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Delito de Opinião

Diaconisas Sem-Remédio

Pedro Correia, 18.10.23

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Volto hoje a apreciar muito os filmes das décadas de 80 e de 90, quando ainda não havia os tais "consultores de intimidade" que agora pululam por Hollywood à espreita de um mamilo ou uma nádega - os novos censores, de tesoura em riste. A mando das Diaconisas Sem-Remédio.

Havia muito mais liberdade nessas duas décadas do que existe hoje. Nem se compara.

Um beijo

jpt, 06.09.23

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Fui à consulta de "médico de família", aquela anual comme il faut... Indagou sobre o meu estado físico, blaseei e instaurou-me a vasculha rotineira para a minha classe etária. Perguntou-me sobre o "estado de alma", decerto porque atento ao psicossomático - disse-lhe que sou, e assim me sinto, daquele tempo em que o Woody Allen era símbolo do iconoclasta progressista. De imediato exarou-me uma Certidão de Decrepitude. E receitou um químico de incidência psicológica, de utilização crónica, perpétua avançou. Também me disse para reduzir o sal.

(Woody Allen sobre o beijo espanhol...)

O Beijo Espanhol (2)

jpt, 29.08.23

Mais um capítulo na polémica! Vídeo mostra Jenni Hermoso a rir-se do beijo de Rubiales

A plataforma SAPO publica um curto vídeo (que não é integrável em blog - e não compreendo como uma plataforma que acolhe blogs não inclui uma opção "incorporar" nos vídeos noticiosos que publica, como fazem várias outras plataformas) em que se vê a futebolista Jenni Hermoso e as suas colegas, recém-campeãs, a rirem-se, com humor e sem preocupações ou mágoas, da beijoca entre o presidente da Federação de Futebol e essa futebolista durante a cerimónia final do Campeonato de Mundo de futebol. É evidente o júbilo, brotado da vitória história, mas ressaltado para as brincadeiras entre várias jogadoras que, em coro, referem o brevíssimo episódio. O filme, que decerto muito em breve estará em plataformas que permitem a sua captação para blogs, está aqui.

Como é sabido, passados dias, após a estratégica intervenção de ministras socialistas espanholas - decerto que influenciadas pelo confronto com os peculiares discursos sobre este tipo de temáticas emanados do partido rival VOX, e isto sublinhado por se estar em pleno processo de formação de governo coligado no país - a jogadora apareceu a lamentar-se do caso, depois secundada pelas colegas. E por todo o lado - desde a patética intervenção do porta-voz da ONU até ao próprio Delito de Opinião, passando pelo primeiro-ministro espanhol até aos patetas televisivos nacionais do costume - cai o "Carmo e a Trindade", denunciando o caso de "assalto", "assédio sexual", de machismo empedernido que teria conduzido a tamanha violência. A própria SAPO destaca hoje um postal lacrimejante sobre o assunto, que remete - dando-lhe estatuto de prova - para um texto de jornalista espanhola que afirma haver machismo e falta de educação entre os membros da federação espanhola de futebol. Nem duvido que haja, mas a questão é outra: o que aconteceu ali, durante a cerimónia?

aqui botei sobre o assunto: o que o homem fez - ainda por cima sendo ele não um "doutor" tutelando a bola nacional, mas um antigo jogador -, é mesmo o inverso, tratou a jogadora "como um homem", replicando um gesto tantas vezes feito pelos praticantes quando em júbilo. Para não me repetir sumarizo: é um gesto assexuado (no sentido de desprovido de erotismo). Basta ver. Voltei ao assunto aqui, diante da histriónica incapacidade analítica de propalados intelectuais. Esse tipo de gente para quem é porreiro surfar as vagas em voga, e botar umas coisas na imprensa...

O assédio sexual (laboral e não só), a violência sexual, o mais abrangente machismo, são temas fundamentais. A combater, pela lei, pelas instituições, pela opinião pública, pela sensibilização. Profissionalmente cruzei casos tétricos disto. Até incríveis, de inacreditáveis, passe a aparente redundância. Mas quando uma mulher feita e realizada, trintona bem sucedida, campeã mundial, se ri a bandeiras despregadas, quando um conjunto de mulheres feitas e realizadas, profissionais campeãs mundiais, se riem a bandeiras despregadas, isso a propósito de um gesto que bem entendem desprovido de qualquer violência ou ameaça, não  podem depois invocar terem estado sob "assalto", "assédio", "violência". Nem há argumentos convocando contextos "infalsificáveis" (a la Popper) que justifiquem estas inflexões interpretativas. Ou seja, entenda-se, como prevalece um machismo violento e desrespeitador aquele gesto é violento e desrespeitador. Isso é um acto falsário, um silogismo aldrabão. E contestar essa evidência, em nome de uma qualquer "boa causa", é apenas desvalorizar, apagar, superficializar, as abissais realidades do "assédio", da "violência sexual", do "machismo", mundo afora. É uma pantomina abjecta. Matéria-prima por excelência para políticos demagogos e para os "activistas" de agora. Mas uma vergonha para quem se veste (ou traveste, melhor dizendo) de intelectual, de militante. Ou, pior do que tudo, de professor. Uma vergonha intelectual. E uma vergonha moral.

E isto tudo independe de Rubiales.

O Bejio Espanhol

jpt, 23.08.23

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Espanha é campeã do mundo de futebol feminino. Na cerimónia no estádio o presidente da Federação exulta e beija uma jogadora. Logo ministras saem à liça dizendo que se trata de um assalto, os defensores das boas causas manifestam-se irados, a internet está cheia de acusações de "assédio" (assim mesmo). E pululam imagens - nem são fotografias, são fotogramas, que dão a impressão de um beijo sensual, o velho "french  kiss", esse nosso linguado. O homem vê-se obrigado a desculpar-se, sinal dos tempos, mas não chega! Pois agora é o próprio primeiro-ministro Sanchez que vem considerar "inaceitável" o gesto e exigir mais do que desculpas - decerto que a demissão do presidente da federação.

É impossível não reduzir tudo isto a uma patética hipérbole discursiva, colonizadora e deturpadora de problemas sociais efectivos - o tal "assédio sexual", a violência masculina, a violência doméstica. E mais ainda, torna-se óbvio que Sanchez vampiriza o facto para uma posição política, sendo sabido que na campanha para as recentes eleições o partido de extrema-direita Vox assumiu uma excêntrica linha discursiva, avessa às questões da luta contra os efeitos perversos do machismo e da violência doméstica. O mundo, a Europa, a própria Espanha seguem como seguem e aquela gente enrodilha-se nestas questões, e vistas deste paupérrimo e histriónico modo. Se a maluquice grassa nas redes sociais e a demagogia acampa nas tais ministras, esta intromissão de Sanchez é mesmo sinal do traste político que o homem é. 

É que nem se justifica argumentar, basta ver o filme - e não ficar agarrado ao fotograma. Trata-se de um efusivo beijo nos lábios, num ápice, seguido de duas vigorosas pancadas nas costas. É um gesto de celebração que os homens hetereossexuais também fazem entre si - e bem me lembro de que quando o lateral-direito Miguel Garcia aos 119 minutos, na sequência de um canto, marcou o golo que apurou o Sporting para a final da então Taça UEFA, saltei da mesa do "Eagles" em Maputo para o colo do amigo Rui B. e trocámos vários beijos destes, tamanha era a nossa felicidade. E inúmeras pancadas nas costas... Há meses, num almoço de amigos ali perto do rio Sousa, bem nos rimos com esta memória.

Andam os espanhóis, por enquanto entregues a este Sanchez bem mariola, e tantos outros a discutir o sexo dos anjos. E o "beijo espanhol". Algo está podre no reino da... Europa. Daí o mau hálito que grassa...

A Caricatura de António Costa

jpt, 14.06.23

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(Santiagu)
 
(Ontem o Pedro Correia aqui abordou de modo suficiente o tema. Mas como deixei no meu Nenhures um outro postal sobre o assunto aqui o replico)
 
Há polémica sobre um cartaz usado pelos professores, caricaturando António Costa. Não discuto a justeza das reclamações da mole docente nem a tipologia das suas acções reivindicativas nem a política do governo na área correspondente - nem sequer isso de Costa ter mentido quando se deparou com manifestantes nas comemorações do 10 de Junho. O assunto é a caricatura de Costa que foi usada. Não gosto dela. Mais pelo detalhe dos lápis espetados nos olhos - que poderá ter um qualquer significado que se me escapa mas ainda que assim seja é vudu em demasia para este ateu.
 
 

 

O Conde de Ferreira

jpt, 31.05.23

Há 11 anos José Capela publicou o livro "Conde de Ferreira e Cª: Traficantes de Escravos", colecção de biografias de comerciantes de escravaturas ("negreiros") do século XIX. Quando ele morreu deixei no "Canal de Moçambique" esta muito breve recensão a esse livro (e a outro que ele publicara no ano seguinte, uma verdadeira pérola: "Delfim José de Oliveira..."). Foi uma espécie de homenagem minha, pois Soares Martins (de pseudónimo Capela) fora muito importante na minha vida e tinha (e tenho) para ele uma enorme gratidão. E um grande respeito intelectual, também (mas não só) por ter passado décadas a vasculhar documentos e a publicar, sem pejo nem adornos, sobre como o comércio de escravos foi estruturante no pré-colonialismo português em Moçambique. E como isso moldou as características do subsequente regime colonial - apesar das tralhas lusotropicalistas e lusófonas que vão subsistindo, já para não falar das dulcificadas invocações dos "bons velhos tempos", que tanto misturam as normais (e respeitáveis) memórias individuais de juventude com pronunciamentos de cariz sociológico. Enfim, talvez com um bocadinho de exagero, mas cheguei aos 50 anos com a sensação de que se tive algum "maître à penser" acabou por ser ele... sem que isso possa macular a sua memória devido às atoardas que vou botando. Mas já estou a divagar, avante,
 
Nesse "Conde de Ferreira..." Capela deixou explícito que vários desses comerciantes de escravos regressaram do Brasil mais ou menos após a ilegalização da actividade e se integraram na sociedade do novo regime liberal (e o financiaram), usando as doações beneficientes para ascenderem socialmente. Nisso também patrocinando instituições que ainda existem (misericórdias, hospitais, etc.).
 
Sei agora por intermédio do historiador João Pedro Simões Marques que aconteceu o que eu esperava há já anos - os cirugiões plásticos da História descobriram o Conde de Ferreira (tão presente por esse Portugal afora, ainda que quase ninguém saiba quem foi). E o "Público" (claro) já está em ardores de expurgar as tais instituições dessa memória...
 
Eu continuo na minha, ao que consta na documentação da época (ainda que um pouco posterior) o malvado D. Pedro I não só castrou um aio devido aos seus ilegítimos actos sexuais (um antecessor do prof. Ventura e seus acólitos, está visto) como matou por mãos próprias uns esbirros do seu pai (e terá até comido parte do coração de um deles, a crer ou no cronista ou na colecção de cromos a que tive acesso). E apesar de tudo isso, que tanto agride os actuais valores, continua ali, plantado no centro do nosso Mosteiro de Alcobaça, como símbolo de amor, ainda por cima. Não será, mesmo, de acabar o que os franceses começaram, e rebentar-lhe com a tumba? Ou, pelo menos, retirá-la dos nossos olhos, evitar aquele elogio à memória da ditadura, da pena de morte e da castração por infidelidade amorosa (invertida ou não)?

A esquerdalhada

jpt, 29.05.23

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Num postal recente usei o termo "esquerdalhada" (que me é habitual). E logo três amigos me enviaram mensagens, pois com ele incomodados. Nos comentários recebidos (no meu mural de Facebook) também surgiu algum desconforto - e mesmo imprecações. Naquela plataforma a ligação ao texto foi partilhada por outros - o que lhes agradeço - em cujos murais também notei algumas reacções desagradadas, até furiosas. Isto mostra a vigência de um sentimento pelo qual sobre os locutores de “esquerda” não se deve verbalizar menosprezo ou desrespeito pelas suas atrapalhadas ou aldrabadas opiniões.

Reacções ao invés das esperadas face à rapaziada da direita. Sobre esta há dois termos que vão surgindo: o mais raro “direitinhas” - em tempos consagrado em banda desenhada publicada no “Diário”, o jornal do PCP dirigido por Miguel Urbano Rodrigues -, mas que não vinga muito dado o tom pouco ferino que aquele sufixo sempre dá. E o mais habitual - e quase automático - “fascistas” (ou “faxos”), uma evidente desvalorização ética e intelectual.

 

 

Expurgar Agatha Christie

jpt, 27.03.23

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Agora todas as semanas segue mais um "expurgo", "protector" das "sensibilidades", "racializadas" ou quejandas. O mais recente  é com os livros de Agatha Christie, toca a retirar-lhes termos que possam ofender alguns trastes - é a instrução dada pela sua editora, atenta aos temíveis efeitos actuais das agressões cometidas pelos pressupostos de época de Miss Marple, Hercule Poirot e restantes personagens daquele pequeno emaranhado pós-vitoriano, tão pequeno-doméstico de facto.

Tendemos a confundir estas trapalhadas - o outro dia foi notícia que uns rústicos americanos, lá de uma aldeia de fundamentalistas cristãos, despediram a directora de escola porque havia mostrado uma obra-prima renascentista aos petizes, ofendendo-lhes as progenituras devido ao pequeno pirilau aposto por Michelangelo ao "David". Gente do mesmo universo que volta e meia é notícia por querer impor o ensino do criacionismo nas suas escolas locais - efeitos directos da peculiar administração escolar dos EUA e consequências do molde de secularismo (comunitarismo) desbragado que vigora naquele país. E que por cá os esquerdistas querem assumir - a maioria dos quais sem mesmo perceber que é disso que falam, tamanha a indigência intelectual que os caracteriza. 

Mas estas “depurações” literárias que se vão acumulando têm outra dimensão… Não provêm de minorias social e geograficamente excêntricas. Vêm embrulhadas no capital “cultural”/“académico” dos proponentes e defensores e estão a penetrar nas administrações dos grupos económicos editoriais. Tornam-se “elite”, “norma”. E há imbecis à nossa volta que os defendem…

Os revisionistas da literatura

jpt, 01.03.23

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Está na berra a aparente patetice (que será, mais do que tudo, uma estratégia comercial muito mariola) de "expurgar" os livros infantis de Roald Dahl dos termos malévolos (entendidos como "discriminatórios"). Esta deriva nem sequer é original - já há anos muitos apareciam a querer mudar os textos de Mark Twain, exactamente pelas mesmas razões... E não só. E isto vai tanto assim, até por cá, que mesmo o Prof. Louçã - antigo coordenador do correctismo político nacional - veio a terreiro dizer que assim também é demais...
 
Esta fúria purificadora fez-me lembrar coisas de há duas décadas, na alvorada dos blogs. Eu já vivia no estrangeiro há bastantes anos, e ia desconhecendo o país. Acima de tudo ia cândido quanto às pantominas reinantes e ignaro das nascentes - e bem pujantes, que eram ainda os inícios do bloco de esquerda -, estas que tanto floriram no bloguismo.
 
Ora uma das primeiras febres do tal "correctismo" que encontrei, até surpreendendo-me, foi o fel vertido contra a "Anita" (colecção infantil que agora é publicada sob o nome original "Martine"), essa que não só lera quando petiz como me preparava para entregar à minha filha, então com 2/3 anos. Para aquela pobre gente a "Anita" era um poderoso instrumento de inculcação do poder machista e outras atrozes malevolências.
 
Vinte anos depois, continuo na minha. Este "correctismo" pode parecer uma mera patetice. Mas é uma vilania, ela sim perversa, no afã de encontrar o demo na literatura infantil ou de tentar arrancá-lo da literatura adulta (local onde ele deve estar presente, e de todas as maneiras possíveis e imagináveis). Mas os "correctistas" ("revisionistas", melhor dizendo) andam por aí...
 
No fundo, ver a "Anita" como alfobre de oprimidas de género é o mesmo que considerar a Miss Marple como cântico à prescrição da virgindade ou Poirot como a malvada ridicularização da emasculação. Ou mesmo os "Cinco" de Enid Blyton como fábrica de lesbianismo.
 
Enfim, naquela época botei um postal, crónica até assustada após ter oferecido à Carolina o seu primeiro livro da "Anita" - ela depois não veio a aderir a esta colecção, preferindo (e que me perdoe a indiscrição) desde muito cedo tornar-se visualizadora/leitora de Astérix, Calvin & Hobbes e Mafalda. Reproduzo-o agora, acima de tudo com saudades de poder oferecer a "Anita" à minha filha:
 
 
Este Natal ofereci à minha mais-que-tudo a sua primeira Anita, "No Jardim Zoológico", ainda que ela mal fale (disse hoje "abião"). Primeiro (egoísta) pus-me a ler, e a reviver as maravilhosas recordações daquelas cores, das ilustrações, e de quem me lia tudo aquilo, me encantava (e me dava sumo de groselha). Segundo (papá) deliciei-me a mostrar todos os animais do Zoo, "o Gato" (é leão, mas há gato em casa), "a Girafa", "o Urso", "a Zebra", e os outros, e a animar todos eles com os bonecos correspondentes que por cá abundam - e a miúda a apontar um homem gordo diante de uma jaula, e a gritar feliz "papá, papá!!" e o meu ego, enfim, o meu ego coitado... Terceiro (motorista) pus o carro na revisão, para irmos rápido ao Kruger avivar os bichos todos.
 
Mas, passo atrás, volto ao Natal. Ao comprar-lhe o livro trouxe outro, o extraordinário "Anita no Circo", para ofertar à filha de três anos de um casal aqui expatriado que viria partilhar a ceia. Chegada a hora dos presentes e os pais da miúda um bocado engasgados, até desagradados "ah, nunca lemos isso", e a mãe quasi entre-dentes a dizer que já os seus pais achavam aquilo muito reaccionário (e isto há mais de trinta anos), e portanto nunca tal tinha entrado em sua casa. E eu meio-aflito, mais valia ter estado quieto, que não me quero meter na educação de cria alheia. Enfim, foram gentis e à saída lá levaram a peçonha sexista e fascista para casa, não sei que destino lhe deram. 
 
"Pronto, paciência, o que vale é a intenção", ecoava-me a mãe da minha, a acalmar-me os resmungos enquanto levantávamos a mesa da janta, eu para ali num "ele há cada um, é só malucos, que paranóias...". Realmente que triste gente é esta que consegue desgostar da Anita por causa de uns pinduricalhos que lhes meteram na cabeça.
 
Hoje estou a ver blogs, alguns que nem conhecia, e dou de caras com quem deteste a Anita, gente hirsuta a protestar com os tais estereótipos, e ainda com um desbragado a defender a dita, com uma acidez que corrói a própria Anita. Não há dúvida: "estes romanos são loucos". Como se existissem coisas para miúdos, e das quais eles gostassem, que não tivessem, fossem, estereótipos. E como se valesse a pena tais protestos com estes feminismos serôdios, cegos ao ridículo e eles-próprios os maiores reprodutores de clichés, por puro fastio, diga-se.
 
Lembro-me a chatear os meus (óptimos) pais, a querer pistolas. E eles fiéis ao "não dar armas às crianças". E a desistirem, talvez já fartos da minha insistência, talvez por terem percebido que combatia eu com armas emprestadas e a melancolia que isso me causava. A alegria que eu tive com a minha pistola de fulminantes! Ah, e a minha bisnaga vira-bicos, ainda hoje me aviva lembrá-la. Tais experiências seguindo as luminárias ditas de "esquerda" ter-me-iam tornado um assassino em série ou, pelo menos, um militarista exarcebado. Mas não, apenas me tornaram cansável face a estas ininteligências disfarçadas de hermeneutas. 
 
[E falta-me o tempo para aqui lembrar todas as maravilhas da Enid Blyton, Salgari, Os Pequenos Vagabundos, Verne, Karl May, etcs., já para não falar nesse terrível "brincar aos médicos" - mas que gente infeliz...]
 
*Adenda: os blogs que estavam ligados neste texto (furibundos anti-Anita, furibundos pró-Anita) desapareceram, pelo que retirei as agora inúteis ligações.

E agora, o nosso momento zen

João Sousa, 20.02.23

Livros de Roald Dahl sofrem alterações para remover linguagem "ofensiva" (...)

Augustus Gloop, por exemplo, o rapaz gordinho de "Charlie e a Fábrica Chocolate", com uma camisola às riscas vermelhas e brancas, viciado em chocolate, agora será “enorme” ao invés de “gordo”  (...)

Segundo o Daily Telegraph, a editora Puffin contratou leitores "sensíveis" para reescrever fragmentos dos textos, garantindo assim que "eles possam continuar a ser apreciados atualmente por todos". (...)

As alterações foram feitas, sobretudo, ao nível das descrições sobre a aparência física dos personagens, onde se encontram palavras como "gordo" e "feio".

Em “The Witches”, de acordo com o The Guardian, no parágrafo em que as bruxas são carecas sob as perucas, é acrescentada uma frase que Dahl nunca escreveu: "Existem muitas outras razões pelas quais as mulheres podem usar perucas e certamente não há nada de errado com isso". (...)

Nas publicações, as palavras “preto” e “branco” também não são usadas, e "louco" ou "insano" também já não é utilizado “​​em defesa da saúde mental”.

A editora Puffin e a Roald Dahl Story Company fizeram as mudanças juntamente com o "Inclusive Minds", um grupo que o seu porta-voz descreve como "um coletivo de pessoas apaixonadas por inclusão e acessibilidade na literatura infantil".

(no Jornal I)

 

(...) References to “female” characters have disappeared. Miss Trunchbull in Matilda, once a “most formidable female”, is now a “most formidable woman”.

Gender-neutral terms have been added in places – where Charlie and the Chocolate Factory’s Oompa Loompas were “small men”, they are now “small people”. The Cloud-Men in James and the Giant Peach have become Cloud-People. (...)

Alexandra Strick, a co-founder of Inclusive Minds, said they “aim to ensure authentic representation, by working closely with the book world and with those who have lived experience of any facet of diversity”. (...)

(no The Guardian)

No reino da redundância

Pedro Correia, 04.12.22

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O excesso de zelo na correcção política, com receio daquilo que as falanges mais extremistas possam verter nas redes insociais, gera situações destas, ao nível da linguagem: após "prisioneiras" (palavra cujo género gramatical é inequívoco) surge hoje a ingente necessidade de acrescentar "do sexo feminino".

Como se o termo anterior permitisse outra opção.

Caímos no reino da redundância. Não porque quem escreve ou quem traduz ou quem edita (neste caso a tradutora e a chancela editorial têm inequívoco mérito), mas porque as patrulhas ideológicas andam cada vez mais vigilantes e não permitem qualquer fuga à norma.

Aliás, não permitem sequer o recurso à norma.

Como este caso, por absurdo, apenas confirma.

Filho da pauta

Pedro Correia, 30.09.22

O meu "telefone inteligente" parece afectado pelo vírus da correcção política. Cada vez que escrevo "puta", muda-me para "pauta". Com rigor de madre superiora em convento de carmelitas.

A censura neopuritana ataca em força nos instrumentos digitais. Limando e limpando todas as expressões falocêntricas do heteropatriarcado.

Mas não desisto: continuo a dar-lhe luta.

Com Açúcar, Com Afecto

jpt, 29.01.22

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A minha geração foi abalroada pela heroína, e nem preciso de juntar grandes detalhes memorialistas para o comprovar. Não naquilo da implosão de muitos dos heróis (Coltrane, Hendrix, Joplin, Morrison e tantos outros). Mas no descalabro de amigos e vizinhos, desde os finais dos 1970s, muitos que por então se foram, alguns até de propósito, outros que se rearranjaram, "sabe Deus" com que esforços, e tantos destes para virem morrer no cabo dos seus cinquentas, dos fígados devastados. Para quem não se lembra, ou faz por isso, bastará lembrar a Lisboa dos 1990s, carregada de já velhos junkies penando pelas ruas, arrumando carros, perseguindo as carrinhas da metadona...
 
Entretanto, nós aqueles que havíamos seguido doutro modo, uns mesmo saudáveis, outros nos mares de álcool apropriados à nossa nação de marinheiros, ou nas multiculturais ganzas, quanto muito aqui e ali polvilhadas de uma chinesa "só para experimentar", e mesmo alguns já adult(erad)os como aburguesados encocaínados, fomos crescendo e procriando. Nisso deparando-nos com aquele "saber de experiência feito" do nosso Duarte Pacheco Pereira, e nisso a angústia do que viria a ser com os nossos queridos. A heroína perdera o prestígio social, ainda que resista no mercado, mas haviam surgido várias novidades, sintéticas, até legais.
 
 
(Lou Reed, David Bowie, I'm Waiting for the Man, Live, 1997)
 
Ora nesse longo - e preocupante - entretanto, por mais angústias que houvesse, ninguém se lembrou de exigir a Lou Reed que apagasse esta célebre "I'm Waiting for the [my] Man" (ou aquela "Heroin" ou tantas outras, como as que me são fundamentais "Caroline Says" I e II). Ninguém, com dois dedos de testa, quis que amputasse ele o seu percurso, a sua arte, a sua refracção poética do que vivia, em nome de qualquer "causa", justa ou espúria que fosse. E também por isso, para que não me digam que também então se "cancelavam" textos, aqui deixo uma versão feita em 1997, trinta anos depois dos Velvet Underground terem irrompido e rompido com quase tudo o que vigorava.  Não é uma das melhores, apesar de Bowie, e por isso para uma de píncaros deixo abaixo uma majestosa do John Cale, um pouco mais antiga.
 
Pois mesmo com a maldita heroína a rebentar à nossa volta o que se pedia e pede aos nossos é que a evitem - "por favor, não entres num carro onde haja gente com os copos, não uses químicos, por favor, só isso!". Mas também "ouve Lou Reed [e John Cale], e especialmente aquelas Caroline Says I e II, já agora". E não que se apaguem textos que não a denunciem. Porque os poetas não se amputam. E porque são tão mais importantes quando dizem aquilo que "não fica bem", para não estar eu aqui com prosápias ensaísticas.
 
Lembro-me disto ao ler que o magnífico Chico Buarque anunciou a "reforma" (o cancelamento, para ser explícito) da bela "Com Açúcar, Com Afecto", devido às pressões feministas. Encho-me de compaixão pelo ancião.
 
 

(John Cale, "I'm Waiting for the Man, Live, 1984)

(Postal para o meu Nenhures - e mais ao seu estilo)

Combate cultural

Pedro Correia, 16.01.22

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Um poema de Semónides de Amorgos acaba de ser proibido na Universidade de Reading, do Reino Unido, devido à sua «misoginia extrema», como alegam os censores, preocupados com o «incómodo» que tais palavras pudessem causar aos estudantes. Parecendo ignorar que o texto foi escrito há 2700 anos. 

Considerado um dos pais da sátira nos estudos gregos clássicos, Semónides chocou as sensibilidades das donzelas do século XXI e dos seus tutores masculinos naquele estabelecimento universitário por ter redigido versos como estes: «Nunca passa tranquilo um dia inteiro / todo aquele que com uma mulher convive.»

Eis quanto bastou para as sinetas da interdição soarem em Reading, à revelia do que deve constituir o verdadeiro espírito universitário, livre por definição e natureza. É mais um triste exemplo da chamada "cultura do cancelamento" que vai fermentando um pouco por toda a parte, com a medrosa cumplicidade dos cenáculos culturais e dos meios de comunicação. 

Maite Rico, ex-subdirectora do El País recentemente integrada nos quadros redactoriais do El Mundo, alude à mordaça agora imposta ao velho Semónides na sua "carta de apresentação" da revista La Lectura, que passa a integrar as edições de sexta-feira do diário madrileno de inspiração liberal.

«Não passa uma semana sem vermos os estragos que vem provocando esta onda de fanatismo neopuritano, com origem nas universidades anglo-saxónicas, que pretende impor pela censura e cancelamentos a uniformidade bem-pensante na academia, na cultura, no jornalismo e na política», escreve a excelente jornalista espanhola. Sublinhando que a nova revista «defenderá o valor da palavra e da liberdade de expressão», frente às «febres identitárias e aos chavões populistas, que usam a chantagem emocional e as queixas para calar quem pensa de modo diferente».

Leio estas palavras, não podendo estar mais de acordo com a linha editorial aqui expressa. E penso como faz falta em Portugal um projecto editorial na mesma linha. Em defesa da liberdade sem adversativas, contra todas as formas de censura - por mais politicamente correctas que se intitulem. Aliás um dos mais urgentes combates culturais tem precisamente de ser feito contra a correcção política. Que multiplica anátemas e tabus, silenciando qualquer opinião que ouse beliscar os novos dogmas.

Dia Mundial Tintin

jpt, 10.01.22

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Hoje é o Dia Mundial Tintin, o aniversário (já o 93º) do seu aparecimento no "Petit Vingtième", então encetando a sua aventura no "País dos Sovietes", a qual tão injustiçada viria a ser, acima de tudo pela autocensura do próprio Hergé. Coisas daquela era pós-II Guerra Mundial...
 
Apaixonado que sempre fui e assim continuo, deixo aqui memória do "L'Oreille Cassée" (o nosso "O Ídolo Roubado"), o sexto episódio da saga (1937), o qual sinto como um dos melhores livros - e deixo o [bom] filme de animação correspondente, para quem ainda tenha tempo e alma para o ver.
 
Escolho este álbum e esta vinheta também por duas razões, mais "políticas". Pois nas últimas décadas têm surgido um conjunto de "denúncias" ao racismo em Tintin, emanadas dos contextos da esquerdalhada básica e emitidos por feixes de intelectuais de pacotilha. Li alguma dessa tralha, até lusa. Não vou elaborar muito sobre isso, nem sequer invocar o óbvio anacronismo dessas lérias. Apenas recupero este "L'Oreille Cassée": aqui surge este Ridgewell, explorador amazónico que há muito desaparecera e que vive entre os Arumbayas. O qual é um evidente proto-Haddock (que só aparecerá 4 anos depois, no "O Caranguejo das Tenazes de Ouro"), na forma vulcânica e desabrida com que trata os seus (amer)índios circundantes, tal e qual Haddock o fará em todos os outros contextos (em particular junto do séquito de Moulinsart). Sobre esta patente similitude, de enorme significado sobre as concepções antropológicas de Hergé, então ainda abaixo dos 30 anos, nada li em todas as lérias botadas nos "papers" e "conferências" dessa esquerdalhada "denunciatória". Pois desmontar-lhes-ia, por completo, as "academices" de treta com as quais vão fazendo currículos e cativando interesses de outros imbecis.
 
Um outro traço do "L'Oreille Cassée" explica este actual "Cancel Tintin". Pois Alcazar e Tapioca, os patuscos generais, já estão em frenético conflito. Como o estarão 40 anos depois, quando o já quase septuagenário Hergé publicou a última aventura completa, "Tintin e os Pícaros". E de facto é este livro - um sarcástico monumental pontapé nas ladainhas guevaristas e terceiro-mundistas, então tão em voga - que promove o "denuncionismo" de agora. Não é a candura colonial ou a deriva anticapitalista dos vinte aninhos de Hergé em "Tintin no Congo" e "Tintin na América". É mesmo a sua madura, pertinente e artisticamente genial refutação dos mitos que alimentam esta actual triste tralha identitarista - "pós" ou "decolonial".
 
Enfim, e mais do que tudo, vou rever a animação. Pois aos livros vou relendo-os amiúde.
 

(Les Aventures de Tintin - L'Oreille Cassée)

Pedir desculpas pelo passado nacional

jpt, 12.10.21

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Há pouco mais de uma década o Presidente Cavaco Silva realizou uma visita de Estado a Moçambique. Como é prática nessas ocasiões fez-se acompanhar por uma alargada comitiva: políticos, empresários, quadros da administração pública, agentes de produção cultural. No vasto programa constava um colóquio na universidade na qual eu trabalhava, dedicado à importância da língua portuguesa, o qual contou com a participação de destacados intelectuais moçambicanos (alguns dos quais foram então condecorados) e portugueses. 

A actividade decorreu na ampla sala do centro cultural universitário, um antigo cine-teatro com largas centenas de lugares. Os professores haviam sido convidados, os alunos mobilizados, a sala estava apinhada. Eu sentei-me bem lá no fundo, para fruir descansadamente o meu uniforme de "jeans" puídos e polo desbotado. Um dos painéis constava de alocuções de escritores consagrados, locais e portugueses - estes ali pois inseridos na comitiva oficial da visita de Estado. E assim, porque isso aceitando e liberdades criativas à parte, surgiam assumindo um difuso papel de representantes da sua área laboral, por episódico que fosse esse seu encargo.

 

 

A "Cancel Culture" Contra o Xadrez

jpt, 15.08.21

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Recebo várias mensagens com uma denúncia do Xadrez, devido ao seu conteúdo racista, machista, antropocentrista e capitalista. São dislates de quem nem o joga nem lhe compreende os sentidos implícitos. Pois o Xadrez é o jogo mais consentâneo com os bons valores actuais: é a apologia do matriarcado, sendo também memória dessa era histórica, pois nele domina a Mulher-rainha, que tudo e todos come, protegendo o frágil Homem-rei, eunuco passivo, encastrado num quase imobilismo. É, e muito, a expressão da verdade decolonial, pois todos os jogos demonstram a agressão dos brancos face a bem ordenadas e pacíficas sociedades dos negros, condenados à resiliência em estratégias defensivas consagradas. É também expressão do sentir ecológico, na afirmação da irredutível riqueza da Natureza, demonstrada na criatividade única dos rebeldes movimentos do Animal-cavalo. E, finalmente, afixa os direitos de género, não só ao consagrar a elegância arguta do cruising gay, nesses "Bispos" em lestas diagonais debicando meros peões, marujos e magalas das forças adversas. Mas mais ainda na sua proposta filosófica até radical, anunciando o transgenderismo como óptimo existencial, pois tudo estrategizando para promover a cinzenta peonagem em exultantes e ariscas Rainhas.
 
Parai pois com essas afrontas ao iluminado Xadrez. Jogai-o. Apreendei-o.

Cheers!

Paulo Sousa, 20.07.21

A expressão “tornou-se viral” transmite ao mesmo tempo imensidão e efemeridade. O seu significado é em si mesmo uma contradição. É como a explosão de uma bola de fogo pirotécnico, que no exacto instante em que a tentamos memorizar, já desapareceu.

A vida nas redes sociais é assim. Quem por lá passa, ou por lá vive, sabe bem o que isso é.

Num dos últimos vídeos que arrebatou as atenções e abriu novas escalas nos gráficos de visualizações, aparece Paulo Rangel a caminhar a desoras, pelas ruas de Bruxelas, visivelmente embriagado.

Logo no primeiro instante imaginei que se tratasse duma daquelas preciosidades que alguns políticos guardam para “deslargar” quando entenderem ser o momento certo. No tipo de combate político em que debater ideias dá trabalho, e em muito poucos adversários têm amigos generosos que perdem o conto a quanto já “emprestaram”, este tipo de imagens podem ser consideradas como uma poupança para usar em tempos difíceis.

Quase nos habituamos a que perante a suspeita de má conduta a reacção fosse de indignação, não faltando de imediato a teoria da cabala.

Mas Rangel mostrou ser diferente. Não tentou desmentir, nem negar. Simplesmente assumiu o facto dizendo:

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Vi reacções de várias figuras, nem todas próximas do campo político de Rangel, que reconheceram que a sua resposta mostrou humanidade e que tinha virado a má onda contra quem achou que o estava a atacar. Não sabendo se o ataque terá sido originário do campo adversário ou tendo vindo do inimigo, o facto é que a sua reacção foi genuína e mostrou que ainda há quem possa trazer política à política.

Os mais atentos terão identificado que a diferença que referi, entre adversários e inimigos, resulta de uma distinção que Churchill terá feito entre os membros do partido contrário – os adversários – e os do seu próprio partido – os inimigos. Essa é a natureza da política e quem lá está sabe as regras do jogo.

E estando a falar de políticos, de “glórias, terrores e aventuras” e de bebidas alcoólicas, o honorável W. Churchill tinha de vir à baila.

Por isso, em memória dos políticos que não tratam os cidadãos como crianças, nem querem serem líderes morais da sociedade, partilho aqui uma receita médica que terá sido prescrita ao próprio durante uma visita aos E.U.A. em 1932, ou seja, durante a vigência da Lei Seca.

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Cheers!! 

Os Óscares já não são o que eram

Pedro Correia, 21.05.21

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Os Óscares já não são o que eram. De ano para ano, cresce o desinteresse em torno das estatuetas. Não apenas nos EUA, mas um pouco por todo o mundo.

Desta vez registou-se a maior queda de audiências de que há memória. Uma tendência em que os galardões da Academia de Artes Cinematográficas de Hollywood acompanham o que sucedera na cobertura dos prémios Emmy, em Setembro: 5,1 milhões de espectadores (menos 14%) e dos Grammy, em Março: 9,2 milhões (menos 51% em comparação com os 18,7 milhões que seguiram a cerimónia em 2020).

Em termos sentimentais, para muitos cinéfilos, um Óscar será sempre um Óscar. Mas grande parte do fascínio que envolvia a distribuição dos mais cobiçados prémios da Sétima Arte parece ter-se perdido para sempre. Os números confirmam: a mobilização dos espectadores caiu a pique. A 93.ª edição, recentemente realizada, atraiu 9,8 milhões de espectadores – 58% menos do que os 23,6 milhões que tinham assistido à transmissão no ano passado. E muito abaixo dos 41,6 milhões que em Março de 2010 acompanharam o intenso duelo entre dois filmes: Avatar, de James Cameron, e Estado de Guerra, de Kathryn Bigelow.

Passaram apenas onze anos, mas parece ter sido há uma eternidade. De então para cá, Hollywood tornou-se capital da correcção política, substituindo a consagração artística pelo catecismo ideológico. E as sessões de distribuição de prémios, em vez de enaltecerem a magia do cinema, tornaram-se maçadoras maratonas de evangelização em via única, sem qualquer sopro contraditório. Receita segura para afugentar o público. Ninguém tem paciência para ouvir quatro horas de pregações e ladainhas a pretexto da celebração de filmes.

 

Parafraseando o juiz Ivo Rosa, é pouco recomendável mercadejar política a pretexto da indústria do entretenimento. Esta entrou em decadência no momento em que se deixou contaminar por quotas étnicas e sexuais tornadas já obrigatórias para cada elenco. À luz deste critério, filmes como O Padrinho, Casablanca ou Citizen Kane nunca teriam visto a luz do dia.

Em 2018, Javier Marías – o melhor romancista espanhol contemporâneo – confessou o seu imenso tédio ao ver na TV uma versão actualizada do western Os Sete Magníficos, surgido em 1960. Na versão homónima de 2016, os sete integravam um mosaico multirracial – havia um negro, um índio, um hispânico, um asiático. Como se a assembleia-geral da ONU tivesse sido transposta para o velho Oeste selvagem. «Desinteressei-me, por ser tão inverosímil»,  observou o escritor numa crónica.

Somos muitos a pensar como ele. Péssima notícia para a RTP, que em 2021 – vinte anos depois – voltou a garantir o exclusivo da emissão dos Óscares para Portugal. Com manifesto insucesso: atraiu pouco mais de 150 mil espectadores, enquanto a SIC captava mais de 440 mil e a TVI ultrapassava os 340 mil. Sermão por sermão, antes a missa dominical.

 

Texto publicado no semanário Novo