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Delito de Opinião

Centenário

Pedro Correia, 27.05.23

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«As dificuldades são também um desafio. Não têm de ser sempre um obstáculo.»

Henry Kissinger, The Economist (Maio de 1923)

 

Viveu muito, leu muito, viajou muito, conheceu muito.

Ensinou muito - e continua a fazê-lo, com plena lucidez intelectual, neste dia em que celebra cem anos.

Henry Albert Kissinger, nascido a 27 de Maio de 1923 na Baviera, fugido com os pais do regime nazi, refugiado em Nova Iorque aos 15 anos. Em 1943, naturalizou-se cidadão americano. Serviu no exército dos Estados Unidos durante a II Guerra Mundial. Escapou à morte, mas o sistema totalitário tocou-o de perto: 13 dos seus parentes sucumbiram no Holocausto.

Admirado, invejado e detestado em partes iguais, pontificou nas administrações Nixon e Ford entre 1969 e 1977. Primeiro como conselheiro da Segurança Interna, depois como secretário de Estado - terceiro posto na hierarquia governamental. No auge do caso Watergate, chegou a ser ele a segurar no leme. Enquanto rasgava horizontes na política externa norte-americana: liderou o degelo diplomático com a República Popular da China ao avistar-se com Mao Tsé-tung, levou Washington a substituir os soviéticos como força dominante no Médio Oriente ao assumir-se como interlocutor entre israelitas e árabes, negociou a limitação de armas estratégicas com Moscovo em plena Guerra Fria. 

 

Doutorou-se com uma tese sobre Metternich (1773-1859), príncipe da diplomacia no império austríaco, expoente máximo da doutrina realista contra os idealistas, responsáveis por tantos conflitos bélicos.

Nos anos 50 e 60 foi um dos mais famosos professores em Harvard, onde leccionou Ciência Política antes de rumar aos palcos mundiais como comandante norte-americano para os assuntos externos. Com várias sombras entre muitas luzes, incluindo o apoio activo às ditaduras de Pinochet no Chile e de Suharto na Indonésia (dando cobertura à invasão de Timor em 1975) e a sua falhada visão de um Portugal mergulhado no comunismo em 1975, útil como «vacina para a Europa». Ao contrário do que previa, os comunistas foram derrotados aqui. Enquanto ganhavam terreno em África e no Sueste Asiático: o Nobel da Paz que recebeu em 1973 pelos acordos de Paris anteriores à retirada norte-americana do Vietname ainda suscita polémica.

Facto inegável: foi um dos mais brilhantes intelectuais que trabalharam nos últimos 60 anos na Casa Branca. Após abandonar funções públicas, tornou-se consultor de monarcas, presidentes e primeiros-ministros. Já nonagenário, continuou a percorrer o mundo: só a pandemia, em 2020, o reteve na sua casa rural no Connecticut. Mas ainda frequenta regularmente o seu escritório, no 33.º andar de um edifício art déco em Manhattan. E continua a publicar livros. Tem dois muito recentes. Um sobre inteligência artificial (tema que o fascina e preocupa), outro sobre seis políticos que conheceu pessoalmente: Konrad Adenauer, Charles de Gaulle, Richard Nixon, Anwar Sadat, Lee Kuan Yew e Margaret Thatcher (Liderança, já com edição portuguesa da Dom Quixote).

Do antigo Presidente francês, cita com frequência uma frase emblemática sobre comando político: «Assumir riscos constantes numa perpétua luta interior.»

 

Em recente entrevista ao Sunday Times, pronunciou-se sobre a invasão russa da Ucrânia. Elogiando Zelenski: «Não há dúvida de que cumpriu uma missão histórica.» E criticando Vladimir Putin: «Chefia um país em declínio e perdeu o sentido das proporções nesta crise.»

Judeu, aos 9 anos o pequeno Heinz (só viria a chamar-se Henry na América) viu Hitler ascender ao poder no seu país natal, onde em menino adorava jogar futebol. Nem o exílio forçado nem o incêndio da Europa que testemunhou ao vivo diminuíram o proverbial optimismo que muitos lhe reconhecem. Mas vai advertindo contra os sinais de crescente desagregação da ordem mundial que imperou nas últimas três décadas: «A segunda Guerra Fria será ainda mais perigosa do que a primeira.»

Um aviso que deve ser levado a sério. Vem de quem sabe mais e viu muito mais do que qualquer de nós.

Ser ministro para deixar de o ser

Pedro Correia, 11.10.22

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Qual a vantagem de ser ministro das Finanças?

Em Portugal, só vejo uma: é a única forma de adquirir o estatuto de ex-ministro das Finanças, algo que parece conferir aos seus portadores uma aura exclusiva, misto de senador romano e de profeta hebreu. A toda a hora uma legião de ex-ministros perora em tudo quanto é palco mediático, com ar solene e pose grave, traçando implacáveis vaticínios. Sai um de barbas de oráculo, logo surge outro com cãs de erudito que por sua vez dá lugar a uma altiva dama com fumos de pitonisa. Todos com receitas mágicas para o futuro da nação - receitas que, por sinal, nenhum aplicou quando teve oportunidade efectiva para o efeito.

Gabo a paciência dos jornalistas que vão recolhendo as copiosas declarações desta prolixa tribo intuindo tal como eu que na maior parte dos casos a sabedoria real de tão ilustres sumidades é muito inferior ao generoso tempo de antena de que dispõem. E apenas lamento que não aproveitem ao menos uma vez para recordar aos indígenas o legado dessas sumidades - em (de)crescimento económico, despesa primária, dívida externa e défice real das contas públicas, por exemplo.

Depois era só comparar o que fizeram com o que propõem agora. Muita gente era capaz de ficar surpreendida. Ou talvez não.

Acerca da estabilidade governativa

beatriz j a, 03.02.22

António Costa confunde estabilidade com ausência de obstáculos no seu caminho. Não é o único. Hoje, num artigo de jornal, Mª Manuel Marques defende que Um governo de maioria serve para assegurar estabilidade na governação (...)Serve para fazer algumas reformas (...) impossíveis ou que mais dificilmente se conseguem fazer com governos minoritários, (...) que deviam ser negociadas com uma alargada maioria parlamentar. Esta euro-deputada fala na virtude de maiorias absolutas para negociar reformas necessárias e diz que, "Se formos capazes de o fazer bem, talvez daqui a quatro anos este fantasma da maioria absoluta desapareça do debate político".

Aqui há duas questões: a primeira é que uma maioria absoluta não precisa de negociar nenhuma reforma: impõe-na; a segunda é que os governos de maioria absoluta que tivemos não "o souberam fazer bem", quer dizer, têm aproveitado para impor reformas (não negociadas) que são desfeitas logo na legislatura a seguir. Portanto, ambos, como muito outros, entendem estabilidade como facilidade de governação, no sentido de não terem que confrontar-se com opiniões contrárias às suas, com as quais é necessário entender-se e negociar. A geringonça acabou por falhar, justamente porque Costa não sabe negociar e alcançar compromissos nas suas grandes políticas. 

O que oferece estabilidade a um sistema é a solidez da sua estrutura, que no caso de um regime político democrático corresponde à força das leis e das instituições públicas. Quanto mais sólidas e independentes dos poderes políticos são as leis e as instituições públicas menos a robustez do sistema depende dos vapores e humores dos políticos do momento. Não queremos que um sistema dependa das boas intenções de políticos particulares mas sim da solidez das suas instituições. Por isso que é tão importante que um político saiba negociar e entender-se com os partidos da oposição, para que as reformas não sejam, como têm sido em vários sectores fundamentais, reformas com o prazo de validade daquela legislatura. Esta característica, na educação e na saúde, só para dar dois exemplos, tem sido, e é, dramática. 

Vemos que até dentro dos próprios partidos há pouca preocupação em assegurar a estabilidade interna da suas estruturas e reduz-se a vida do partido à aclamação de um líder com as sua claques que imediatamente anulam as vozes adversárias. Veja-se o resultado dessa falsa estabilidade de liderança no CDS, no BE e agora no PSD que descurou as suas estruturas de base. Também o PS já lá esteve e há-de voltar. 

A política é a arte de governar para o bem público e dado que cada governo só representa uma parte da população, dado que é eleito por muitas razões que ultrapassam a confiança do povo nas soluções daquele partido ou coligação e dado que os nossos políticos têm mostrado não serem bons políticos no sentido de terem capacidade (ou interesse) de compromissos com as outras forças representadas no Parlamento temos muito a temer de maiorias absolutas, que não têm sido factores de estabilidade do sistema.

(também publicado no blog azul)

Ser sensato, ser prudente, ser imbecil

Pedro Correia, 25.06.21

Um passado não tão remoto assim

João Sousa, 14.09.20

A propósito do recente episódio Costa/Benfica, lembrei-me desta notícia que li há sete anos no Público:

«O presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira, inaugura nesta sexta-feira o Museu Cosme Damião, que retrata mais de 100 anos de história do clube, lamentando as ausências de Cavaco Silva e Pedro Passos Coelho.

Em entrevista ao jornal do Benfica, Luís Filipe Vieira diz que a inauguração do museu “merecia a presença dos dois representantes do Estado português”.

“Não sei se é estranho, só posso dizer que o lamento, porque acho que a inauguração deste equipamento cultural (e não desportivo) merecia a presença dos dois representantes do Estado português”, refere o presidente do Benfica sobre as faltas de comparência de Presidente da República e primeiro-ministro.

Luís Filipe Vieira lastima também que nem Cavaco Silva nem Passos Coelho tenham marcado presença, a 15 de Maio, na final da Liga Europa, em Amesterdão, que o Benfica perdeu para o Chelsea (2-1).

“Deve ter sido a primeira vez na história em Portugal que tal sucedeu, mas não me cabe a mim fazer juízos de valor, mas é evidente que o lamento. Recebemos sempre bem quem nos visita e apenas podemos estranhar estas ausências em dois momentos tão significativos da vida do maior clube português”, frisa o líder “encarnado”. (...)»


Naquela inauguração, note-se, esteve o então presidente da Câmara de Lisboa António Costa, que já no ano anterior fizera parte da "comissão de honra" de Luis Filipe Vieira e a quem este "lançou o desafio de encontrar um espaço à altura do nome de Eusébio, a grande figura de destaque nesta cerimónia", repto prontamente aceite por Costa: "Eusébio merece muito mais do que uma rua, uma avenida ou uma praça. A melhor forma de homenagear é, em conjunto com o Benfica, um grande parque desportivo que contribua para a formação desportiva, social e cívica dos jovens da cidade de Lisboa".

Não, o que se passou agora não foi um acaso nem um escorregão: foi um sistema.

Absurdo, chocante, inaceitável

Pedro Correia, 21.04.20

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«A forma como se comemora o 25 de Abril na Assembleia da República está a dar cabo da imagem do 25 de Abril.»

Miguel Sousa Tavares, ontem, na TVI



É absurdo que o Estado festeje a liberdade num momento em que os direitos, liberdades e garantias estão severamente restringidos - o que sucede pela primeira vez desde a instauração do actual regime constitucional - e há pessoas a ser detidas por "crime de desobediência".



É chocante que os deputados fechem os olhos à dor que alastra na sociedade, com um português a morrer de Covid-19 a cada hora que passa, e prefiram celebrar efemérides em flagrante violação das regras de confinamento que eles próprios impuseram aos compatriotas ao aprovarem o estado de emergência.

 

É totalmente inaceitável que alguns políticos e comentadores pretendam passar atestados de lesa-democracia a quem, precisamente em nome da liberdade de discordar, ousa contestar a inadequada e descabida cerimónia celebrativa que teimam em levar avante num momento de luto nacional.

The Great Stink

Cristina Torrão, 13.03.20

Muitos de nós pensavam (e falo por mim) que pandemias deste tipo como a que estamos a viver já não seriam possíveis. Mas, em pleno século XXI, e apesar de tantos avanços na Medicina, cá estamos nós a tremer perante um ser microscópico. Li, algures, que, ao contrário do que pensamos, o planeta Terra não pertence ao ser humano, mas, sim, a esses seres minúsculos que apelidamos de vírus e bactérias. Dá que pensar…

Enfim, para desviarmos um pouco o pensamento da situação actual, mas aproveitando o tema, resolvi falar-vos hoje sobre um documentário que vi há dias e que foi igualmente elucidativo sobre a maneira de pensar e agir dos políticos. O programa, no canal ZDFinfo, mostrava as entranhas de Londres, nomeadamente, a rede metropolitana mais antiga do mundo e o sistema de canalização. É sobre este último que vou falar.

Em meados do século XIX, Londres era a cidade mais populosa do mundo. Mas era também a mais mal-cheirosa. Na sequência da Revolução Industrial, cresceu sem as infra-estruturas adequadas (como tantas vezes acontece) e sucediam-se as epidemias de cólera. Não havia sistema de escoamento de águas inquinadas e, além da porcaria que se amontoava pelas ruas, o rio Tamisa era uma fossa a céu aberto. Tudo o fosse dejectos lá ia parar, não havia peixe que resistisse.

A situação tornava-se insustentável e o engenheiro Joseph Bazalgette desenvolveu um projecto de uma rede de 135 km de túneis, com uma inclinação especial, que permitia controlar as águas inquinadas, guiando-as igualmente para o Tamisa, mas para fora da cidade, perto da foz. Quando o apresentou ao Parlamento, porém, os políticos mostraram-se chocados com a obra gigantesca, que custaria rios de dinheiro. E, de repente, já não tinham pressa nenhuma em resolver o assunto. Afinal, quem morria às resmas era o povoléu, amontoado nos seus bairros insalubres.

A pretexto de modificações nos planos, iam adiando a questão sine die, Joseph Bazalgette chegou a apresentar cinco versões do seu projecto. Até que chegou o Verão de 1858, conhecido na História como The Great Stink. Verificaram-se calores inabituais na capital britânica e o Tamisa exalava mais fedor do que nunca. Ora, acontece que o Parlamento inglês se encontra precisamente nas margens do rio, chegando o cheirete às narinas sensíveis dos políticos numa intensidade nunca experimentada. Foi remédio santo: finalmente se aprovou o projecto, orçamentado em três milhões de libras.

A obra demorou cerca de quinze anos a ser concluída, mas a rede de túneis de Joseph Bazalgette é, ainda hoje, a base do sistema de canalização londrino.

Fora da caixa (13)

Pedro Correia, 21.09.19

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«Tenho um gosto especial por resolver problemas.»

António Costa, em entrevista à RTP 3 (exibida a 18 de Setembro) 

 

A RTP 3 inaugurou uma série com perguntas "fora da caixa" aos dirigentes dos seis partidos com representação parlamentar. Um formato interessante, que nos permite olhar para estes políticos fora do enquadramento pré-formatado em que quase sempre surgem nas televisões.

Dois políticos nascidos em Lisboa (António Costa e André Silva), outros dois naturais do Porto (Rui Rio e Catarina Martins), um vindo ao mundo em Pirescoxe-Santa Iria da Azóia (Jerónimo de Sousa) e uma fora do continente europeu (Assunção Cristas, que teve berço em Luanda). O mais velho, com 72 anos, é o secretário-geral do PCP. O mais jovem, com 43 anos, é André Silva, porta-voz do PAN.

Todas estas entrevistas conduzidas pela jornalista Cândida Pinto e registadas ainda em Agosto ou no início de Setembro, decorrem em cenários naturais, escolhidos pelo entrevistados. Louvor à opção de Jerónimo de Sousa, junto ao castelo da sua aldeia natal, que ficou muito bem na fotografia, e sobretudo à escolha de António Costa, que se fez filmar na praia fluvial da Peneda, concelho de Góis, onde apetece dar uns mergulhos só de a ver na televisão.

A sessão inaugural, exibida inicialmente na quarta-feira e repetida ontem, recolheu respostas às perguntas que passo a enumerar.

Por que razão procurou uma carreira política e o que o fez querer liderar um partido? É fácil ou difícil fazê-lo mudar de ideias? Qual foi a pessoa que teve mais impacto na sua vida? Qual foi a melhor refeição da sua vida? Dá ou não dá esmola? Quais são as suas maiores preocupações em relação ao futuro dos seus filhos e dos seus netos? O que tem mais medo de perder, para além da família?

 

Confesso: as respostas que mais me interessaram foram as da refeição inesquecível. Respostas que nos dizem muito sobre eles.

António Costa: «Recordo sempre muito uma que tive na Jordânia, a seguir ao funeral do rei Hassan II. O nosso cônsul honorário convidou-me para um jantar de experiência de comida árabe, que foi para mim a primeira vez.»

Rui Rio: «Quando eu fazia anos, a minha mãe cozinhava sempre aquilo de que eu mais gostava, uns escalopes au riz, e fazia uma tarte de limão para sobremesa.»

Catarina Martins: «Uma vez atravessei os Estados Unidos de carro. Lembro-me de tomar o pequeno-almoço a ver nascer o sol, no meio do deserto, e o pequeno-almoço era o da máquina do hotel: um capuccino e um donut

Assunção Cristas: «Em São Tomé, na roça de São João dos Angulares. Já não sei o que comi, mas estava tudo tão bom...»

Jerónimo de Sousa: «Não sou capaz de me fixar numa. Vai-se ao Norte e prova-se uma carne única no mundo, vai-se a Setúbal e prova-se um peixe magnífico, vai-se ao Alentejo e vê-se a criatividade a partir de quase nada. Em todos os sítios é possível comer bem - incluindo em Lisboa.»

André Silva: «Gosto muito de comer frugal. Uma das coisas que mais prazer me dão é comer feijão maduro cozido com um fio de azeite.»

 

O prémio para a resposta de cartilha pronta-a-servir cabe a António Costa, ao responder sobre a maior preocupação sobre o futuro dos descendentes: «Tem a ver com a espécie humana. Tem a ver com as alterações climáticas.»

O prémio para a fidelidade partidária só pode ser para Jerónimo de Sousa, na resposta à pergunta sobre a pessoa que mais lhe marcou a vida: «Incontornavelmente, a figura de Álvaro Cunhal.»

O prémio para a sinceridade socialmente incorrecta é ganho por Rui Rio: «Eu sou contra dar a esmola na rua porque isso amarra a pessoa à rua. Se eu notar que o dinheiro é para vinho ou para droga, não dou.»

O prémio para a coerência com as ideias que defende cabe por inteiro a André Silva. A dado momento, uma mosca pousa-lhe na cara: o líder do PAN não tentou matá-la nem sequer enxotá-la. Ela, persistente e confiante, lá ficou.

Sem ética de responsabilidade

Pedro Correia, 29.11.18

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Faz hoje dez dias, um troço de cerca de 100 metros de uma estrada confiada à guarda das entidades públicas - neste caso, a Câmara Municipal de Borba, sob a vistoria e supervisão da Direcção-Geral de Energia e Geologia e do Instituto da Mobilidade e dos Transportes - abateu tragicamente, sobre uma ravina de cerca de 80 metros que tinha sido cavada, junto a ambas as bermas, por empresas extractoras de mármore. O acidente - se é que podemos chamar-lhe assim - provocou a morte de cinco pessoas. Por mera sorte, não se registaram mais vítimas mortais: o abatimento ocorreu ainda sob luz solar e num momento de trânsito reduzido nesta via que ligava Borba a Vila Viçosa e onde costumavam circular autocarros escolares, entre muitos outros veículos. Até o cortejo da volta a Portugal em bicicleta ali passara dois meses antes.

Repito: decorreram dez dias. E, uma vez mais, ninguém se demitiu: todos continuam firmes nos seus postos. Apesar de haver sucessivos alertas, que remontam a 2002, de especialistas pertencentes a entidades como o Instituto Superior Técnico ou a Universidade de Évora a alertarem para os graves danos ali gerados por eventuais deslizamentos de terras, potenciados em situações de chuva contínua. Já em 2006 o Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação classificara o local como zona de "alto risco".

Tal como em Pedrógão, quando só outra devastadora série de fogos florestais, quatro meses depois, conseguiu desalojar a ministra Constança. Tal como em Tancos, onde o ministro Azeredo demorou mais de um ano a extrair consequências políticas do furto ali ocorrido e que ainda permanece por esclarecer na totalidade. É um padrão na nossa administração pública: a ética da responsabilidade rumou a parte incerta.

Leituras

Sérgio de Almeida Correia, 29.08.18

"In politics, you have to wear your choices"

 

"Politicians will often have to choose which of their commitments to prioritise in a given context, and this decision is likely to be conditioned by both the strength of their endorsement and basic strategic considerations. Two key points follow. First, that the refusal to fall victim to wishful thinking about what can be achieved is an epistemic virtue politicians of integrity must display. Second, as the dirty hands literature suggests, good political leaders may often have to act in direct contravention of some of their deepest convictions to avoid serious disasters (Walzer, 2007). Given that political integrity is a matter of balancing the demands of one’s role, and one’s deep commitments, such decisions do not necessarily betray one’s political integrity, because avoiding great disasters is one of the most central role-based obligations at play."

 

Por o tema ser de todos os tempos e não se tratar de um texto muito denso, hoje achei por bem aqui deixar uma pequena sugestão de leitura.

O texto é de Edward Hall, bastante recente, tem por título "Integrity in democratic politics", saiu no The British Journal of Politics and International Relations, 2018, Vol. 20 (2), 395-408, e temos a sorte de o ter disponível em acesso livre. Não sei se assim permanecerá por muito tempo, por isso o melhor é aproveitarem. Os que se interessam pelo tema, obviamente.

Tenho muitas dúvidas sobre as conclusões a que Hall chega, talvez porque eu tenha uma concepção do conceito demasiado antiquada, dirão alguns, ou excessivamente rígida, apostarão outros.

De qualquer modo, serviu para me ajudar a fazer uma reflexão sobre o tema e olhar para hipóteses que nunca me tinham ocorrido. Eventualmente até poderão estar correctas, mas não é isso que por agora importa.

Ler os outros para se aprender e se pensar um pouco melhor é um dos exercícios mais salutares que conheço. E dos mais baratos.  

 

Os “jogadores” da política

Alexandre Guerra, 11.12.17

“Todos os políticos são, em certa medida, jogadores em relação aos acontecimentos. Tentam prever o que vai acontecer para se posicionarem do lado certo da história.” A frase é de Boris Johnson, antigo mayor de Londres e actual ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, que, numa entrevista recente à Fox News, considerou o Presidente americano uma "grande marca mundial" em termos políticos, enaltecendo as capacidades de comunicação de Donald Trump e a eficácia dos seus tweets matinais, por mais “indisciplinados” que possam ser. E se há alguém que percebe de indisciplina enquanto ferramenta de comunicação, é precisamente Boris Johnson, que fez sempre dessa característica um factor poderoso na sua afirmação enquanto político dentro do próprio sistema. Indisciplinado, irreverente, turbulento, Johnson tem feito do choque constante, da provocação permanente, a sua forma de estar na política.

 

Aquele seu cabelo desgrenhado não é um acaso, é um activo comunicacional que “casa” com a imagem que pretende que a opinião pública percepcione dele. Da mesma forma que o charuto de Churchill (de quem Johnson é admirador e a quem dedicou uma excelente biografia de onde foi retirada a citação do início) foi mais um elemento importante na construção da sua imagem enquanto estadista, já que aquele “adereço” representava o espírito do aventureirismo romântico, quase ingénuo, associado aos tempos gloriosos passados na Guerra da Independência de Cuba, em 1895. E à medida que os anos evoluíram, o charuto passou a ser também um símbolo de poder e autoridade. São, aliás, raras as vezes em que o antigo primeiro-ministro aparecia publicamente sem o charuto. A este propósito, algumas histórias que se contam à volta das exigências de Churchill para poder satisfazer o seu vício (também comunicacional) são totalmente disparatadas, mesmo para os tempos da altura. Provavelmente, umas serão mito, outras nem tanto. Seja o charuto de Churchill, o cabelo de Johnson ou as meias de Justin Trudeau (que, intencionalmente, reflectem a jovialidade quase infantil do primeiro-ministro canadiano), são elementos que resultam, em parte, de uma combinação entre aquilo que é genuíno nos políticos e uma dimensão encenada, fazendo parte de uma certa liturgia comunicacional e que parece cativar, cada vez mais, os eleitores.

 

Verdade seja dita que muito antes da ascensão ao estrelato político desta nova vaga de líderes “pop” e populistas, que se enquadram nas novas tendências sociais de um público-alvo cada vez mais urbano e em "rede", já Boris Johnson cultivava a imagem de um político disruptivo na forma de se apresentar, fazendo questão de se fazer transportar em bicicleta pelas ruas de Londres, naquele seu ar de aparente descontração, numa cena tipo hipster, ainda muito antes do revivalismo desta tendência. Quando se tornou mayor da City, há quase dez anos, a sua imagem rompia com tudo aquilo a que estávamos habituados a ver num político de topo. Quase que parecia um ser exótico, para não dizer excêntrico, embora estivesse longe de ter a exposição mediática internacional que alcançaria mais tarde.

 

Se, hoje em dia, o "número" da bicicleta é irrelevante e as meias coloridas de Justine Trudeau já são quase um acontecimento mainstream na comunicação política, há uns anos poucos seriam os políticos que ousariam fugir ao figurino instituído para os chefes de Estado e de Governo. Aliás, até há bem pouco tempo, quem, no seu perfeito juízo, ousaria prognosticar que a França viria a ter um Presidente abaixo dos 40 anos? Ou que a Áustria elegeria o jovem Sebastian Kurz, com apenas 31 anos, para a chefia do Governo, onde, numa imagem de campanha, apareceu sentado em cima de um espalhafatoso todo-o-terreno Hummer numa pose que faria inveja a qualquer rapper de Compton? Ou que Trump, o multimilionário da melena ridícula que apresentava o “The Apprentice”, viria a sentar-se na Sala Oval? Ou que em Portugal um Presidente pudesse vir a ser quase tão popular como Cristiano Ronaldo?

 

São figuras de liderança que, de uma maneira ou de outra, são disruptivas. Não necessariamente na forma de fazer política, mas na maneira de comunicar e “enfeitar” essa política. Nalguns casos, o conteúdo até pode não trazer nada de novo, porém, o “embrulho” em que a mensagem é oferecida à opinião pública é completamente diferente, é apelativo, é vendável (a tal “brand” de que Boris Johnson fala).

 

A experiência diz que parte dessa forma de estar em política tem origem na natureza intrínseca de cada um, mas a outra parte é fruto de um trabalho orientado para determinados fins comunicacionais. Virtuosos ou não. O problema é que quanto melhor é o “jogador” político, mais dificuldades o cidadão terá em perceber o que é genuíno e o que é encenação. Esses dois factores estão sempre presentes e o que as pessoas vêem é um produto final, um personagem político que lhes despertará determinados sentimentos e emoções, porque em comunicação política é a percepção (e não a realidade) o que mais importa.

Em louvor de Clement Attlee

Pedro Correia, 08.09.17

 Attlee com a mulher, Violet, logo após a vitória eleitoral dos trabalhistas em 1945

 

Clement Richard Attlee (1883-1967) era um homem destituído de carisma. Um esforçado militante de esquerda que, superando inúmeras crises nas suas hostes, alcançou em 1935 a liderança do Partido Trabalhista britânico.

Estavam então no poder os conservadores -- primeiro liderados por Stanley Baldwin, depois por Neville Chamberlain. Quando ocorreu a guerra -- a mais devastadora de todas as guerras -- outro conservador, Winston Churchill, ascendeu à chefia do Governo londrino.

Attlee podia ter-se refugiado na trincheira partidária. Mas não: assumiu uma atitude patriótica, aceitando integrar o executivo liderado por Churchill. Sempre na segunda linha, inicialmente apenas como ministro, depois como vice-primeiro-ministro -- posto até aí inexistente, criado especialmente para ele.

Foi de uma lealdade inquebrantável a Churchill durante os cinco penosos anos de guerra. O governo de unidade nacional -- que integrava ainda os liberais, além dos conservadores e dos trabalhistas -- funcionou sempre como um bloco. Sem que a liderança de Churchill fosse alguma vez discutida, sem que a lealdade de Attlee fosse alguma vez posta em causa.

 

Vencida a guerra, em Maio de 1945, a coligação dissolveu-se e realizaram-se eleições. E os mesmos britânicos que aplaudiram a gestão de Churchill durante o conflito que deixou o Reino Unido depauperado, tanto em vidas humanas como nas finanças públicas, disseram nas urnas que era tempo de confiar a outro político os destinos do país.

Ganhou Attlee, com 47,7%, contra 36% de percentagem atribuída aos conservadores: pela primeira vez o Partido Trabalhista dispunha de uma larga maioria na Câmara dos Comuns. E nos anos seguintes, sob a sua liderança, a esquerda britânica assumiu o poder. Governando com tanta eficácia a Grã-Bretanha em tempo de paz como Churchill a governara nos dias incertos da guerra.

Depois de enterrar os mortos, chegara o tempo de cuidar dos vivos -- como ensinou o nosso Marquês de Pombal. Attlee soube cuidar dos vivos: lançou as bases do Serviço Nacional de Saúde britânico, de base universal e gratuita, alargou a segurança social e delineou um ambicioso programa de habitação pública -- marcos modelares daquilo a que por estes dias chamamos "Estado Social". De tal maneira modelares que Churchill manteve-os inalterados quando regressou ao poder, em Outubro de 1951.

 

Attlee, o político sem carisma, é hoje recordado como um dos melhores primeiros-ministros britânicos de todos os tempos. Quando morreu, em Outubro de 1967, o Guardian acertou em cheio ao prever que a passagem do tempo só engrandeceria a sua figura. Assim aconteceu. Uma sondagem realizada pelo Times em 2010 considerou-o o mais qualificado de todos quantos governaram no século XX.

 

Porquê?

Porque soube agir em dois tempos, conforme as circunstâncias exigiam: baixou bandeiras partidárias quando era esse o seu dever patriótico no momento em que a soberania britânica estava em risco e foi recompensado por isso com dois mandatos sucessivos que lhe permitiram enfim aplicar o seu programa de vastas reformas sociais. Deixando o país numa situação de pleno emprego e a crescer ao ritmo de 3% ao ano.

 

Por vezes lembro-me de Attlee ao analisar o percurso de certos políticos contemporâneos. E concluo sempre que o seu exemplo ganharia em ser seguido por todos quantos, manifestamente equivocados, ambicionam o máximo para o momento seguinte. Como se não houvesse amanhã. Como se o decurso do tempo funcionasse como adversário e não como aliado. Como se a política não fosse sobretudo um exercício inteligente e laborioso de persuasão e persistência. Como se os livros de História pesassem menos do que as manchetes da manhã seguinte.

 

Daqui a um mês, a 8 de Outubro, assinalam-se os 50 anos da morte de Attlee

E se fosse consigo?

Ana Vidal, 19.05.16

Acredito, sem ironias, que Catarina Martins tenha mesmo sido apanhada por acaso no programa "E se fosse consigo?". Por que havemos de pensar sempre o pior das pessoas em todas as situações?

Mas, já que as figuras públicas entraram na dança, tenho uma sugestão para a Conceição Lino: inverter os papéis. Num próximo programa, pôr como actores um político e um jornalista conhecidos à chapada num jardim público (assim de repente, lembrei-me de João Soares e Augusto Seabra, ou Sócrates e um jornalista do Correio da Manhã) e ver as reacções dos transeuntes. Tenho genuína curiosidade de saber se alguém iria separá-los, dar-lhes lições de civismo ou... ajudar à festa.

Os Yes Men.

Luís Menezes Leitão, 02.04.16

Dou inteira razão à Teresa neste post. Infelizmente a vida partidária está cheia de yes men, incapazes de ter algum posicionamento crítico e limitando-se a concordar, atentos, veneradores e obrigados, com aquilo que o líder propõe. Podem os próprios sair beneficiados, com cargos atribuídos para recompensar as fidelidades, mas esse é um factor de enorme empobrecimento dos partidos, e no final acaba por prejudicar os próprios líderes.

 

A este propósito recordo-me de uma conversa elucidativa que tive com um professor norte-americano, logo após a eleição de George W. Bush para presidente dos Estados Unidos. Na altura esse professor norte-americano disse-me que estava muito preocupado com as fracas capacidades intelectuais do presidente eleito, claramente visíveis no seu discurso, considerando que isso poderia ser muito prejudicial para o país. Na altura observei que ele se tinha feito rodear de uma excelente equipa, onde pontificavam nomes como Colin Powell e Condoleezza Rice, e que por isso não havia razão para preocupações. A resposta que ele me deu foi elucidativa: "Não concordo que ele tenha uma excelente equipa, mas mesmo que a tivesse, tem que ter a inteligência necessária para saber a quem ouvir. E se todos lhe estiverem a dizer o mesmo, terá seguramente uma péssima equipa".

 

Pensei muitas vezes nessa observação, quando vi os sucessivos desastres a que George W. Bush conduziu os Estados Unidos. De facto o grande problema dele era estar rodeado de yes men, incapazes de lhe chamar a atenção para os erros das suas políticas.

 

 

Não há efectivamente nada pior para um político que rodear-se de uma corte de yes men, que só lhe dizem aquilo que ele quer ouvir. Cedo ou tarde, isso só pode conduzir esse político à derrota. É estranho por isso que os políticos recorram tanto a esse tipo de gente.

 

Razão tinha Samuel Goldwin quando disse: "Não quero yes men à minha volta. Quero pessoas capazes de me dizerem a verdade, mesmo que isso lhes custe o emprego".

Um homem invulgar

Sérgio de Almeida Correia, 28.02.15

Em especial nos esquecimentos.

Para quem não tem, nunca teve, um tostão de dívida à sua Caixa de Previdência ou à sua Ordem, mesmo nos meses mais difíceis, não deixa de ser estranho que gente com estes telhados e uma esteira tão obscura - pelos vistos a todos os níveis -  se dedique a gerir a coisa pública e se atreva a falar de ética e de rigor.

Ainda se fosse por receber o salário mínimo nacional ou rendimentos exíguos...