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Delito de Opinião

Pontos nos is (18)

João Carvalho, 17.07.12

TROMBONE

«O ministro-adjunto do primeiro-ministro decidiu processar a antiga bastonária da Ordem dos Arquitectos, Helena Roseta, na sequência das declarações da ex-bastonária à SIC, a 23 de Junho, segundo as quais Relvas teria sugerido a contratação da empresa onde então trabalhava Passos Coelho para desenvolver um conjunto de acções de formação para a área autárquica, que Relvas tutelava, enquanto secretário de Estado da Administração Local do governo de Durão Barroso.»

I

Não sei se Miguel Relvas irá mesmo processar Helena Roseta. É até possível que o tempo decorrido torne inviável a abertura de um processo-crime, se calhar já prescrito. No entanto, se o ministro se considera ofendido e decidir queixar-se, não está apenas no seu direito como está em tempo útil, porque foi agora que Helena Roseta (bem ou mal, é o que falta saber) o atingiu.

Esperemos para ver. Não importa o timing: só se é ofendido depois de uma ofensa.

II

Já no que respeita a Helena Roseta, o tempo útil parece interessar pouco. Segundo ela, Miguel Relvas teria assumido uma atitude inaceitável em 2003. Vai daí, conta a sua história publicamente em 2012. A noção de timing da ex-bastonária da Ordem dos Arquitectos é, no mínimo, estranha. Mas não é só a noção de timing: o que ela diz ser inaceitável não foi o bastante para a fazer abrir a boca na altura certa; mas agora, nove anos depois do suposto episódio, quando o caso só serve para denegrir o adversário, já Helena Roseta acha bem vir a público pôr a boca no trombone.

Convenhamos que o critério de Helena Roseta é, pelo menos, pouco razoável. Pouco ou nada, porque não é critério: é falta dele.

Pontos nos is (17)

João Carvalho, 16.07.12

DÉJÀ VU

Nada me incomodam os grupos de pressão que pretendem defender interesses comuns, por muito discutíveis que esses interesses possam ser. Porém, incomodam-me os lobbies escondidos ou disfarçados que tantas vezes se movem neste país pequeno em tantos jogos de sombras.

I

Cheiro à légua o jogo de bastidores que anda a desenrolar-se no caso da licenciatura de Miguel Relvas. Na verdade, estou farto de ouvir defender que o ministro devia afastar-se para não criar maior desconforto ao Governo, mas ainda não consegui descortinar qualquer ilícito que ele pudesse ter cometido. A licenciatura levanta muitas dúvidas? Pois é capaz de levantar, mas ainda não ouvi dizer que a Universidade Lusófona é que pode ter-se colocado numa situação desconfortável.

 

 

Não se tratando de uma auto-licenciatura, que seria impossível, e estando o curso assegurado e confirmado pela universidade visada, cada vez que olho para o ministro ganha relevo esta impressão de déjà vu.

II

Onde é que eu já vi isto? Já sei: na primeira linha estão os mesmos jornais do caso recente que envolveu o Público e, portanto, estão representados os mesmíssimos grupos de comunicação interessados em travar um processo que os deixa em pânico e que está a ser conduzido por Miguel Relvas: a privatização da RTP.

Tal como escrevi no princípio, não me incomoda que haja quem se oponha à privatização da RTP, embora me incomode muito andar a pagar há tanto tempo a má gestão sucessiva do sorvedouro escandaloso que ela tem sido. Oponham-se, os que pensarem de outro modo, mas organizem-se e façam-no às claras.

Quando eu vir que o lobby não se esconde e que combate de forma visível com armas lícitas, então talvez eu encontre paciência bastante para tentar concluir se o ministro deve ceder o lugar, se a universidade é que não honra o lugar que ocupa ou qualquer outra coisa.

Até lá, mantenho que já vi isto e que isto não me parece sério. Mais: palpita-me que outros episódios hão-de seguir-se. Sempre obscuros, como é próprio dos medrosos.

Pontos nos is (16)

João Carvalho, 23.06.12

CASOS

I

O caso Miguel Relvas/Público descambou para um novo caso inacreditável e inesperado: o caso Arons de Carvalho. O que distingue os dois casos é ainda mais incrível: se o primeiro é um caso real, o segundo é surreal.

Como se sabe, o «processo de averiguações relativo ao caso das alegadas pressões ilícitas do Ministro-Adjunto e dos Assuntos Parlamentares, Miguel Relvas, sobre o jornal Público», conduzido pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), culminou com uma contida deliberação do conselho regulador da mesma ERC. Em tudo quanto as duas partes, ministro e jornal, não coincidem e perante as posições de palavra contra palavra, o conselho regulador da ERC não elabora considerações inconsistentes, ficando-se pela matéria recolhida: «não se deu por provada a existência de pressões ilícitas da parte do ministro», «não se verificou a existência de um condicionamento da liberdade de imprensa» e outras conclusões de teor igualmente provado durante as averiguações, assinalando sem quaisquer devaneios as discrepâncias encontradas.

Aquela deliberação, porém, não mereceu unanimidade na ERC: dos cinco votos do conselho regulador, dois foram contra. Um dos vencidos foi Alberto Arons de Carvalho, que entendeu pronunciar-se através de uma declaração de voto.

II

É essa declaração de Arons de Carvalho que constitui um caso que, por qualquer motivo ainda por explicar, não está a merecer o relevo que devia ter. O extraordinário pensamento de Arons de Carvalho devia dar que pensar. Devia dar que pensar, desde logo, à própria ERC, dar que pensar porventura ao ministro Miguel Relvas (para quem a comunicação social não é totalmente alheia às suas funções), dar que pensar talvez ao jornal Público (que aparenta preocupar-se com a ética e deontologia do jornalismo) e dar que pensar seguramente a todos nós.

Sem querer ser exaustivo, fico-me pelas duas razões de fundo apresentadas por Arons de Carvalho no voto de vencido, para que melhor se avalie a sua espantosa posição.

Inclina-se Arons de Carvalho para o juízo que diz fazer «da verosimilhança das declarações» da directora e da editora de política do jornal, que refere serem «duas experientes e prestigiadas jornalistas, sendo absolutamente inimaginável que tivessem inventado as frases que atribuem ao ministro». Está visto que Arons de Carvalho não é um admirador de Miguel Relvas, o que parece legítimo, ou não lhe reconhece experiência e prestígio, o que continua a ser legítimo, mas não deixa de ser uma deselegância inadequada ao promover as qualidades de duas intervenientes da parte contrária.

Além disso, de discordância em discordância com aquela deliberação da ERC votada por maioria, Arons de Carvalho dedica o seu derradeiro pensamento a Miguel Relvas, nestes termos: «Uma ameaça não é grave pelo efeito que tem, mas pelo efeito que se pretendia que viesse a ter...»

III

Arons de Carvalho, ex-secretário de Estado socialista que teve o pelouro da RTP, não é magistrado judicial, o que prova que o mundo ainda não está todo às avessas.

Contudo, se ele fosse juiz, podia condenar um tipo por verosimilhança: tem cara de homicida e tem uma arma, logo é assassino. Não houve homicídio? Não interessa. O tipo com cara de homicida e uma arma de fogo é uma ameaça e, se a sua existência ainda não teve qualquer efeito mortal em alguém, vai dentro na mesma porque a ameaça indica que há-de vir a ter esse efeito, que é o que um tipo com cara de homicida e uma arma pretende que venha a ter.

IV

Espero que a vontade insistente do PS para ter Miguel Relvas de novo na Assembleia da República a responder sobre este caso se centre em argumentos mais sólidos do que as surrealistas subjectividades de Arons de Carvalho. Até porque a gente precisa de ministros a governar como de pão para a boca, não para andarem a responder repetida e infinitamente sobre casos que já cheiram mal.

Como se Arons de Carvalho e o PS tivessem um manual para ensinar como ser ministro e gerir as relações com os jornalistas. O mundo ainda não está todo às avessas, é verdade, mas aproxima-se perigosamente quando as pessoas deixam de respeitar os limites do mero senso comum. Condenar com base numa imaginada verosimilhança e no pretenso efeito não verificado de uma suposta ameaça? Não há paciência para este bafio socialista carregado de poeira, que não vai ser grave pelo efeito que terá, mas que deve dar-nos que pensar pelo efeito que Arons de Carvalho pretendia que viesse a ter...

Pontos nos is (15)

João Carvalho, 29.04.12

LIMITES

I

Um juiz do tribunal de Portalegre «entendeu que a entrega da casa ao banco liquida toda a dívida do empréstimo do crédito à habitação», o que contraria o hábito instalado na banca de ainda exigir amplas responsabilidades aos exaustos devedores hipotecados.

Vai daí, a Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) veio a público considerar que «a decisão do Tribunal de Portalegre, sobre uma casa entregue ao banco, prova que os juízes se sabem adaptar às novas realidades do País». Disse a ASJP: "É uma decisão nova que se aplica num tempo novo. É importante que a jurisprudência e as decisões dos tribunais se adaptem à realidade que nós temos."

II

Uma vez mais, a ASJP ultrapassou os limites e fez letra-morta da independência dos juízes, que não obedecem a qualquer hierarquia no seu exercício de julgar, e da sua respectiva irresponsabilidade no que respeita à sua competência decisória.

Que um cidadão opine sobre decisões de tribunais é um direito corrente. Que um dirigente da ASJP e juiz faça o mesmo já é mais duvidoso, por se tratar de um magistrado judicial a comentar decisões que lhe são alheias por pertencerem a processos entregues a outros magistrados judiciais. Que um magistrado judicial o faça em nome da ASJP é claramente abusivo.

Por este caminho e por absurdo, a ASJP parece querer passar a tecer considerações sobre todas as decisões de todos os tribunais judiciais ou, pelo menos, sobre aquelas que puderem fazer jurisprudência. A menos que a notícia, tal como tem estado a ser divulgada, esteja incorrecta e, nesse caso, a ASJP já teve muito tempo para correr a corrigi-la.

III

Curioso é ninguém, por uma vez, restabelecer os limites que a ASJP não consegue respeitar. Está mais do que provado o que sempre achei (e muitos juízes também, felizmente): tentar juntar conceitos de associativismo profissional com posições de organização sindical é uma enorme confusão que devia manter-se bem longe dos respeitáveis limites dos órgãos de soberania.

Ser membro de um órgão de soberania às segundas, quartas e sextas e sindicalista às terças, quintas e sábados não augura nada de bom — nem aos domingos, porque a Justiça não encerra.

Pontos nos is (14)

João Carvalho, 26.04.12

LAMAS

Pela boca do deputado Basílio Horta, o PS «considerou hoje "um mau negócio" a Oferta Pública de Aquisição (OPA) da Camargo Corrêa à Cimpor, afirmando que "lesa" o interesse público e o Tesouro.» Até pode ser, mas José Sócrates e os seus pares de má memória também foram um péssimo negócio para o País e fartaram-se de desprezar o interesse público e o Tesouro sem que o ex-centrista ou qualquer outro deputado socialista abrisse a boca para denunciar o descalabro.

A OPA à Cimpor e o desgoverno de Sócrates representam bem o modo como o PS costuma reflectir: dois pesos e duas medidas. Com a agravante de termos agora de vender os parcos haveres nacionais para tentarmos sobreviver e sair do charco socialista e lamacento em que mergulhámos.

Se Basílio Horta ainda vivesse à sombra do CDS-PP, por certo conseguiria reflectir melhor sobre a crise que nos entalou e os maus negócios lesivos do interesse público seriam então outros lamaçais.

Pontos nos is (13)

João Carvalho, 07.03.12

ÓSCAR

I

Sábado, 3 de Março. O Diário de Notícias online traz um texto do seu actual provedor do leitor, Óscar Mascarenhas. É evidente que se trata de um artigo de opinião, mas com o peso acrescido de ser escrito por quem devia ter sempre presente a ética do jornalismo, muito especialmente o que respeita à identificação das fontes de informação que o autor põe em causa.

Óscar Mascarenhas reporta-se a uma notícia do DN de 21 de Fevereiro («terça-feira de Carnaval», lembra ele de modo completamente irrelevante para o efeito), que fez manchete no jornal e contra a qual se insurge. «Trabalhadores dos transportes não pagam medicamentos e recebem baixa por inteiro» era o título da notícia, que surgia a propósito da greve dos transportes, escrita e assinada pelo jornalista Francisco Almeida Leite.

II

O provedor começa então o seu artigo por dizer que foi primeiramente alertado para o teor da notícia por «um leitor "meio ensonado"» e, pelos vistos, mal disposto. «O leitor, AJF, que me escrevera "às 5 e 43" da manhã, declarava-se "incrédulo"» — diz Óscar Mascarenhas.

Além do suposto leitor AJF que a notícia, «logo por azar, tirou da modorra (...) às 5 e 43 da manhã», o provedor é inspirado ainda por um tal MH e por um MG e sente-se, por isso, obrigado a tentar explicar que os leitores citados (!) se identificaram perante ele «de modo suficiente, não podendo ser considerados anónimos».

Claro que podem e devem ser considerados anónimos, porque é assim que eles caem no artigo do provedor como mosca na sopa — artigo em que ele tanto lamenta a falta de fontes de Francisco Almeida Leite.

III

Sugiro que leiam aqui o insustentável artigo completo de Óscar Mascarenhas, que inclui a posição correcta tomada por Francisco Almeida Leite (que também invoca o inegável interesse público da matéria), a qual é ainda sustentada pelo director de serviço desse dia, o subdirector do DN Nuno Saraiva.

O que Óscar Mascarenhas no fundo contesta é outra coisa muito básica que apenas confirma a sua conhecida e longa familiaridade com uma certa esquerda enquistada, bacoca e passadista, protesto esse que se resume ao facto de o jornalista se ter baseado declaradamente num documento interno do Governo.

O provedor chama-lhe propaganda e diz que faltou procurar o contraditório nos sindicatos que ele, está bom de ver, gostaria que tivessem sido abordados. Reparem só como o título do provedor, com despropositada ironia e mau gosto, deixa precisamente este rabo de fora: «Contraditório porquê se a fonte da notícia foi alguém do Governo?» é esclarecedor o bastante.

Com isto, se houvesse um prémio destinado ao “Melhor Provedor das Fontes Anónimas e Ensonadas", Mascarenhas venceria sem dificuldade. Mas a verdade é que ele já tem o Óscar. E eu, perante o caso, recordo-me de repente da ex-provedora dos leitores do DN Estrela Serrano e palpita-me que corro o risco de até começar a achar que fui injusto quando não gostava dela nessa altura.

Pontos nos is (12)

João Carvalho, 29.02.12

DESACORDO

I

O secretário de Estado da Cultura disse ontem que o Governo se prepara para alterar o chamado Acordo Ortográfico (AO) até 2015 e que cada português é livre para escrever como entender.

Ontem à noite, na TVI-24, Francisco José Viegas manifestou o seu desacordo face a algumas normas do AO e lembrou que, «do ponto de vista teórico, a ortografia é uma coisa artificial» que pode ser mudada: «Até 2015, podemos corrigi-la, temos essa possibilidade e vamos usá-la. Nós temos de aperfeiçoar o que há para aperfeiçoar. Temos três anos para o fazer.»

Sobre a polémica em torno da decisão de Vasco Graça Moura, que chegou ao Centro Cultural de Belém (CCB) e cancelou a aplicação do AO que foi encontrar já em vigor, o secretário de Estado da Cultura fez notar que o actual presidente do CCB «é uma das pessoas que mais reflectiu e se empenhou no combate contra» o AO. Mais: notou também que foram aqueles que «não têm qualquer intimidade, nem com a escrita, nem com a ortografia», que correram a «criticar e pedir sanções» perante a "ousadia" de Vasco Graça Moura. «Para mim, é um não-problema. Os materiais impressos e oficiais do CCB obedecem a uma norma geral que vigora desde 1 de Janeiro em todos os organismos sob tutela do Estado. O Vasco Graça Moura, um dos grandes autores da  nossa língua, escreve como lhe apetecer.»

Francisco José Viegas contou ainda que, «às vezes, quando escrevo como escritor, tenho dúvidas e vou  fazer uso dessa possibilidade, como todos os portugueses podem fazer uso dessa  possibilidade, isto é, da competência que têm para escolher a sua ortografia». E acrescentou: «Não  há uma polícia da língua. Há um acordo que não implica sanções graves para  nenhum de nós.»

II

De uma coisa tão simples e que tão escusamente tem feito correr tanta tinta, três conclusões imediatas se tiram.

Uma delas é a de que, se a teimosia bacoca de ex-responsáveis não tivesse impedido a falta de visão que levou a que políticos se substituíssem aos linguistas, não se teria perdido o tempo que se perdeu. Curiosamente, nunca como no passado recente de tais ex-responsáveis se falou tão mal português na vida pública.

Outra conclusão possível pode tirar-se do inexplicável paradoxo da notícia que serviu de base a este post (cujo link está no início), na qual se percebe o ridículo da divulgação desta posição acertada de Francisco José Viegas num texto noticioso escrito (repare-se) segundo o AO. Fica a lição para os apressadinhos-da-silva, aqueles que não aprenderam a reflectir e que, habitualmente, "não têm qualquer intimidade, nem com a escrita, nem com a ortografia", porque ridídulo mais ridículo não há.

A terceira conclusão é a que arrasa definitivamente os arautos da desgraça, que tanto espernearam por causa do cancelamento do Ministério da Cultura. Fica mais do que provado que um governo aberto à Cultura e ao que nos caracteriza como povo com História não se mede por ter no topo um ministro ou um secretário de Estado na pasta: parece-me bastante saber que Francisco José Viegas é um homem de Cultura (como já aqui referi).

Finalmente, a talhe de foice, o papel do DELITO DE OPINIÃO enche-nos de satisfação e continuará a contribuir para travar o famigerado AO. Por modesta que possa ser a nossa contribuição, este vosso blogue manter-se-á na senda do bom português e na luta contra o indesejável desacordo (no que, por sinal, temos contado com grande parte dos nossos comentadores). Sem embargo de qualquer dos autores do DO ser livre de fazer o uso da língua que mais lhe aprouver, o facto é que nesta casa se verifica que o DELITO representa um acordo e que o AO é que é um delito.

Pontos nos is (11)

João Carvalho, 15.02.12

 

AUTARQUIAS

I

Além de adepto da "associação autárquica de micro, pequenas e médias rotundas", Luís Filipe Menezes já lançou dezenas e dezenas de quilómetros de ciclovias em Vila Nova de Gaia, mediana, modesta e parcialmente usadas por uns ciclistas mais ou menos furtivos e por alguma garotada de patins-em-linha e skates.

Não satisfeito por presidir a uma autarquia que apresenta a maior das dívidas entre os municípios nacionais, está a lançar mais uns tantos quilómetros de ciclovia na freguesia da Madalena, num dos mais pacatos lugares do concelho e onde o movimento automóvel se assemelha à quantidade de habitações: pouco mais que nada. Para quem quiser saber, é na longa Rua do Cerro, entre pinheiros e eucaliptos (v. fotos).

Longe dos dramas que o País está a viver, ele despeja onde lhe apetece verbas que não tem, de olhos fechados à crise que consome milhares de famílias do concelho que ele gere como lhe dá na real gana.

A gente entende: Menezes já tem ameaçado que quer candidatar-se à câmara do Porto. Em Gaia, quem vier a seguir que apague a luz.

 

 

II

Este caso é um exemplo simples do defeito monstruoso em que incorreu quem quis limitar o número de mandatos dos autarcas, mas não quis impedir que eles tentem alcançar as autarquias vizinhas. Menezes não teria legislado melhor para si mesmo. Nem ele, nem o Valentim, nem o Seara, nem o Isaltino, nem nenhum daqueles que todos sabemos.

Aqui fica o registo das rotundas e ciclovias de Menezes (iguais às de tantos outros, mais ou menos falidos), que também aproveita para refazer passeios desnecessários onde não há edifícios, quando toda a gente sabe que a construção de passeios é estabelecida pelos municípios, mas constitui uma obrigação de quem ergue casas e prédios novos.

Nem de propósito, este registo sobre a autarquia mais falida do País fica aqui no dia em que o ministro Miguel Relvas pede aos autarcas que deixem de construir obras de fachada (precisar de fazer este apelo já devia envergonhar os autarcas) e concentrem os recursos possíveis a minorar as dificuldades nacionais.

Fotos © macarvalho

Pontos nos is (10)

João Carvalho, 27.01.12

TOMATES

Já se sabia, mas confirmou-se: o primeiro-ministro foi firme e o ministro das Finanças foi inflexível. O dinossáurico líder madeirense viu caírem por terra praticamente todas as suas promessas eleitorais essenciais e caírem para as urtigas as sucessivas ameaças que constituíram o seu show-off mais recente.

Ficou, portanto, tudo mais claro e entendido. Tudo, excepto uma coisa: Alberto João Jardim não se demitiu porque a dignidade política está em extinção, ou porque ficaria sem guarda-costas a protegê-lo dos tomates e ovos podres da sua região?

No fim, como às vezes ainda vai acontecendo, acaba por ver-se facilmente que "o rei vai nu".

Pontos nos is (9)

João Carvalho, 18.01.12

SOCIALISTAS

Num rápido olhar pelos noticiários televisivos, deparei hoje com três dos diversos Partidos Socialistas que teimam em existir e persistir em Portugal: o Partido Socialista crescidinho, o Partido Socialista lamuriento e o Partido Socialista apalhaçado. Vejamos o que aconteceu hoje para os ver quase unidos de uma só penada.

 

O Partido Socialista crescidinho é aquele que ora diz que percebe e aceita as medidas lançadas pela actual maioria, ora diz o contrário, mas sem convicção e apenas para se defender de modo medíocre e com vergonha de não ter sido sério na governação do passado recente. Este PS crescidote foi representado hoje pelo ex-ministro das Finanças Teixeira dos Santos, homem que nem sei se já teria passado a ser militante socialista, mas que veio a público garantir que concorda com as medidas adoptadas pelo Governo actual e até as apoia e subscreve. Claro que este PS, mais a mais com figuras como Teixeira dos Santos, está longe de ser recomendável, por motivos óbvios, mas é o melhor que pode arranjar-se.

 

O Partido Socialista lamuriento é aquele que levou hoje um deputado à tribuna do Parlamento para declarar esta coisa interessantíssima: o actual Governo conseguiu um acordo com assinaturas bastantes para lhe chamar concertação social, mas perdeu muito tempo para o obter. Por outras palavras: o PS choramingas tem necessidade absoluta de encontrar sempre um ponto de discórdia que lhe garanta um lugar na oposição, por mais absurdo que seja. No caso, tem de reconhecer-se o provável esforço, que não deve ter sido fácil a este PS, para encontrar um deputado capaz de subir à tribuna da Assembleia da República para perorar sobre nada, juntando uma lamentável vitória ao tempo lamentavelmente perdido para chegar a uma não menos lamentável vitória.

 

O Partido Socialista apalhaçado é aquele que consegue reunir, como hoje, três figuras que têm claramente em comum a sempre forte probabilidade de co-protagonizar as mesmas anedotas. A saber:

– Alberto Costa, o ex-ministro que um belo dia julgava que estava a ser conduzido para a Justiça sem perceber que estava a ser levado para a Administração Interna e que ficou tão furioso com isso que se zangou com os polícias depois de tê-los mandado investir contra cidadãos que protestavam;

– Vitalino Canas, o ex-porta-voz e ex-coisas-parecidas que já é muito grande para continuar a ser júnior e não se vislumbra que consiga um dia ser sénior porque nunca convence que já não é um júnior;

– Isabel Moreira, a jus-constitucionalista que, neste País de jus-constitucionalistas, só se distingue dos outros jus-constitucionalistas por falar invariavelmente do alto de uma cátedra que foi só ela que ergueu com as suas próprias mãos para seu uso exclusivo e também por se apresentar sempre despeitada e com cara de quem tem os salários em atraso.

Pois estas três figuras deste PS anedótico deram hoje nas vistas por se terem juntado a pedir ao Tribunal Constitucional que verifique a posteriori se os cortes de subsídios e quejandos são medidas constitucionais ou não. Querem eles dizer, no seu pensamento profundo e sem-mais-nem-para-quê, depois dos longos debates parlamentares que sabemos e nos quais nem demos por eles, que Portugal tem duas possibilidades: ou não passa cartão a este trio sem ideias, faz cortes e tenta recuperar, ou lhes dá razão e não faz cortes porque o País está constitucionalmente condenado a ser deitado ao mar sem botes e sem coletes salva-vidas.

 

É por estas e por outras de igual estilo que os socialistas, todos eles, de todos os Partidos Socialistas que temos, me deixam comovido. Fico quase sempre muito emocionado quando eles se mexem. Quando mexem os lábios, sobretudo.

Pontos nos is (8)

João Carvalho, 06.01.12

MAÇONARIA

I

José Xavier Mouzinho da Silveira (1780–1849) matriculou-se em Outubro de 1797 na Faculdade de Direito de Coimbra, onde obteve o grau de bacharel cinco anos mais tarde e terminou a formatura com a classificação final de nemine discrepante a 10 de Julho de 1802.

Colaborou na resistência às Invasões Francesas e esteve colocado em Marvão, de onde foi tranferido para ser empossado como juiz de fora na então vila de Setúbal a 29 de Maio de 1813, lugar que manteve até 22 de Novembro de 1816.

«Sete anos mais tarde, o corregedor da comarca vai acusá-lo de ter propagado em Setúbal a seita dos "pedreiros-livres", garantindo constar que até "estabelecera duas lojas deles, sendo um libertino de primeira ordem, e tão escandaloso que nunca ouvia aqui missa". Sem dúvida, quando se fala do movimento liberal, a Maçonaria está necessariamente implícita e faz tempo que Mouzinho, no mínimo, se sente muito chegado aos maçons com quem costuma privar.» (O Supremo Tribunal de Justiça em Portugal: Dois Séculos e Quatro Regimes de Memórias; João Carvalho; STJ, 2003.)

Como se vê, mesmo sem ser líquido que Mouzinho da Silveira fosse já um maçon aos 30 anos, foi acusado de o ser, pois era um libertino que parece que nem ia à missa. Uma acusação proferida e posta a circular por um superior de Mouzinho, que se referia ao eventual comportamento dele sete anos antes.

II

Mouzinho foi uma figura de proa do Liberalismo e até do Portugal que temos hoje. A sua reforma administrativa era totalmente irrealista na dimensão, mas foi em frente com alterações insuficientes e ainda agora está por corrigir. Contudo, a sua construção de raiz de uma nova Justiça independente revelou um trabalho sem paralelo que ainda prevalece e que já então colocava Portugal entre os países mais avançados, segundo um regime com um sistema judicial que ainda é comum aos Estados civilizados.

Em suma: há coisas que a Maçonaria não pode tolher, como sejam a questão civilizacional que nos consome, a transparência do desempenho político, a ética na gestão dos assuntos públicos. Se assim não for, certas obediências, obscuras ou não, tornam-se incongruentes e destituídas de sentido, especialmente quando reclamam o seu altruísmo e os seus elevados valores.

Enquanto se trocam galhardetes ocos, convém recordar que o País fica a marcar passo em discussões menores e o tempo escasseia cada vez mais para os avanços imprescindíveis. Tenham juízo e tentem manter a cabeça levantada. Lembrem-se que Mouzinho foi um exemplo indiscutível de patriotismo, entrega e seriedade.

O único problema que actualmente se coloca entre quem exerce cargos e funções políticas de relevo é simples: estão a ser sérios ou não? Porque o facto é este: a exigência que todos fazemos não tem de estar incluída ou de vir a fazer parte de qualquer estatuto político. Pode incluir-se, sim, se fizerem muita questão disso, mas o que se quer de facto sempre fez parte de qualquer estatuto. Chama-se seriedade — e isso é obrigatório.

Pontos nos is (7)

João Carvalho, 23.12.11

ANEDOTÁRIO

I

«No contexto desta privatização» da EDP, o primeiro-ministro «foi visitar a sede de uma das empresas que agora é concorrente e foi, muito pouco tempo antes, com o Financial Times a dizer que o senhor, a mando da senhora Merkel, lá terá ido promover a participação desta empresa no concurso da privatização». Estas palavras datam de há poucos dias e são do coordenador do BE. Foram proferidas durante o recente debate quinzenal na Assembleia da República, com a presença do Governo no hemiciclo.

Francisco Louçã entendeu desferir assim a acusação implícita de que Pedro Passos Coelho estaria a apadrinhar a entrada dos alemães na EDP. Passos Coelho tinha ido antes à Alemanha e Louçã achava que ele fôra visitar a E.On, interessada na privatização da EDP. Por isso, acusava o primeiro-ministro de se ter prestado a «promover a participação» alemã e desafiava-o a esclarecer, «perante o Parlamento e os portugueses, o que é que foi fazer à sede da E.On, que é agora uma das concorrentes à privatização da EDP».

Na resposta, o primeiro-ministro desmentiu Louçã ao garantir que nunca visitara a sede da E.On e explicou: «É público, porque a reunião foi pública, que quando estive na visita bilateral que realizei a Berlim, ao Governo alemão, o presidente da E.On pediu para ser recebido por mim e eu recebi-o, de resto, numa audiência pública, que conteve comunicação social, em que o presidente da E.On me quis manifestar o interesse directo da empresa na privatização da EDP.»

Referindo-se à apreciação do processo de privatização, Passos Coelho adiantou´que «a decisão que o Governo vier a tomar será tomada em conselho de ministros, depois de receber o relatório que será feito pelos assessores financeiros que estão como advisers da operação a fazer a apreciação das propostas e a negociação que deve ser realizada». E aproveitou para acrescentar frontalmente a Louçã que não devia alimentar «qualquer equívoco» sobre o assunto, porque «não há nada mais transparente do que isto».

II

Na verdade, a decisão foi tomada ontem em conselho de ministros e nada transpirou sobre ela até o Governo a comunicar. A candidata vencedora, como é público, foi a China Three Gorges. Portanto, tal como as restantes concorrentes, também a alemã E.On ficou afastada.

Igualmente afastado ontem esteve Francisco Louçã. Nem uma palavra sobre a lisura do processo que tanta gente se apressou a reconhecer, nem um pedido de desculpas pelas afirmações desbocadas contra Passos Coelho no Parlamento. Nada. Emudeceu repentinamente.

O efeito anedótico dos golpes da retórica de Louçã são ainda mais hilariantes quando nos lembramos da fórmula que ele utiliza sempre: aquela já gasta técnica discursiva da colocação de voz à pároco-de-aldeia-a-fazer-um-sermão-num-funeral, em tom macio e aveludado para não perturbar o sono dos justos, mas acentuando de modo arredondado certas palavras-chave aqui e ali, que parece elevarem-se-lhe da alma em falsa surdina.

Fica-lhe mal, apesar da risota, o triste exemplo de desferir insinuações e acusações que a realidade desmente e depois pôr-se a assobiar para o lado.

Quanto à entrada cíclica do coordenador-mor do BE no anedotário nacional, resta notar que isso só não o afastou (ainda) da coordenação do partido por um motivo: é que cada vez tem menos partido para coordenar.

Pontos nos is (6)

João Carvalho, 07.12.11

EXPLICAÇÕES

«O ex-candidato à liderança do PSD Paulo Rangel afirmou hoje que o Governo devia ter explicado antes e melhor o "excedente" de dois mil milhões de euros resultante da transferência do fundo de pensões da banca para a Segurança Social.» O eurodeputado Paulo Rangel, como quase sempre, gosta de tudo muito bem explicado.

O que Paulo Rangel nunca explicou muito bem é o motivo aparentemente fútil de pequena vaidade que o levou a votar contra uma Emenda proposta no Parlamento Europeu que visava pôr fim às viagens aéreas em classe executiva entre Lisboa (ou Porto) e Bruxelas. Foi nos primeiros meses deste ano, em plena crise.

É bom que comecemos a contrariar o velho vício da memória curta que faz parte dos nossos desleixos colectivos tradicionais. As explicações que ficam por dar não devem apagar os factos nem branquear os princípios.

Pontos nos is (5)

João Carvalho, 04.12.11

INSEGURO

Ontem, num jantar socialista de Natal, António José Seguro disse que a reforma do poder local "não pode ser feita a régua e  esquadro a partir de um gabinete em Lisboa". Não. Também disse que "qualquer reforma sobre o poder local tem que ser feita com bom senso, equilíbrio, critério". Sim. Disse ainda que qualquer reforma do poder local exige que se ouçam primeiro as populações e os autarcas e que a extinção de freguesias em zonas rurais deve respeitar "a identidade e a história que ligam as autarquias aos portugueses". Nim.

Anda meio perdido, o líder socialista, no que se refere à reforma administrativa do País: "Onde há possibilidades de fazer reformas no poder local é na malha urbana." É? Não é. Naturalmente, há casos urbanos a repensar, mas é no mundo rural que as discrepâncias mais se acentuam, com muitos municípios e freguesias onde os cidadãos em geral e os eleitores em particular não enchem uma rua citadina.

Não há como fugir aos números. Por muito que custe a Seguro, o princípio numérico não é o ponto único em análise, mas tem de ser ponto essencial num critério sério.

Alimentar a existência de municípios marcadamente rurais (ainda subdivididos em freguesias) onde o tecido populacional não atinge os números de qualquer freguesia urbana média é sobrevalorizar a divisão administrativa que temos, irracional há muito tempo (para não dizer que é irracional desde Mouzinho da Silveira). A menos que se queira defender uma reforma de sinal contrário: rever apenas a malha urbana, como Seguro sugere, seria fazer crescer os órgãos autárquicos.

Opta pelo mais fácil, este Seguro claramente distante da postura política desejável: o apelo para que seja atendida a vontade das populações e dos autarcas é tão primário que nem parece de quem anda na política há décadas. Como se percebe, ninguém vai querer, de bom grado, ser atingido por uma reforma que pretende reduzir a estrutura autárquica, mas isso nada resolve.

A extinção de órgãos autárquicos, para o secretário-geral do PS, agrava a situação das populações: "Já lhes levaram o médico, a escola e o centro de saúde. O Estado não  tem o direito de desproteger e abandonar esses portugueses só por viverem numa terra distante do progresso." Seguro critica com isto, afinal, a própria receita de anos do PS. Ainda por cima, exprime-se mal ao ignorar que o Estado é a totalidade dos portugueses e não só aqueles que lhe dão jeito no momento.

Inversamente, Seguro teria dado mostras de visão política se, assumindo a redução de autarquias pela respectiva aglutinação e concentração, tivesse declarado que só assim poderá pensar-se no regresso do médico, da escola, do centro de saúde, etc., justificado pelas populações que servirão. Não quis fazê-lo e perdeu-se.

Seguro está inseguro neste assunto. É lamentável, porque a reforma administrativa tem uma importância que não se compadece com intervenções básicas e redundantes. Diz ele estar "cheio de energia, ideias  e propostas". Só por graça. Com estes brinquedos, fica-lhe mal o papel de Pai Natal.

Pontos nos is (4)

João Carvalho, 23.11.11

INSUPORTÁVEL

Sobre o défice nas contas da Madeira que Alberto João Jardim foi conduzindo à socapa nestes últimos anos, já todos nós sabemos o que precisávamos de saber. Quanto ao insuportável défice democrático que o líder da maioria madeirense impôs há muito na região autónoma, era suposto que já fosse coisa caída no passado e coberta por um véu, para que se esquecesse. Puro engano. Veio agora à luz do dia que Jardim continua a cultivar os tiques pouco recomendáveis de sempre.

Perante a curta maioria obtida recentemente pelo PSD-Madeira no Parlamento regional, onde dispõe apenas de mais dois deputados do que a oposição, Jardim decidiu encontrar uma solução que lhe assegurasse a vitória nas votações de todas as suas iniciativas parlamentares. Simples: é arranjar maneira de que o voto de qualquer deputado passe a ter o valor numérico de todo o grupo parlamentar. (Pensando bem, nem se vislumbra qualquer utilidade na manutenção parlamentar dos deputados: cada partido deve passar a ter um só deputado com direito ao número de votos conquistados nas eleições.)

Com esse objectivo, adivinha-se o plano de Jardim: pôr os seus lacaios a escrever uma proposta naqueles termos para levar à Assembleia Regional e garantir que no dia da votação dessa proposta todos os 25 deputados do PSD-Madeira estariam presentes. Mesmo que nunca mais voltassem a ver-se presentes na totalidade, todas as propostas futuras passavam a estar no papo dos chicos-espertos.

Jardim, na senda habitual do défice democrático que plantou e senhor de conhecidos tiques absolutistas nas duas ilhas onde reina, promoveu desta vez uma trapaça: dono dos dados e das cartas do jogo, alterou as regras do jogo e ainda foi a jogo. Ganhou, claro.

Falta agora confirmar que Portugal é um Estado de direito com um regime democrático constitucionalmente consagrado. Não sei se vai caber ao Tribunal Constitucional, não sei se vai ser preciso alguém apresentar queixa e não sei se Jardim vai espumar pela boca. Nem quero saber.

Só sei que a história não vai acabar assim, com o insuportável défice democrático assente de pedra-e-cal na Madeira. A história não vai acabar assim, pois não?

Pontos nos is (3)

João Carvalho, 22.11.11

CHOURIÇOS

Estou farto de ouvir dizer cobras-e-lagartos de João Duque e do relatório da comissão que liderou sobre o futuro da RTP. Dizem os opinadores correntes que ele nada sabe de televisão, que as conclusões constituem uma aberração e que o serviço público televisivo deve ser garantido pelo Estado. Ora, como eu também sou parte do Estado, nada mais razoável do que pedir licença para apontar o que penso sobre o assunto. Divido o apontamento nos mesmos três pontos que tanto andam a excitar os comentadores do costume: o que João Duque e a comissão ad hoc sabem de televisão, as consequências do relatório e o papel da RTP.

 

Primeiro, manifesto já o meu enorme espanto por haver tanta gente a achincalhar João Duque. Como é que um tão grande número de iluminados pode acusá-lo de nada saber de televisão, é para mim um mistério. Pois se há tantos a saber tanto sobre televisão ao ponto de tentarem desmontar todo o trabalho realizado, se até é uma característica bem portuguesa todos nós termos uma opinião a emitir sobre tudo, faz algum sentido deixar de fora João Duque? Não faz. Só por preconceito, o que retira imediatamente qualquer valor aos que andam a perorar.

Depois, há que reconhecer um aspecto que ainda não vi focado: ao contrário dos hábitos que nos são mais familiares, a comissão foi célere. Não andou a perder tempo ou a enrolar uma meada sem fim. Foi nomeada, trabalhou como lhe competia, registou o que entendeu e despediu-se. Num ápice, honra lhe seja feita. Concluiu bem ou mal? Na verdade, para se ser justo é preciso que se diga que nem concluiu de facto, porque a última palavra pertence ao poder político. O que a comissão (que integrou nomes reconhecidamente sabedores de televisão, sublinhe-se) fez foi analisar a realidade e acordar numa saída para uma situação claramente insustentável. Cabe ao poder político aceitar ou recusar o trabalho e decidir com a legitimidade obtida recentemente em eleições.

Em terceiro lugar, o serviço público que se esperaria da RTP (usando o exemplo inevitável do canal principal em sinal aberto) está muito, muito longe dos mínimos desejáveis. Ora porque se cola à programação das televisões privadas com o olho nas audiências, ora porque não se cola e não sabe o que há-de fazer além de encher chouriços — chouriços que ficam pela hora da morte, mais caros que as morcelas gourmet da mesa do rei — o certo é que andamos todos a pagar ordenados principescos que seriam obscenos mesmo que fossem entregues aos melhores profissionais do mundo. Convém lembrar ainda que o número de pessoas da RTP, incluindo os que ganham sem trabalhar nem encher chouriços, corre o risco de ultrapassar o dos funcionários da Administração pública.

 

Para terminar, já que nenhum daqueles opinadores habituais o referiu, deixem-me que lembre que o presidente da RTP foi recentemente à Assembleia da República explicar perante os deputados de uma comissão os seus pontos de vista. Disse ele, em resumo, que a RTP é quase fantástica, mas que até consegue fazer melhores enchidos com menos gorduras. Fazer mais com menos? É isso? E ninguem lhe pergunta porque é que não fez? Palpita-me que João Duque seria incapaz de reconhecer que andava a fazer menos com mais. Seguramente, por não ter o perfil dos que sabem imenso de chouriços e de televisão. Ainda bem.

Pontos nos is (2)

João Carvalho, 21.11.11

DECISÕES

I

Sempre que ouço dizer que o Governo atirou fora as questões da Cultura dá-me vontade de rir. Lamento que isto assim dito por pessoas que têm responsabilidades públicas arraste gente anónima que facilmente absorve este tipo de pregões, mas estou-me nas tintas por dois motivos:

— não é a primeira vez que a representação governamental da Cultura deixa de ter um ministro e passa a ter um secretário de Estado;

— a Cultura não dá de comer no imediato a quem tem fome e os tempos são de óbvia e necessária austeridade, o que obriga a hierarquizar com especial critério a intervenção de quem governa.

Porém, acho que há ainda uma boa razão para contrapor aos pseudo-críticos do costume. Desde logo, a vida tem-me demonstrado que a intervenção institucional na Cultura é um tema que suscita sempre ideias geniais à mais distinta intelectualidade da nossa praça, enquanto do lado de fora, mas que os mais iluminados, quando se vêem a decidir, perdem depressa a imaginação criadora e a acção raramente ultrapassa a simples distribuição de verbas (leia-se: redistribuição de impostos).

A boa razão a que me referia é, pois, um dado substantivo e não um devaneio: a Cultura institucional está entregue a um homem de cultura que nada tem a provar para fazer currículo. Chega-me.

II

Vem agora a talhe de foice registar a decisão de Francisco José Viegas, não por ter substituído o director do Teatro Nacional D. Maria II, mas sim por ter demitido Diogo Infante do cargo.

Digo isto sem querer saber das possíveis qualidades de quem foi demitido. Diogo Infante pode ser um excelente actor, encenador, líder de uma companhia de artistas e até um bom economista, dentista, jornalista ou motociclista. Não me interessa. Interessou-me saber, em data recente, que era um mau director do Teatro Nacional D. Maria II, ao exceder as suas funções de modo inadmissível e com consequências públicas de claro impacto.

Ora, ao contrário dos péssimos hábitos portugueses, quando Diogo Infante declarou que a época de 2012 ficava sem efeito, não houve inquéritos nem quaisquer daquelas coisas que ficam a arrastar-se de gabinete em gabinete para intermináveis trocas de argumentos. Nada. O secretário de Estado apontou-lhe a porta de saída sem mais sobressaltos. Caso encerrado.

Teria Diogo Infante fundamentação para encerrar uma das mais importantes instituições culturais do Estado? Dou de barato: até podia ter. Contudo, faltava-lhe o fundamento dos fundamentos, o fundamento supremo, o fundamento indispensável: Diogo Infante não foi eleito pelos portugueses para qualquer posto que lhe permitisse tomar decisões políticas. Não fazia parte das suas atribuições.

O poder político está legitimado por eleições recentes e Francisco José Viegas está à altura do cargo. É bom saber que as questões da Cultura, afinal, não foram atiradas fora, mesmo que os meios sejam modestos. Chega-me.

Pontos nos is (1)

João Carvalho, 19.11.11

EMPOBRECIMENTO

O termo anda gasto. Começou por servir para lembrar que temos um caminho duro para percorrer e, desde então, a nossa (!) Esquerda faz dele uma marca do tempo, uma característica capaz de distinguir a nossa crise da situação periclitante generalizada que consome outros povos por essa crise fora, uma diferenciação que nos confere um lugar marcado na plateia das crises que grassam. E como o faz essa Esquerda? Histericamente, de dedo acusador em riste, como se fosse coisa nunca vista, impensável e completamente ao arrepio de tudo o que pudesse ser razoável acontecer-nos.

Não viria daí qualquer mal ao mundo, se não fosse tal atitude um ditame básico de certa(s) ideologia(s). Aproveita-se a fragilidade dos mais frágeis, acrescenta-se a dos que estão a fragilizar-se e junta-se a dos que temem a fragilidade que se aproxima como um susto. Porquê? Faz parte do plano básico: toda a gente sente o drama e alinha inconscientemente com os que bradam. Não por concessão ideológica, mas por parecer que discordar resolve o assunto e altera a triste realidade. Alinha-se por mero desabafo, portanto.

Vamos então ao ponto. O empobrecimento é chocante? Até pode ser, mas nada existe que o substitua. Todos o sabemos, se pararmos para pensar antes de alinhar no coro de protestos. Sabemos que andámos anos e anos a viver com mais do que tínhamos, a gastar acima do que auferíamos, a comprar mais do que podíamos e a recorrer a linhas de crédito acima das nossas possibilidades.

Chegada a hora de arrumarmos as contas, temos de fazer o quê? Temos de viver com o que temos, de gastar só o que auferimos, de comprar só o que podemos e de esquecer o recurso ao crédito. Isto é: temos de viver com menos, muito menos. Significa isto que temos de viver pior, abaixo dos hábitos que criámos. Claro que devemos trabalhar mais, para minorar as consequências, mas o próprio trabalho escasseia e a receita fica sem tradução.

Ora, isso quer dizer que nos resta empobrecer. É isto o empobrecimento. Inevitável. Fizemos vida de ricos com dinheiro de remediados, agora caímos na realidade, mas já cheios de dívidas e sem posses. Se alguém quiser interromper os protestos para apresentar alternativas, que o diga já ou que se cale para sempre. O resto é folclore de muito mau gosto.

Por falar em religião

Teresa Ribeiro, 27.10.09

Se há coisa que me encanita é ouvir católicos usar a expressão "cristãos" para designar unicamente a sua comunidade, como se não existissem mais cristãos debaixo do Sol.

Esse tique começa pela própria hierarquia da Igreja, que devia, sobretudo nos tempos que correm, ter mais cuidado com a etiqueta relativamente a quem partilha a mesma, a mesmíssima religião, matriz de toda a cultura do ocidente.