CASOS
I
O caso Miguel Relvas/Público descambou para um novo caso inacreditável e inesperado: o caso Arons de Carvalho. O que distingue os dois casos é ainda mais incrível: se o primeiro é um caso real, o segundo é surreal.
Como se sabe, o «processo de averiguações relativo ao caso das alegadas pressões ilícitas do Ministro-Adjunto e dos Assuntos Parlamentares, Miguel Relvas, sobre o jornal Público», conduzido pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), culminou com uma contida deliberação do conselho regulador da mesma ERC. Em tudo quanto as duas partes, ministro e jornal, não coincidem e perante as posições de palavra contra palavra, o conselho regulador da ERC não elabora considerações inconsistentes, ficando-se pela matéria recolhida: «não se deu por provada a existência de pressões ilícitas da parte do ministro», «não se verificou a existência de um condicionamento da liberdade de imprensa» e outras conclusões de teor igualmente provado durante as averiguações, assinalando sem quaisquer devaneios as discrepâncias encontradas.
Aquela deliberação, porém, não mereceu unanimidade na ERC: dos cinco votos do conselho regulador, dois foram contra. Um dos vencidos foi Alberto Arons de Carvalho, que entendeu pronunciar-se através de uma declaração de voto.
II
É essa declaração de Arons de Carvalho que constitui um caso que, por qualquer motivo ainda por explicar, não está a merecer o relevo que devia ter. O extraordinário pensamento de Arons de Carvalho devia dar que pensar. Devia dar que pensar, desde logo, à própria ERC, dar que pensar porventura ao ministro Miguel Relvas (para quem a comunicação social não é totalmente alheia às suas funções), dar que pensar talvez ao jornal Público (que aparenta preocupar-se com a ética e deontologia do jornalismo) e dar que pensar seguramente a todos nós.
Sem querer ser exaustivo, fico-me pelas duas razões de fundo apresentadas por Arons de Carvalho no voto de vencido, para que melhor se avalie a sua espantosa posição.
Inclina-se Arons de Carvalho para o juízo que diz fazer «da verosimilhança das declarações» da directora e da editora de política do jornal, que refere serem «duas experientes e prestigiadas jornalistas, sendo absolutamente inimaginável que tivessem inventado as frases que atribuem ao ministro». Está visto que Arons de Carvalho não é um admirador de Miguel Relvas, o que parece legítimo, ou não lhe reconhece experiência e prestígio, o que continua a ser legítimo, mas não deixa de ser uma deselegância inadequada ao promover as qualidades de duas intervenientes da parte contrária.
Além disso, de discordância em discordância com aquela deliberação da ERC votada por maioria, Arons de Carvalho dedica o seu derradeiro pensamento a Miguel Relvas, nestes termos: «Uma ameaça não é grave pelo efeito que tem, mas pelo efeito que se pretendia que viesse a ter...»
III
Arons de Carvalho, ex-secretário de Estado socialista que teve o pelouro da RTP, não é magistrado judicial, o que prova que o mundo ainda não está todo às avessas.
Contudo, se ele fosse juiz, podia condenar um tipo por verosimilhança: tem cara de homicida e tem uma arma, logo é assassino. Não houve homicídio? Não interessa. O tipo com cara de homicida e uma arma de fogo é uma ameaça e, se a sua existência ainda não teve qualquer efeito mortal em alguém, vai dentro na mesma porque a ameaça indica que há-de vir a ter esse efeito, que é o que um tipo com cara de homicida e uma arma pretende que venha a ter.
IV
Espero que a vontade insistente do PS para ter Miguel Relvas de novo na Assembleia da República a responder sobre este caso se centre em argumentos mais sólidos do que as surrealistas subjectividades de Arons de Carvalho. Até porque a gente precisa de ministros a governar como de pão para a boca, não para andarem a responder repetida e infinitamente sobre casos que já cheiram mal.
Como se Arons de Carvalho e o PS tivessem um manual para ensinar como ser ministro e gerir as relações com os jornalistas. O mundo ainda não está todo às avessas, é verdade, mas aproxima-se perigosamente quando as pessoas deixam de respeitar os limites do mero senso comum. Condenar com base numa imaginada verosimilhança e no pretenso efeito não verificado de uma suposta ameaça? Não há paciência para este bafio socialista carregado de poeira, que não vai ser grave pelo efeito que terá, mas que deve dar-nos que pensar pelo efeito que Arons de Carvalho pretendia que viesse a ter...