura rizomática, uma espécie de "delação premiada": se um conjunto de pessoas denunciarem um conteúdo porque os "ofende" este é retirado.

Ou seja, se alguém escrever que o Benfica é beneficiado pela arbitragem (19 000 "gostos"-FB no postal de ontem no nosso És a Nossa Fé que isso afirma) um conjunto alargado de membros das claques internéticas benfiquistas pode denunciar o conteúdo: bastará apanhar um jovem tarefeiro inseguro (ou benfiquista) para que as ligações (e citações) sejam retiradas das partilhas no FB.

É óbvio o que aconteceu: António Balbino Caldeira escreveu um texto avesso à exploração política que o populismo racialista (LIVRE/BE) está a fazer do horrível assassinato (não é uma redundância) do estudante cabo-verdiano Giovani Rodrigues, acontecido em Bragança. Concorde-se ou não com a sua argumentação, os termos em que ela é apresentada são - em texto e em putativo sub-texto - eticamente (os tais "princípios da comunidade", por fluidos que sejam) inatacáveis. São até - mas essa é a minha opinião - muito certeiros, por desagradáveis que possam ser aos populistas (facilitadores) das aparentes "boas causas".

Não sou leitor habitual de Balbino Caldeira. Mas claro que o li, veterano e célebre bloguista que é. Convirá lembrar os candidatos e os efectivos delatores, que o bloguista batalhou contra José Sócrates dizendo muito do que agora qualquer cidadão pode saber. Que foi processado pelo famigerado então primeiro-ministro e foi inocentado. E que isso lhe dá mais crédito como cidadão - ainda que não o iniba de cometer erros e de convocar discordâncias - do que os "intelectuais orgânicos" deste movimento populista racialista, então apoiantes dessa cleptocracia socialista. Gente comentadora televisiva, colunista de "jornais de referência", até deputada, e ombreadores do bloguismo remunerado anónimo de contra-informação (fake news avant la lettre). A esses funcionários públicos, ou avençados do Estado, apoiantes dos desmandos na banca pública, do combate à liberdade de imprensa, de afronta à separação dos poderes, do nepotismo e vera criminalização do Estado, e até académicos adeptos da efectiva falsificação de títulos universitários, ninguém persegue com o recurso a estas manobras da tal censura rizomática. Por demagogos que surjam, abjectos falsificadores do real. E essa diferença permite bem perceber onde estão os democratas.

Já para Balbino Caldeira, porque é de uma "direita profunda", como tantos destes "intelectuais orgânicos" são de uma "esquerda profunda" (que nunca, para eles, "extrema"), se organiza (eles organizam, sem rebuço) a censura.

Enfim, ao ser confrontado com a impossibilidade de partilhar no Facebook uma ligação ao "Do Portugal Profundo" deixei esta mensagem ao sistema daquela empresa: "Nada há nos postais do veterano blog Do Portugal Profundo, o qual, como bloguista que sou, leio há cerca de 15 anos, que seja considerável como calúnia ou violentador do espírito de cidadania. As ideias que o autor do blog defende são absolutamente legítimas, concordemos ou não com elas. A proibição da sua divulgação no Facebook é um acto inaceitável. E muito duvido que seja legítimo."

Agora venham-me dizer que eu sou racista.

Bravatas inconsequentes que fazem ricochete

Diogo Noivo, 19.06.19

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No longo e divertidíssimo anedotário de Juan Carlos de Borbón figura um episódio protagonizado pela então deputada republicana e catalanista Pilar Rahola. Com especial propensão para bravatas, provocações e disparates, Rahola foi buscar lã e saiu tosquiada. Contei essa história aqui.

Anos passados, a história repetiu-se, desta feita com o actual monarca e com uma sucedânea de Rahola. Laura Borrás, deputada da força política catalanista Junts per Cat, apresentou-se na audiência com Felipe VI envergando uma borboleta amarela na lapela, uma alusão clara aos laços da mesma cor que simbolizam o apoio à independência da Catalunha. Acto contínuo, Borrás deu ao monarca um recado de Carles Puigdemont, conhecido fugitivo e o mais temeroso dos independentistas. “O senhor Puigdemont informa que o aprecia mais como Príncipe de Girona do que como Rei de Espanha”. Ainda que sem o registo castiço do seu pai, mas igualmente certeiro nos tempos e no conteúdo, Felipe VI respondeu “pois eu apreciava-o mais como presidente da câmara de Girona do que como President”. Como se diz na esgrima: ataque, parada e resposta. Touché.

O populismo e os partidos

Pedro Correia, 03.01.19

«O populismo vencerá os grandes partidos por dentro, dispensando o País da maçada de criar novos partidos. Como diria Zeca Afonso, "já se ouvem os tambores". O instinto de sobrevivência será tudo o que ficará de longos anos de corrosão do carácter, em organizações partidárias confinadas ao rito e à obediência. O espectáculo não será bonito de ver. Cada um à sua maneira, todos declararão guerra "às elites" num país praticamente desprovido delas e farão causa comum com os instintos, preconceitos e ilusões da turba das redes sociais, dos tablóides e de um número crescente de pessoas respeitáveis.»

Sérgio Sousa Pinto, deputado do PS, em artigo de opinião no Expresso

(29 de Dezembro)

Mais despesa, menos receita

Pedro Correia, 09.10.18

Oiço Jerónimo de Sousa em entrevista à TVI a propósito das negociações para o próximo Orçamento do Estado.

O que propõe o secretário-geral do PCP? A diminuição das receitas fiscais em simultâneo com o aumento da despesa pública. Sugere portanto a quadratura do círculo, bem consciente de que jamais terá condições de ser aplicada. E no entanto insiste na tese, com ar sério, composto e grave. É puro eleitoralismo. Ou, dito de outra maneira, o mais descarado populismo. Sem jamais assumirem responsabilidades governativas, os comunistas advogam sempre o melhor dos mundos para os eleitores que não se dão ao incómodo de fazer contas e reservam o pior cenário para o Estado que tanto dizem defender.

Escuto isto e questiono-me por que razão jamais alguém se atreve a chamar populista ao PCP. É uma pena, pois seria um rótulo bem adequado.

Um travão contra o populismo

Pedro Correia, 28.06.18

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 Joana Marques Vidal com a ministra da Justiça, Francisca Van Dunen

 

O Governo anda cheio de vontade de afastar a procuradora-geral da República que mais resultados obteve no combate ao chamado crime de colarinho branco desde o 25 de Abril. A tal ponto que logo no início do ano a ministra da Justiça, certamente com conhecimento e autorização de António Costa, se apressou a mostrar-lhe a porta de saída - ainda por cima cometendo a deselegância de o fazer numa entrevista a um órgão de informação, a TSF.

Joana Marques Vidal respondeu não com palavras mas com resultados. Que estão à vista de todos. Ontem, por exemplo, com a chamada Operação Tutti Frutti, que investiga adjudicações superiores a um milhão de euros a militantes do PSD por parte de juntas de freguesia de Lisboa que estão ou estiveram controladas por este partido. Uma investigação que também abrange o PS - a tal ponto que os gabinetes dos vereadores Duarte Cordeiro, Manuel Salgado e do próprio presidente da Câmara, Fernando Medina, também estão na mira da Judiciária.

O combate às práticas criminosas na política é decisivo para travar os movimentos populistas anti-sistema que proliferam pela Europa e não tardarão a chegar aqui. Porque nada como a corrupção mina tanto a credibilidade das instituições políticas. Mais um motivo para o Presidente da República reconfirmar Joana Marques Vidal no final do Verão, quando o mandato dela se abeirar do fim. Convém lembrar que neste processo de recondução ou exoneração da procuradora-geral da República a palavra decisiva será sempre a do Chefe do Estado - como, de resto, estipula a Constituição portuguesa.

Os estados de alma do Governo importam pouco.

Só vinte?

Sérgio de Almeida Correia, 11.05.17

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(créditos: Expresso)

A mim admira-me que sejam só vinte, porque bom bom era serem aí umas sessenta, ou umas oitenta, sei lá, de Santarém até Setúbal, cobrindo toda a área metropolitana de Lisboa e arredores. Se possível com uma extensão ao Aeroporto "Internacional" de Beja, em regime de PPP, para se poder encaixar a malta amiga, e com o aval da CGD. E depois entregar a gestão disso a Sérgio Monteiro. Quer-me parecer que desta vez faltou um pouco mais de rasgo na proposta de Assunção Cristas. Ninguém é perfeito.

Como diria um amigo meu, "isto promete uma remontada épica". Obrigado, António.

Mélenchon ou o populismo que não costuma receber tal designação

José António Abreu, 22.04.17

Simpatia para com Putin. Desejo de aderir à Aliança Bolivariana, onde pontificam regimes como o de Cuba e o da Venezuela. Abandonar a NATO. Alterar os tratados que regem o euro. Estabelecer um «novo papel» para o BCE. «Libertar» as finanças públicas das «garras» dos mercados financeiros. Criar um «Fundo Europeu de Desenvolvimento Social» para a «expansão dos serviços públicos, do emprego e das qualificações». Aumentar o salário mínimo em 15% (para os 1700 euros). Fixar o tempo de trabalho nas 35 horas semanais e limitar as horas extraordinárias («sob controlo de representantes dos trabalhadores»). Instaurar tectos salariais. Aumentar o poder dos trabalhadores nas empresas e dos cidadãos nas instituições bancárias. Fixar a idade da reforma nos 60 anos, com pagamento integral das pensões. Integrar 800 mil precários na Função Pública. Implementar um plano contra a «especulação imobiliária». Congelar as rendas. Construir 200 mil habitações sociais. Criar um «estatuto social» para os jovens, remunerando-os em situações como a procura do primeiro emprego. Nacionalizar empresas, com enfoque nas do sector sector energético (e.g., Total). Criar «pólos» públicos de produção em vários sectores (energia, banca, medicamentos, ...).

E por aí fora.

Holanda: Apenas um compasso de espera para o populismo

João André, 29.03.17

Depois do meu post pré-eleições holandesas acabei por não ter tempo de comentar os resultados. Tento agora corrigir isso, mesmo que a notícia já não esteja fresca.

 

O comentário mais comum aos resultados das eleições recaiu sobre a aparente derrota de Geert Wilders. As sondagens davam-lhe uns meses antes das eleições a possibilidade de vir a ser o partido (gosto de usar os termos Wilders e PVV como sinónimos. O facto de o PVV ter apenas Wilders como membro e não existir fora do raio de influência da sua cabeça oxigenada justifica esta opção) mais votado e isto acabou por não se verificar. Não só isto era parcialmente esperado (o PVV tem quase sempre piores resultados eleitorais que aqueles que as sondagens prevêem) como terá sido talvez um desfecho mais ao gosto de Wilders. Os restantes partidos tinham prometido não entrar num governo que incluísse o PVV e, mesmo que o VVD de Rutte renunciasse a esta promessa, nunca conseguiria governar sem mais apoios para lá de Wilders, o que efectivamente garantiria que o PVV continuaria na oposição.

 

Ainda cedo Wilders decidiu não fazer campanha, citando razões de segurança. Mesmo que as suas preocupações fossem justificadas - o que não é de maneira nenhuma garantido - isto convinha a Wilders, que certamente não queria a responsabilidade de ser o partido mais votado sem poder liderar um governo. Uma vitória obrigá-lo-ia a assumir uma postura mais responsável e mais alinhada com o "sistema", algo de que Wilders foge como o diabo da cruz. Resumindo-se a uma campanha de twitter e com aparições ocasionais na televisão, Wilders manteve a presença sem arriscar muito.

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Acima escrevi que Wilders teria aparentemente sido derrotado. Aparentemente em parte porque de facto não lhe teria interessado vencer, mas também porque o resultado só aparentemente seria considerado uma derrota depois de crescer o eleitorado cerca de 44%, com mais de 400 mil votantes extra. Além disso passou de um distante terceiro lugar para o segundo. Por último, porque conseguiu que outros partidos assumissem o seu discurso.

 

Wilders tinha vindo a radicalizar o seu discurso nos últimos anos e acabou num manifesto eleitoral de uma página com metade dos pontos dedicados aos seus ataques aos muçulmanos. Numa tentativa de controlar o seu deslize, Rutte tinha vindo a adoptar um discurso semelhante e culminou numa carta aberta aos holandeses onde dizia sobre os estrangeiros: «Sejam como nós ou vão embora» (tradução livre do holandês «Doe normaal of ga weg»). Mesmo que ignoremos esta carta altamente populista e, sim, xenófoba (os holandeses são heterogéneos o suficiente para terem grupos de Hendrick's e Ingrid's que poderiam ser considerados como diferentes), outras atitudes de Rutte e do seu provável futuro parceiro de governo CDA vinham a ser caracterizadas por ataques populistas iliberais.

 

Rutte beneficiou ainda nos últimos dias de campanha da guerra de palavras (e algo mais) com a Turquia, num confronto legítimo que lhe permitiu mostrar pose de estadista e ao mesmo tempo mostrar uma face de duro para com estrangeiros muçulmanos, defendendo os direitos dos holandeses. O caso poderia ter sido favorável a Wilders, mas a sua ausência do terreno atirou com o protagonismo para Rutte, que aproveitou.

 

Na verdade, o único grande perdedor destas eleições foi o PvdA (trabalhistas, de Dijsselbloem) que perdeu cerca de 75% dos votos em relação a 2012 e caiu de 38 para 9 deputados. Uma total incapacidade de se distinguir do VVD no governo, independentemente de qualquer bom trabalho feito, acabou por empurrar os eleitores para partidos que oferecessem algo de diferente. A maioria dos partidos acabou por beneficiar da mudança de voto por parte de 1.7 milhões de eleitores.

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O mais óbvio beneficiado disto foi o GL (GroenLinks, verdes) que cresceu mais de 300% com 700 mil de votos mais e chegou aos 14 deputados. De forma semelhante beneficiaram o CDA, o D66 (cerca de 500 mil votos extra) e vários pequenos partidos. Os 2 milhões de votos perdidos entre VVD e PvdA não bastam para compensar os mais de 3 milhões de votos extra conseguidos pelos pequenos partidos. A diferença veio acima de tudo do aumento de participação eleitoral, a qual chegou aos 82%.

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O próximo governo será logicamente liderado por Rutte e terá provavelmente como parceiros o CDA e o D66. Isso dá-lhe 71 dos 76 deputados necessários para governar. Os restantes poderão vir de um dos partidos mainstream mais pequenos (CU - União Cristã - com 5, PvdA com 9), do GL (com 14 deputados, mas uma união muito improvável) ou arriscará apoios parlamentares ocasionais jogando com as agendas dos partidos mais pequenos (como o PvdD - Partido dos Animais, o 50+ ou outros). Pessoalmente aposto numa integração de elementos do PvdA sem apoio parlamentar mas usando os mesmos para conseguir acordos pontuais para fazer passar a sua agenda. As próximas semanas de preparação de um programa de governo conjunto darão a resposta.

 

É fácil ficar entusiasmado perante a vitória de Rutte (apesar da perda de 10% dos votos), o surgimento do GL, a subida do D66 ou o ressurgimento do CDA. Igualmente a subida de participação eleitoral é um óptimo sinal, mas a verdade é que há nuvens no horizonte. O populismo xenófobo platinado de Wilders subiu significativamente e arrastou partidos mais do centro consigo.Não teve uma vitória arrebatadora mas tampouco desapareceu. Antes se pode dizer que ganhou um compasso de espera. A palvra, no que diz respeito á Europa, está agora nas mãos de Le Pen e Petry. Só se pode esperar que franceses e alemães não continuem a reiterar esta deriva populista.

Se eu votasse nas eleições holandesas

João André, 14.03.17

Vivo na Holanda, directa (registado como tal) ou indirectamente (registado noutro país mas tendo o domicílio familiar no país) desde Dezembro de 2003. Isto dá-me a possibilidade de conhecer o país um pouco mais que a generalidade dos portugueses e compreender aceitavelmente a sociedade do país. Não me arvoro em especialista. Há coisas nos holandeses que nunca entenderei. Há particularidades de que desgosto profundamente e, confesso, só não estou fora do país porque circunstâncias familiares têm conspirado para que isso não suceda.

 

Isto não quer dizer que a Holanda seja um país mau. Pelo contrário. É ordeiro, com baixos índices de criminalidade, ruas limpas, pessoas essencialmente educadas, muito pouca pobreza, bons sistemas sociais, etc. Se uma pessoa aceita os preceitos sociais (e o clima), o país é excelente para viver e será mesmo dos melhores possíveis. Só acontece que não se coaduna com a minha personalidade.

 

É por isso que nunca pedi a nacionalidade holandesa, apesar de ser capaz de preencher todos os requisitos para tal. Por isso e porque para o fazer teria que perder a nacionalidade portuguesa, algo que não contemplo em favor da holandesa. Se tivesse a nacionalidade, teria amanhã a possibilidade de votar nas eleições holandesas.

 

 

Trump e outros populismos

José António Abreu, 11.08.16

A maior tragédia da candidatura de Donald Trump seria a sua eleição. Felizmente, tal começa a parecer improvável.

A segunda maior tragédia da candidatura de Donald Trump - como, de resto, da maioria dos populismos, sejam estes de direita ou de esquerda - é distorcer o debate, afastando-o dos temas e das soluções que verdadeiramente importaria discutir.

As políticas de Barack Obama, que Hillary Clinton prosseguirá, são passíveis de inúmeras críticas: o aumento exponencial da dívida, a que correspondeu apenas um crescimento tímido da Economia; os riscos gerados pela política financeira, de - não obstante a retórica em contrário - apoio a Wall Street; a estagnação dos níveis salariais; o recrudescimento da violência racial; a tendência para o aumento de impostos; as hesitações e contradições da política externa. Seria fundamental que existisse uma oposição à altura, chamando a atenção para estas e outras questões (mas questões verdadeiras, não as que se baseiam em números inventados ou em sensações, como o putativo aumento da criminalidade) e avançando com propostas alternativas, concretas e viáveis. No mínimo, a discussão forçaria o Partido Democrata a clarificar e a refinar propostas. Nada disso está a acontecer. As frases ocas de Trump, a sua incoerência e a sua incapacidade para manter a discussão no plano das ideias (invariavelmente, e ao melhor estilo autocrático, ele responde a críticas de cariz político com descabelados - perdoe-se-me o trocadilho - ataques pessoais) deixa terreno aberto a Clinton para que possa ser eleita não apenas com relativa facilidade mas sem ver o seu programa devidamente escrutinado.

Isto é terrível para a democracia. Os populismos são perigosos por criarem realidades alternativas e fazerem muitas pessoas acreditar no impossível, mas também por (1) levarem os adversários a entrar por seu turno na baixa política dos ataques pessoais e das promessas irrealistas (ou, a prazo, prejudiciais), (2) diminuírem a extensão e qualidade do debate sobre o que verdadeiramente é possível fazer, e (3) queimarem pontes para compromissos futuros. Mesmo que os populistas não vençam as eleições, a conjugação destes factores aumenta a probabilidade de que sejam (ou continuem a ser) implementadas políticas erradas. E o resultado de políticas erradas é o aumento da insatisfação e dos populismos. O círculo vicioso perfeito. O círculo vicioso em que o Partido Republicano se deixou aprisionar. (A terceira maior tragédia da candidatura de Donald Trump é o modo como fragiliza o partido de Abraham Lincoln, ainda que - sejamos honestos - o processo tenha começado antes dela.) O círculo vicioso que, com ligeiras variantes, elegeu o Syriza, deu força ao Podemos, ao UKIP, à AfD e à Frente Nacional, destruiu o PASOK e ameaça o PSOE, e poderá vir a esvaziar ou a fragmentar o PS, se - e talvez fosse mais adequado escrever «quando» - o falhanço da demagogia em curso forçar uma crise.