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Delito de Opinião

Sugestões de novos cartazes ao Chega

Pedro Correia, 02.04.25

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Eis uma pequena amostra do que foi espalhado em Portugal há 45 anos visando o presidente do PSD (e depois primeiro-ministro) Francisco Sá Carneiro, acrescidos de inscrições nas paredes em que o insultavam das mais diversas formas - até ao dia da sua trágica morte, a 4 de Dezembro de 1980.

Se quiser adaptá-los a Luís Montenegro, para prosseguir a actual campanha de difamação, André Ventura precisa, porém, de pagar direitos de autor ao Partido Comunista.

Miguel Macedo

Pedro Correia, 14.03.25

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Foi injustiçado. Foi vítima de uma acusação infame que liquidou a sua carreira política. Foi alvo de uma investigação sem provas e de uma acusação irresponsável que o destruiu por dentro - e talvez lhe tenha deteriorado a saúde a um ponto que até ele mal pôde avaliar. Tinha sido secretário de Estado, deputado, líder parlamentar. Era um competente ministro da Administração Interna.

Talvez pudesse ter sido presidente do PSD - o seu partido de sempre. Nunca saberemos. Acusado de "prevaricação e tráfico de influências", abandonou de imediato funções públicas e remeteu-se à vida privada. Aconteceu em 2014. Se ocorresse uns anos depois, teria visto provavelmente o seu retrato exposto em obscenos cartazes de propaganda política chamando-lhe "corrupto" - alvo da demagogia mais rasteira para ajustar contas com o regime democrático.

Não se escondeu, não virou a cara, não optou pela litigância de má-fé para estender prazos rumo à prescrição.

Negou todas as acusações, comportando-se com irrepreensível dignidade.

 

Seis anos depois, ao ser ilibado na sede própria, o tribunal, a notícia não fez manchete: foi varrida para discretos rodapés. Os "justiceiros" da imprensa estavam de folga ou assobiaram para o lado nesse dia. 

Recebeu-a com alegria, mas também com amargura: a tardia sentença judicial absolveu-o de qualquer suspeita, mas a sua morte cívica fora decretada muito antes. Mesmo assim, ninguém lhe ouviu uma palavra de azedume. Nem lhe passou pela cabeça "processar o Estado" ou pôr-se aos gritos, declarando guerra ao Ministério Público. Deu, também com isto, um notável exemplo de contenção republicana. 

Ressurgiu há um ano, como discreto comentador político longe do chamado "horário nobre": o último foi exibido há escassos dias. Morreu ontem aos 65 anos, vítima de fulminante síncope cardíaca.

A sua voz apagou-se cedo de mais. Faz-nos falta como alerta contra os demagogos de turno que andam por aí sem freio nos dentes, mais assanhados que nunca. Agitando o espantalho da insegurança para apertarem o torniquete à liberdade. 

 

A minha respeitosa homenagem a Miguel Bento Martins da Costa de Macedo e Silva, que agora nos deixa, para dolorosa surpresa geral.

A Assembleia da República prestou-lhe merecido e justo tributo póstumo, como se impunha. É triste que só a morte sirva para convergirmos no essencial. Conscientes de que a democracia política é tão frágil como a vida humana: pode apagar-se com demasiada facilidade se não cuidarmos bem dela em cada dia que passa.

Quatro eleições em cinco anos e sete meses

Pedro Correia, 12.03.25

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Eis já posta em prática a lei das consequências não intencionais a que aludo aqui. Com a dissolução da legislatura que o Presidente da República se prepara para anunciar ao País esta semana, após o chumbo de ontem à moção de confiança apresentada pelo Governo no hemiciclo de São Bento, superamos agora a turbulência eleitoral registada na segunda metade da I República, de má memória.

Nesse período foram convocadas quatro "eleições gerais" para preencher assentos parlamentares: em Maio de 1919, Julho de 1921, Janeiro de 1922 e Novembro de 1925. Quatro actos eleitorais em seis anos e seis meses.

Apesar de tudo, num intervalo mais dilatado do que a alucinante série de recentes eleições legislativas: Outubro de 2019, Janeiro de 2022, Março de 2024 e as que vão seguir-se, provavelmente a 11 de Maio. Cinco anos e sete meses.

Há cem anos, nada de substancial ia sendo solucionado com as sucessivas chamadas às urnas. Pelo contrário, cada toque a rebate eleitoral deixava o quadro político e governativo sempre mais convulso.

Os políticos dos nossos dias, sejam de que quadrante forem, deviam assimilar as lições da História. Antes, porém, é indispensável conhecê-la.

A lei das consequências não intencionais

Pedro Correia, 06.03.25

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Cometemos o erro de procurar interpretar sempre os acontecimentos políticos à luz da estrita racionalidade. E assim falhamos o alvo. Porque a política obedece demasiadas vezes àquilo que Henry Kissinger designava, com sapiência irónica, «a lei das consequências não intencionais». Alguns actos produzem determinadas efeitos que nunca chegaram a ser previstos e estavam longe de ser desejados. 

Vem isto a propósito da alucinante cascata de acontecimentos que está prestes a gerar nova dissolução de uma legislatura e as terceiras eleições parlamentares em três anos no nosso país. Depois de ruir um governo com maioria absoluta, o actual executivo - empossado há escassos 11 meses - prepara-se para cair. Mesmo após superar duas moções de censura no hemiciclo - a primeira só com 50 votos favoráveis em 230 deputados, a segunda tendo recolhido apenas 14 votos de apoio. Nenhuma dessas moções foi sequer apresentada pelo principal partido da oposição, que aliás inviabilizou ambas no hemiciclo. O que torna tudo ainda mais anómalo.

Impôs-se, portanto, a lei das consequências não intencionais: a aparente estabilidade de anteontem degenerou em toada de montanha russa para o caos do momento que só favorece o mais desbragado populismo político. Sem que nenhum dos protagonistas, aparentemente, o tivesse desejado. Sem indícios de mudança substancial de opinião entre os portugueses que foram às urnas a 10 de Março de 2024. Sem a menor garantia de que o próximo acto eleitoral produza uma solução governativa mais estável. Conduzindo o País a um ciclo de três eleições em oito meses (legislativas, autárquicas, presidenciais) quando a actual situação na Europa e no mundo é a mais explosiva em muitas décadas.

«Há quase um sentimento de I República», observou ontem Carlos Moedas, em entrevista à SIC Notícias. Frase certeira. Lembremos esse período nada recomendável do nosso século XX: em menos de 16 anos houve sete legislaturas, oito presidentes, 45 governos e uma junta revolucionária. Num quadro de convulsões sociais, instabilidade económica e violência política que desembocou em meio século de ditadura. 

A história pode sempre repetir-se: basta certos actos impensados produzirem determinadas consequências não previstas.

Alguém devia alertar os aprendizes de feiticeiro para evitarem brincar com o fogo.

O poder no feminino

Pedro Correia, 12.02.25

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Ursula Von Der Leyen, presidente da Comissão Europeia

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Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu

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Kaja Kallas, chefe da política externa da UE

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Roberta Metsola, presidente do Parlamento Europeu

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Giorgia Meloni, primeira-ministra de Itália

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Mette Frederiksen, primeira-ministra da Dinamarca

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Evika Silina, primeira-ministra da Letónia

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Ingrida Simonyté, primeira-ministra da Lituânia

Palácio de Belém: um reduto da misoginia

Pedro Correia, 06.02.25

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As mulheres continuam a ser elementos decorativos na República Portuguesa. Nem me refiro a velhos partidos que nunca tiveram lideranças femininas, como o PCP (fundado em 1921) ou o PS (fundado em 1973). Refiro-me ao próprio Estado. Em meio século de sistema democrático assente no sufrágio universal a Presidência da República só foi preenchida por homens. Nisto, apesar da retórica em contrário, a democracia actual pouco se distingue dos dois regimes das décadas precedentes. 

Desde 1976 tivemos dez escrutínios presidenciais. Com 54 candidatos - 49 presenças masculinas e apenas cinco femininas. Em sete desses escrutínios só concorreram homens: elas permaneceram à margem. 

Chocante disparidade.

 

O cerco misógino rompeu-se fugazmente em 1986, com a candidatura de Maria de Lurdes Pintasilgo. Seguiram-se 30 anos de estrito monopólio masculino enquanto Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva se sucediam no Palácio de Belém.

Em 2016 houve algo inédito: duas candidatas. Marisa Matias e Maria de Belém Roseira ousaram avançar. Cinco anos depois, a deputada bloquista tornou-se única mulher repetente numa corrida à suprema magistratura da nação. Num escrutínio em que também Ana Gomes marcou presença.

Com que resultados? Ana Gomes foi a que até hoje teve mais sucesso: obteve 13% dos votos, ficando em segundo lugar - largamente ultrapassada pelo vencedor, Marcelo Rebelo de Sousa (60,7%). O segundo melhor resultado de uma mulher em candidaturas presidenciais foi o de Marisa: 10,1% em 2016, o que lhe valeu um terceiro lugar (o vencedor Marcelo recolheu 52% e Sampaio da Nóvoa ficou em segundo, com 22,9%). Cinco anos depois, recandidata, baixou drasticamente a percentagem, ficando só com 4%. Um pouco menos do que os 4,2% de Maria de Belém em 2016.

A estreante Pintasilgo tombou para quinto e último na corrida presidencial de 1986: conseguiu apenas 7,4%. A igualdade de oportunidades, que tanto se apregoa na cartilha republicana, mal ultrapassa o patamar da propaganda. 

 

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Mariana Leitão rompe o cerco, candidatando-se a Presidente da República

Para 2026, prepara-se um cenário muito semelhante. Quase todos os nomes de que se tem falado ao longo dos últimos meses, com razão ou sem ela, são masculinos: Gouveia e Melo, Marques Mendes, António Vitorino, António José Seguro, André Ventura, Mário Centeno, Augusto Santos Silva, Aguiar-Branco, Passos Coelho, Paulo Portas, Durão Barroso, Santana Lopes, Sampaio da Nóvoa, Aristides Teixeira, André Pestana.

Daí a minha enorme satisfação por ver Mariana Leitão, líder parlamentar da Iniciativa Liberal, avançar com uma candidatura a Belém, naturalmente apoiada pelo partido. Conheço-a, gosto muito dela, sei que terá um bom resultado. E, desde já, abre uma fenda na muralha da misoginia dominante. Um trunfo a favor desta jogadora federada de bridge. De certeza que não se perturba por parecer carta fora do baralho: até sentirá um gosto muito especial nisso.

Trump 2.0, oligarquia, e um mundo à beira de um caos de mudança

João André, 22.01.25

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Imagem da The Economist.

Ainda a segunda presidência Trump vai no adro e já estou farto das histórias. É como ver um enorme acidente rodoviário em câmara lenta. Estou horrorizado mas não consigo deixar de olhar. E no final vai haver muita gente a sofrer. Por isso escrevo agora com o desejo de não abordar Trump durante muito tempo (senão en passant porque o tema não o pode evitar, como quando possa escrever sobre as alterações climáticas).

Escrevi acima "segunda presidência de Trump" mas há já quem fale em primeira presidência de Musk. É obviamente exagerado - Musk não quer gastar tempo em gerir o país, isso é chato e ele nem saberia o que fazer - mas aponta uma direcção para o país: a oligarquia. Isto foi óbvio com a presença dos tech bros na inauguração e na enorme presença de Musk. Contribuíram financeiramente mas mais ainda contribuirão com a sua colaboração futura. Bezos domou o Washington Post, a Meta já anunciou o fim das verificações de factualidade e outras empresas (tech ou não) também anunciaram que estariam dispostas a trabalhar com Trump. Assim mesmo, «dispostas a trabalhar com Trump», num tom que indicaria subserviência. Só que não o será, pelo menos não exactamente. As empresas estão interessadas, acima de tudo, nos lucros e para tal farão aquilo que precisam de fazer. Os lucros, especialmente para os seus donos e CEOs, vêm na forma de cotação bolsista e acções detidas. Quanto mais estas sobem, mais as empresas valem, mais dinheiro podem ter disponível, mais dinheiro podem pedir e a lucros mais baixos, e mais poder acumulam. Foi assim que Musk, com um investimento de 43 mil milhões no Twitter e uns 220 milhões na campanha, conseguiu já aumentar em alguns 170 mil milhões a sua fortuna após a vitória de Trump. Entretanto, Trump anunciou já que irá investir 500 mil milhões em Inteligência Artificial, tendo ao seu lado uma das pessoas mais ricas do mundo - Larry Ellison, o líder de um dos maiores fundos de investimento do mundo - Masayoshi Son, e o "guru" da IA e líder da OpenAI Empresa apoiada pela Microsoft) - Sam Altman (que entretanto é também já um bilionário). Se lá tivesse também Jensen Huang (presidente da Nvidia e outro centibilionário) faria bingo. Teria também o perfeito grupo de gestores que não precisam de dinheiro do estado. Mas vão recebê-lo, à ordem de 125 mil milhões por ano.

Estes são os primeiros exemplos. A promessa de enviar americanos a Marte, quando ao lado de Musk, deve ter aumentado em mais uns 50% a valorização da SpaceX. O drill, babz drill, deve deixar os mercados bolsistas de acções de empresas de petróleo mais descansados, mesmo que isso não tenha importância porque os EUA já são o maior produtor mundial de petróleo e gás (deste também o maior exportador) e não há muito espaço para aumentar esses valores. Os cortes de impostos irão provavelmente ser feitos permanentes e não serão os últimos. O ridículo departamento de eficiência governamental foi entregue aos magnatas para partir o estado aos bocadinhos e dividir a pequena rede social que existia. As estúpidas tarifas irão aumentar os preços de tudo, mas irão provavelmente também reduzir o volume de importações, o que provocará um aumento da produção interna. Quem pagará? O consumidor comum. Quem beneficiará? Os magnatas, como é habitual. E ainda veremos as mudanças de regulamentações para reduzir a necessidade de conformidade por parte das grandes empresas. Regulamentos ambientais? Fora. Água limpa? Para quê? Litigação contra as grandes empresas? Provavelmente será reduzida ao mínimo.

E nem entramos no encher o aparelo executivo de lealistas que farão tudo o que ele mandar e perseguirão quem ele quiser. Olhar para algumas escolhas é criar a pergunta: qual destes é o membro do governo mais incompetente de todos os tempos? Será Hegseth? Patel? Kennedy? Ao menos Bondi e McMahon têm experiência nas suas áreas e em gerir organizações maiores que uma banca de limonadas. Vale no entanto a pena falar naquilo que este gabinete trará: um declínio futuro do país. A educação está entregue a alguém que pouco fará por ela. A ciência está ausente, foi outsourced a Elon Musk (que também pouco percebe dela). O investimento no Green New Deal e que seria usado para actualizar a infraestrutura do país desaparecerá. Não só irá o dinheiro para os bilionários que dele não precisam (mas que o aceitarão e nem dirão muito obrigado) como não será investido em assegurar o futuro do país, assegurando que está preparado para a transição energética que é cada vez mais inevitável. Ao mesmo tempo, as emissões de CO2 irão provavelmente disparar (se isso não acontecer será apenas e só porque há empresas que não são míopes e percebem a importância de investir agora na transição energética) o que fará com que algumas das áreas de principal apoio para os republicanos sejam afectadas: Florida irá afundando, o sudeste do país sofrerá cada vez mais furacões, or tornados no centro do país aumentarão de frequência e intensidade, etc. Suponho que desde que a Califórnia continue a arder, isso não os incomode.

E finalmente chegamos aos custos humanos. Milhões irão sofrer. Pessoas, seres humanos, cujo único crime foi fazer o que os antepassados de milhões de americanos fizeram: fugir em busca de uma vida melhor. Também muitos outros que não poderão pagar os custos com a saúde. E depois todos os outros de quem os republicanos não gostarem e que perseguirão sem piedade.

E o aparelho judicial não ajudará. No Supremo Tribunal imagino que Thomas e Alito se retirem para dar lugar a juízes semelhantes mas mais jovens. Sottomayor talvez aguente a sua saúde mas daí talvez não. Pode ser que no final da sua segunda presidência Trump tenha 7 juízes. E há que depois encher os restantes lugares de juízes federais com mais uns quantos lealistas (como Aileen Cannon) que o ajudarão no que puderem. E provavelmente apioarão medidas para restringir o voto de (em) adversários políticos, para cumprimir a promessa a um grupo de cristãos na campanha que não precisariam de voltar a votar. Claro que tudo isto poderá levar a reacções de protesto, por isso ajuda ter alguém como Hegseth à frente do Pentágono e que não hesitará (entre garrafas de vodka) em despedir qualquer militar que não cumpra ordens, inclusivamente de disparar sobre protestantes.

Internacionalmente ele irá provavelmente tentar de facto acabar com a guerra na Ucrânia sem pressionar excessivamente Zelenski, mas como Putin não quer saber, não consigo imaginar um cenário em que Putin não tenha o essencial daquilo que quer. Verdade seja dita que isso não será particularmente por culpa de Putin: se Biden queria de facto ajudar a Ucrânia devia tê-lo feito a tempo e horas. Neste momento o país já só quer sobreviver. Só que o acordo final irá provavelmente reforçar Putin, que verá muitas sanções desaparecerem aos poucos e acabará numa posição de força. Do outro lado da Ásia, os sul-coreanos e japoneses verão provavelmente Trump dizer-lhes que terão que se desenrascar sozinhos, o que os levará a desenvolver capacidade nuclear. Taiwan poderá ser invadida antes do final da década, dependendo daquilo que Trump faça (isso é mais provável hoje que em qualquer momento nos últimos 30 anos). Netanyahu irá possivelmente arranjar mais uns conflitos para se manter no poder e justificar atacar mais uns vizinhos (como já está a fazer na Cisjordânia, agora que tem uma trégua com o Hamas) e manter a temperatura no Médio Oriente elevada. Só não sabemos se irá atacar o Irão ou o Irão irá decidir meter todos os ovos no cesto de uma ofensiva antes que fique mais fraco. Mas é um facto que, pelo menos neste aspecto, Trump na Casa Branca reduz a possibilidade de um conflito (embora aumente a possibilidade que seja nuclear).

E, claro, as ordens mundiais foram às urtigas. Neste mundo futuro, em que os EUA irão declinar, a China continuará a crescer porque conseguiu - pelo menos até ver - a quadratura do círculo: compensar o declínio e envelhecimento populacional (inevitáveis depois de decadas de políticas de restrição da natalidade) com o outsourcing (esta palavra outra vez) de muitos dos recursos e mão de obra a outras partes do mundo.

A Europa? Bom, antes de mais tem que se armar e aprender que precisa de um exército europeu. depois precisa de compreender que só a tecnologia a safará. E finalmente necessita de entender que o seu período de dominância foi apenas umcurto período na História Humana e consequênica de uma colonização que sugou os recursos às partes do mundo que os tinham. A Europa é uma região com poucos recursos naturais e se não souber utilizar os seus recursos humanos (e absorver alguns novos) não avançará. A única coisa que se pode dizer é que, pelo menos por agora, ainda sabe que o caminho para o futuro é verde, até pelas tecnologias que está a abrir. Mas terá que aceitar que no jogo da corda entre EUA e China, e ameaçado por potências nucleares essencialmente nazis como a Rússia, terá que se submeter a um papel de subordinado pelo menos por ums décadas.

Sou um pessimista, sei-o. Espero que este post ainda aqui esteja daqui a uns 20 anos para me mostrarem a parvoíce, para eu mostrar aos meus filhos que a idade não confere necessariamente sabedoria, antes confere maus fígados. Mas...

É uma imagem desoladora? Sim, é, mas é a imagem que Trump está a dar.

A qualidade da democracia em maré baixa

Pedro Correia, 26.11.24

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Maria João Avillez em 1975, ano trepidante no jornalismo português

 

A minha vénia a Maria João Avillez, na sabedoria dos seus lúcidos e joviais 79 anos.

«A qualidade da democracia está muito baixa. Eu vi (noutros tempos) outra compostura e outras boas maneiras, por exemplo no parlamento, que não excluíam discussões acesas. Não havia inimigos, mas adversários.» Palavras dela, em entrevista à SIC que foi transmitida no sábado.

Sabe muito bem do que fala. É a mais experiente jornalista portuguesa ainda em actividade, tem uma memória prodigiosa e acompanhou de perto tudo quanto houve de mais relevante no último meio século em Portugal.

Se alguém pode comparar os políticos de agora com os do passado, é precisamente ela. Ainda bem que o faz.

Um apanhado de reflexões

João André, 13.11.24

1. Há pouco mais de um mês fez um ano do ataque (pogrom) do Hamas a Israel. Escrevi sobre o assunto na altura e citei uma frase que tinha lido: «o Anjo da Morte lambe os beiços». Um ano mais tarde a única coisa que dá vontade de dizer é que essa frase ficou aquém da realidade. Em Gaza a contabilidade de mortos anda nos 43 mil a 47 mil desde há uns meses, apesar de sempre que leio as notícias haver mais uns quantos a morrer (entre 5 a 50 em cada dia que leio). A maioria dos reféns continua em Gaza e os israelitas supõem que um terço deles terão perdido a vida. Não há solução à vista mas os generais parecem falar abertamente da expulsão de palestinianos do norte do território e ocupação do restante. Uma geração de palestinianos estará traumatizada/aleijada/radicalizada (não, não é um "riscar o que não interessa", todas serão verdade) para o resto da vida. Os israelitas estarão mais seguros por uns anos, antes do ressentimento ressurgir. Não falo em Genocídio como muitos fazem, porque siceramente não quero acreditar nisso, Mas parece-me óbvio que este governo israelita anda a dar tangentes ao conceito.

Pelo meio apareceram os outros episódios. Com o Irão, que tenta a todo o custo manter-se afastado do conflito (pelo menos de forma directa) e tenta apenas mostrar-se através dos seus facínoras de aluguer. Com o Líbano, que por causa de um exército de rebeldes radicais que não tem força para eliminar está a ser massacrado por um Israel que lhe diz para expulsar o Hezbollah (como se o conseguissem). E com os Hutis no Iémen, que às ordens dos aiatolás loucos de Teerão dão razões a Israel (e EUA e outros) para estenderem um confito que não podem ganhar.

E o Anjo da Morte enche a barriga.

 

2. Na Ucrânia chegou-se a um impasse onde a Rússia não tem conseguido ganhar território suficiente para acabar com os ucranianos mas sabe que o tempo joga a seu favor. Mesmo que os EUA conseguissem o seu apoio de forma indefinida (coisa que não acontecerá - já lá chego), os russos andam a trazer norte-coreanos e daqui a uns tempos se calhar também bielorrussos e outros para engrossarem as suas fileiras. Putin está à espera que a Ucrânia seja forçada a ceder ou que caia de podre. Não estará errado. A questão é o que fará depois, com forças armadas mais modernizadas, treinadas e uma infraestrutura mais fortemente orientada para a guerra, especialmente aquela que contorna a sanções internacionais. Se eu vivesse nos países fronteiriços não dormiria descansado.

 

3. No Sudão vai prosseguindo uma guerra civil que até ao momento poderá já ter matado até 150 mil pessoas, deslocado perto de 8 milhões e criado mais de 2 milhões de refugiados. Ao pé disto os outros que referi acima parecem ser da segunda divisão. Mas não ligamos, porque está mais longe e não queremos saber. Não há nada de especial que nos envolva a nós. A não ser... aquela coisa chata... de seres humanos a perder as vidas.

 

4. Nos EUA Donald Trump lá venceu as eleições. O primeiro criminoso condenado em tribunal, responsável por uma tentativa de subversão de eleições livres, que afirma ir ser ditador apenas no primeiro dia (nem precisaria de o ser nos outros), que tenta abertamente reduzir direitos de tudo o que não sejam as pessoas que ele entende serem as melhores: habitualmente brancos, depois os não brancos de quem ele goste, no fundo virão as mulheres em geral e especialmente as mulheres não brancas de quem ele não goste. Só que foi eleito de forma democrática e isso deve ser respeitado. Temo pelo seu país (embora não goste muito dele) e temo muito pelo mundo. Estou à espera de uma presidência transaccional, onde tudo é negociável desde que beneficie os EUA (ou a ele pessoalmente, esta opção é obviamente a preferível) e onde tarifas, saídas de acordos e mandar amigos e aliados às urtigas serão moeda corrente. A Ucrânia será atropelada e forçada a aceitar seja lá o que for. Taiwan deixará de receber garantias reais. Coreia do Sul e Japão poderão estar neste momento a avaliar a maneira mais rápida de obter armas nucleares. E quando Trump se for embora (se fosse mais novo talvez tentasse mudar a constituição para poder chegar ao terceiro mandato) terá tudo para ter deixado a extrema-direita ao leme do país.

 

5. Na Europa veremos o mesmo. Os bilionários europeus olharão para o que se passou nos EUA - a caminho de uma oligarquia - e perguntarão se não poderão implementar o mesmo programa. A extrema-direita será a segunda força na Alemanha a partir de Fevereiro. Na Holanda já é a primeira força e estará à espera de ver os seus parceiros de coligação a deitá-la abaixo para forçar eleições para reforçar o seu poder. Na França Le Pen poderá finalmente atingir o seu desejo de ser presidente. Na Itália já lá chegarão, talvez cedo de mais e a precisar de suavizar as coisas para já (Salvini não seria tão simpático como Meloni). Em Portugal estou para ver o que se passará. O que imagino no entanto é uma classe de super-ricos a financiar esses movimentos para que depois possam ter carta branca para fazerem o que quiserem sem esse inconveniente de regulamentos.

 

6. E nisto o planeta vai aquecendo. Podemos esquecer os 1,5 ºC, que já estão atingidos. Não de forma oficial, para isso é preciso ter uma ou duas décadas de temperaturas consistentemente nesse patamar, mas na prática já ninguém acredita realmente que escapamos. As ondas de calor continuam. As cheias também. O mesmo para tempestades e tornados e furacões. E não vamos parar aqui. Tudo o que os climatólogos andam a dizer há décadas começa a acontecer. E vai piorar. Porque não aprendemos.

 

7. Chegado aqui poderei ter tentação para culpar alguém. Talvez a esquerda, como neste post abaixo? Ou a direita, que adoptou bandeiras da extrema direita (como a imigração) sem perceber que o eleitorado tende a preferir o original à fotocópia? Ambos? Os social media que são hoje já meios de comunicação dominantes? Os bilionários que dão dinheiro a quem lhes prometer que podem continuar a enriquecer-se como quiserem? Não.

 

8. A culpa é de sermos essencialmente os mesmos seres humanos que há umas dezenas de milhares de anos ainda se escondiam em cavernas, tinham medo de fogo, comiam como se não houvesse amanhã quando encontravam a comida, se fiavam em grupos pequenos onde toda a gente estivesse ligada por laços de família ou fosse do mesmo clã, onde qualquer conforto era imediatamente agarrado quando surgisse. Somos humanos das cavernas mas dominámos o fogo, o átomo, aprendemos a atravessar oceanos, a voar, a ir ao espaço, a comunicar a enormes distâncias, a ligarmo-nos entre todos. E fizémo-lo de forma cada vez mais acelerada. Os nossos cérebros não estão construídos para isto. Agora acreditamos que construir cérebros externos (IA) ou melhorar os que temos (neurolinks) vai resolver o problema. Não irá.

 

9. Termino com a mensagem pessimista. Iremos provavelmente ter grandes catástrofes em breve. Sim, sou um profeta da desgraça e espero estar enganado. Mas creio que atingimos o limite do que podemos fazer da forma como o temos feito. A nossa história (humana) está repleta de picos de prosperidade, cultura, economia, etc., seguidos de uma catástrofe ou outra, natural ou autoinfligida. Acredito que estaremos lá perto. Mais uma vez, muito desejo que alguém me aponte este post daqui a uns 50 anos, comigo ainda vivo, e me demonstre como estou a ser estúpido. A sério que sim. Mesmo que isso signifique que toda a minha ideologia era uma parvoíce.

Só que...

People have the power

jpt, 16.10.24

[People have the power (Patti Smith sings "People Have The Power" with a choir made up of 250 volunteer singers at NYC's Public Theater. This was done in 2019. Daveed Goldman on guitar and Stewart Copeland playing the frying pan.)]

Isto tudo se liga, se articula... e contradiz! No seu  mural de Facebook o Henrique Pereira Dos Santos traz esta versão coral da "People Have The Power" da Patti Smith - a qual, vos garanto por empírico conhecimento, cruza gerações. Canção hino que tantas vezes cantámos, nas pistas ou por aí afora, às vezes exultantes como se gente, outras cantarolando em ira amesquinhada. 

Tudo se liga, tudo se contradiz!, digo eu. Estou a ler o imprescindível "Tudo é Tabu" do Pedro Correia (Guerra e Paz Editores) , um rol de 100 casos de censura promovida pela vigente e descabelada ideologia "identitarista", e ontem cruzei o 75º caso, exactamente o respeitante à Patti Smith, até ela alvo do cretino modo "cancel"!

Ao mesmo tempo vou, cá de longe, recebendo as novas sobre as eleições em Moçambique - país onde a "People Have The Power" se canta "Povo no Poder" -, mais um episódio da inenarrável e despudorada apropriação do voto popular, do "Power" do "People". Até quando?, a que custos?, como se chegará ali ao "Basta" ("Chega" é uma palavra agora politicamente poluída, entenda-se...)?

Mas tudo se liga, tudo se contradiz! Pois cantarolo a canção sentado no meio deste meu Povo pensionista, decrépito, cujo poder se restringe a votar nesta pobreza mental e moral, como se vê na gritaria socialista e fascista à volta do orçamento, no dia em que juristas forçam a arrastar um homem doentíssimo num tribunal apenas para justificarem o seu lacaio imobilismo, servis a este estado do Estado.

Tem o "people" o "power"? Tem, estive ontem a ver as sondagens americanas, Estado a Estado... É quase certo que Trump ganhará.

"...the people have the power / to redeem the work of fools"?

É mesmo melhor cada um tomar o combustível que lhe apetece (Vodka tónico para mim, sff) e ir para a pista, dançar e cantar. Sem esperança. Mas não desesperado.

Memórias de uma activista partidária

O General por todas e todas pelo General

Maria Dulce Fernandes, 19.09.24

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Em 1976, os portugueses foram chamados pela primeira vez às urnas para eleger o Presidente da República, que iria substituir após sufrágio universal o até então Presidente Francisco da Costa Gomes, indicado para o cargo pela Junta de Salvação Nacional, após o pedido de demissão do General António de Spínola em Setembro de 1974.

Creio que não havia jovem da minha idade que não tivesse um interesse partidário ou fosse activista filiado num partido, como era o meu caso e o da minha melhor amiga.

Concorriam às eleições presidenciais o General Ramalho Eanes, que contava com o apoio do PS, PPD, CDS e MRPP, o já General Otelo Saraiva de Carvalho, apoiado pela UDP, MES, FSP e PRP, o Almirante Pinheiro de Azevedo, como candidato independente, e Octávio Pato, com o apoio do PCP e das suas ramificações, como a UEC, por exemplo.

Os filiados dirigentes de núcleos e células tinham como objectivo primordial angariar votos para o candidato apoiado pelo seu partido, onde quer que fosse. Sendo eu estudante, fiquei encarregada (pelo coordenador do Partido Socialista a quem respondia directamente) de coordenar a campanha eleitoral no Liceu, com folhetos informativos palestras e pósteres. A direcção do Liceu tinha, para o efeito, improvisado um mural em contraplacado para afixar tudo o que fosse propaganda eleitoral.

Todos os dias de manhã seguia eu para o liceu com um pequeno balde, uma trincha, uma latinha de cola, um ror de panfletos e os pósteres com a foto do General Eanes (que iam mudando a figura e a mensagem com alguma frequência), e começava por colar estes últimos no mural. Depois, com a ajuda de mais cinco ou seis camaradas, distribuíamos os panfletos pela carteiras ainda vazias das salas de aula. Tudo isto feito muito rapidamente e até poucos minutos antes de tocar para a entrada, para não dar tempo de as facções rivais nos apanharem os papéis e os deitarem para o lixo, substituindo-os depois pelos seus próprios panfletos. Era uma guerra de coordenação e paciência. Quando começámos, se encontrávamos panfletos nas carteiras, juntávamos os nossos e pronto. As meninas da UEC jogavam sujo. Destruíam todos os folhetos que encontravam e deixavam apenas os delas, colavam os pósteres do Octávio Pato por cima dos outros e, à falta de material para cobrir o exposto, faziam bigodinhos à Hitler nas fotos do General Eanes.

Toda esta sacanice era coordenada pela minha melhor amiga e colega de carteira, coordenadora da propaganda eleitoral no Liceu, pela UEC do PCP e do Senhor Pato. Ao princípio levámos tudo aquilo na desportiva, mas depressa compreendemos que as meninas uéques estavam irredutíveis porque tinham “recebido ordens” e nunca as iriam contrariar. Aí é assim? Está bem. Também sei jogar sujo quando é preciso.

Fiz um desenho fácil de reproduzir e arranjei giz colorido. Missão: desenhar um pato depenado e escrever "UEC, UEC, UEC, abriu a caça aos Patos", em todos os quadros negros de todas as salas de aula.

Fazer isto todos os dias, colar cartazes, distribuir folhetos e “dar palestras” implicava chegar ao Liceu às sete da manhã, ficar por lá até às cinco e meia da tarde e passar os intervalos de guarda ao mural dos pósteres. Muitas vezes quando lá chegávamos já estava tudo destruído, o que acontecia nos minutos das aflições para chichis durante as aulas, por isso passámos a ficar muitas vezes aflitas também e de tal modo que a professora de matemática escreveu um recado para os meus pais, alvitrando possíveis problemas de bexiga.

A minha amiga e eu tínhamos um pacto de não-agressão e não discutíamos o trabalho politico-partidário que cada uma estava encarregue de fazer. Mas éramos mazinhas umas para as outras e a única maneira de vencer a campanha no Liceu, era pelo cansaço.  Passámos então a colar pósteres mais pequenos do General Eanes nos tampos das carteiras das meninas da UEC. Todos os dias. Tendo como ponto de ordem a erradicação de toda a propaganda contrária às directrizes do partido, tinham as pequenas uéques de arrancar as colagens de onde quer que estivessem. Ora a cola que utilizávamos nos tampos das carteiras não era diluída, pelo que tinham forçosamente de conviver com o nosso General boa parte do tempo lectivo, até conseguirem arrancar dali aqueles fascismos.

De uma certa forma ganhámos na propaganda e depois nas eleições. Foi uma festa. Foi hercúleo o esforço para não rir nem grasnar no dia  escolar que veio após as eleições. 

Curiosamente, as apoiantes da candidatura de Otelo Saraiva de Carvalho, talvez por pensarem que a eleição eram favas contadas, não tiveram grande impacto na vida estudantil no Liceu. Olhavam-nos do alto da sua certeza com algum desprezo e apenas protagonizavam sessões de esclarecimento programadas. Tinham os pósteres do seu candidato intocáveis por acordo tácito e não nos incomodavam. Era como se não existíssemos. Sobre Pinheiro de Azevedo, muito pouco se viu ou ouviu, por isso a batalha “do bem contra o mal” foi basicamente PS+PSD+CDS+MRPP, contra a UEC do PCP.

Como acontece na vida de todos nós, passado o calor da primeira vez, tudo voltou ao que era dantes, sem ressentimentos, porque as amizades fortes não se destroem com ideologias, aceitam-se e continuam como sempre foram. Ainda nos rimos de todas essas peripécias, mas depois de a minha amiga ter partido como cooperante para Angola, perdi-lhe o rasto.  A sua família entretanto mudara de cidade, eu também mudei de casa e o PCP nunca me respondeu aos e-mails, que ainda continuo a enviar, com menos frequência  é certo, mas com esperança de que alguém por lá os leia e me saiba dar notícias dela.

Agora as campanhas eleitorais são feitas online, carregadas de aldrabices no X e em outras redes sociais. Muito pouco me admiraria se num futuro próximo os votos se contabilizassem em likes.

Frivolidades estivais

Sérgio de Almeida Correia, 07.08.24

Cazeneuve Paris Match.jpg.webp(créditos: Paris Match)

Interessante apontamento (La révolte des “sans-cravates”) no livro de Nathalie Schuck sobre a linguagem e a vestimenta de alguns parlamentares, e o modo como os costumes destes (des)evoluíram no Palais-Bourbon, que será em França o correspondente ao nosso Palácio de S. Bento.

Recordando alguns episódios curiosos, como a entrada de Jack Lang com um fato ao estilo Mao, do estilista Thierry Mugler, a recusa de Jean Lassalle de despir um colete amarelo, provocando a interrupção da sessão legislativa, e uma outra vez em que Michèle Alliot-Marie, na altura ainda simples conselheira, ao entrar no hemiciclo foi impedida de fazê-lo por um zeloso huissier que lhe chamou a atenção para o facto de querer entrar de calças numa altura em que tal ainda não era permitido às mulheres, lhe respondeu com um “se vos incomodam, poderei tirá-las”, Schuck destaca num primeiro momento o desbragamento das intervenções, em especial depois da chegada dos deputados da França Insubmissa. 

Na 16.ª Legislatura, só até Dezembro de 2023, e em apenas 18 meses, o número de sanções aplicadas a deputados era de 145, na sua maioria por desacatos, perturbação aos trabalhos, provocações e outros ofensas, quando no primeiro quinquénio de Macron foram 16 no total e apenas 6 durante todo o mandato de Hollande. 

Nenhuma assembleia está livre de intervenções infelizes e ao longo dos anos sempre ocorreu uma ou outra, algumas de franco mau gosto, como a de alguém que em 1974, estando Simone Veil, ministra da Saúde do governo de Chirac e uma sobrevivente do Holocausto, a fazer a defesa do seu projecto de lei da interrupção voluntária da gravidez o comparou ao genocídio nazi. 

Mas quanto ao vestuário, Nathalie recorda as intervenções de Bernard Cazeneuve, antigo ministro socialista, de Aurélien Pradé, da direita republicana, de Karl Olive, do Renaissance, e do politólogo Patrick Buisson. 

O primeiro, que chegou a ser considerado pela revista GQ, em 2016, o homem mais bem vestido de França, quando lhe perguntaram se não seria uma questão de snobismo respondeu que a sua forma de vestir era uma prova de respeito para com o povo: “Pour le dire autrement, c’est une forme de mépris absolue du peuple que de considérer qu’ on ne le represente bien qu’ étant débrayé. Ça veut dire que l’idée que l’on se fait de lui est tellement dégradée qu’on peut se permettre de le représenter en négligeant son apparence. L’idée que je me fais du peuple, c’est qu’il a une très haute idée de ses représentants et qu’il attend d’eux qu’ils soient absolument impeccables. On me raille sur mes costumes, mais je pense que quand on représente, on respecte. C’est une politesse absolue, une manière de dire à ceux qui m’ont fait confiance mon respect total”. 

Na mesma linha, Pradié diz que quanto mais modestos são os eleitores, maior a necessidade dos seus representantes se apresentarem com dignidade: “le vêtement que l’on porte est souvent une marque de respect pour soi-même, mais surtout pour les autres”.

Karl Olive afirma mesmo que se um huissier que dê por uma mancha no calçado vai ao vestiário para se compor, como não ficar “escandalizado” se um deputado se apresenta de jeans e de ténis (sapatilhas), concluindo que seja essa talvez a razão para que algumas escolas se pareçam com bordéis. Chama-lhe o efeito caixa de ressonância antes de acrescentar: “L’ Assemblée, ce n’est pas Intervilles (programa de televisão famoso criado em 1962) pour les vaches!” 

E Buisson, entretanto falecido, lembrava que nessa desvalorização da embalagem residia um mal-entendido fundamental: os franceses querem ser representados por gente respeitável e digna. Por essa razão é que Léon Blum, o primeiro-ministro da Frente Popular, era um burguês e vestia-se como tal, sendo impensável que um deputado de esquerda não usasse uma gravata. Para o politólogo, a ideia do deputado de esquerda não usar gravata é um fenómeno cultural que traduz uma depreciação do político, traduzindo-se num fenómeno recente que acompanha o descrédito da política. 

Há aqui pano para mangas.

Não vou tão longe. Como em tudo existe um meio-termo, um ponto de equilíbrio entre a apresentação e o respeito que é devido aos outros, o nosso conforto e a liberdade de todos e cada um se sentir bem na sua pele e em todas as ocasiões. No falar e no vestir. 

Mas pensando sobre o que li, sem cair nos exageros que conduziram a 1789, em que o rei intimou os representantes do Terceiro Estado a apresentarem-se com uma gravata de musselina, e olhando para o parlamento português e para o que nele se passa cada vez mais frequentemente, no vestir de alguns, muitos sentados nas primeiras filas, para que a todos vejamos bem e não percamos pitada, na vozearia, na linguagem inconveniente e desbragada, no insulto rasteiro, na gargalhada alarve, no dichote boçal, não custa perceber a razão de muitos dos comentários que se ouvem nos cafés e nas tascas. Tanto nas do Portugal rural e profundo, como do país urbano pretensamente fino, eloquente e modernaço que vai em manada de férias para o estrangeiro, come sushi e bebe mojitos.  

Se somarmos a isso o à-vontade – há quem lhe chame outras coisas – com que alguns entram e saem de uma repartição pública, de um escritório, de uma sala ou de um gabinete, onde está mais gente, sem que ao menos se ouça “bom-dia” ou “boa-tarde”, ou que respondam à saudação que muitas vezes lhes é feita, limitando-se a um esgar ou uma espécie de grunhido, e começam a falar com quem está como se sempre ali tivessem estado ou fossem os outros que acabassem de entrar, ou lhes devessem algo, é outra das modas que se vai impondo.  

Moda lamentável, é certo, e de difícil combate. Por múltiplas razões. Porque muitos não mereceram acesso àquilo a deviam ter direito. Outros porque a escola não lhes ensinou o que devia, ou não quiseram aprender em tempo oportuno, ou porque não cultivaram padrões estéticos e de linguagem, achando isso um aborrecimento ou uma frivolidade. Outros, ainda, porque não distinguem a falta de jeito do insulto; e não percebem o que está em causa nem para que serve.  

Vale a pena pensar no que escreveu Nathalie Schuck. Sem preconceitos, serenamente. E depois olharmos para nós.

Há uma grande diferença entre ser popular e popularucho. Convinha que alguns dos que nos representam percebessem isso. Ainda que estejam a banhos em Monte Gordo. Seria uma outra forma de também servirem os portugueses.

Nem Hollywood se atreveria

João André, 22.07.24

Hollywood anda a exagerar. Depois dos livros, videojogos, antigos filmes e séries e até bonecos, vem agora o uso de IP (propriedade intelectual) pública. Esta série sobre as eleições americanas de 2024 até prometia. Dois candidatos bem diferentes, com muito vinagre entre eles, numa dicotomia clara, mas com personagens cheias de histórias pessoais muito complexas e com personalidades pejadas de falhas. Um ambiente muito carregado e grande excitação. Até arranjaram actores muito parecidos com os políticos que representam.

Só que exageraram. Uma prestação ridícula num debate, um atentado, uma revolta de um partido, culto da personalidade noutro, exageros dos extremos nos dois lados e agora a história de um dos candidatos desistir a um mês da sua convenção. Ainda quero ver os próximos episódios, mas isto é o hábito dos produtores de meter todas as ideias no argumento. Aquilo não rola bem, não é verosímil, é coisa a mais. Espero que se foquem novamente no diálogo, que nisso estavam fraquitos.

E agora ler o jornal... O quê?!?!?!

Olimpo

Sérgio de Almeida Correia, 04.07.24

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La grande difficulté de nos dirigeants réside dans la prise de décision. (…) Le pouvoir est rarement capable de faire ce qu’il sait qui faudrait faire. D’où cette tentation de l’autoritarisme que l’on voir poindre, autre face de cette impuissance. L’art politique ne peut se contenter de manier l’illusion, et la communication ne peut tenir lieu de politique. La théâtralisation a ses limites.” Sébastien Le Fol, Les Lieux du Pouvoir – Une histoire secrète et intime de la politique, Préface.

 

Para o fim guardei o melhor bocado – um bom livro é muito mais do que um simples conjunto de folhas encadernadas – de mais uma das minhas peregrinações à belíssima região do Sarthe. E este é bem mais do que um livro. É uma obra de arte. Tanto numa perspectiva política como sociológica e literária.

Tudo começou, de acordo com o relato de Sébastien Le Fol, por ocasião do quarto centenário do Castelo de Versalhes, em 2023. O castelo continua a ser um instrumento de poder, usado em ocasiões solenes para impressionar os altos dignitários estrangeiros que visitam França. Mais do que um simples monumento é também, como ele escreve, símbolo e instrumento de poder. Que, todavia, ao longo dos anos foi perdendo para outros locais essa ligação umbilical ao mando, embora o país no seu funcionamento institucional e na sua organização social continue a reter muito de monárquico. A “liturgia real continua a impregnar os ritos republicanos” num país em que “o Estado precedeu a nação”, diz ele, o que não deixará de ser discutível.

E socorrendo-se do extraordinário trabalho de direcção do historiador Pierre Nora, na monumental obra Les Lieux de Mémoire, editado pela Gallimard, entre 1984 e 1992, em três tomos (La République, La Nation, Les France) e que no total soma, creio, mais de meia-dúzia de volumes onde são passados em revista, a partir da topografia, dos monumentos, dos símbolos, a memória histórica e colectiva, que será aquilo que garante a continuidade através dos tempos e estabelece a ligação entre o passado e o presente e nos permite compreender hoje o tempo que vivemos, Sébastien Le Fol resolveu seleccionar um conjunto de lugares onde se inscreve o exercício e a representação da política francesa, a sua geografia subliminar, para fazer um estudo sobre a geografia do poder republicano, sobre os “altos lugares da sacralidade institucional”, levando em consideração, como afirma, a evolução galopante dos costumes, a tirania do imediato, a ausência ou o recuo de uma perspectiva crítica destes novos tempos.

Esse estudo, que também se inspirou na herança de Marc Bloch, outra das referências, realizou-se ao jeito de vinte e um ensaios escritos pelas melhores, digo eu, “plumes familières des arcanes du pouvoir”: historiadores, jornalistas, “antigos conselheiros do príncipe”, espectadores comprometidos que fazendo um trabalho de entomologista foram capazes de manter um olhar crítico, lúcido, e ao mesmo tempo humorístico e irónico sobre a comédia do poder e a ritualização republicana.

Solemn de Royer, do Le Monde, escreve sobre o Eliseu, Emmanuel Hecht sobre o Quay D’Orsay, Tugdual Denis sobre Matignon, Jean Guisnel sobre o subterrâneo Posto de Comando Júpiter, símbolo da independência nacional e onde se encontra o botão vermelho da potência nuclear. O próprio Sebastien Le Fol apresenta um ensaio sobre a tribuna do 14 de Julho, especialmente interessante com o Tour na estrada, a aproximação da segunda volta das eleições legislativas e a próxima celebração da tomada da Bastilha.

Mas também há ensaios sobre a tribuna do Stade de France, em Saint-Denis, de Florence Barraco, sobre o Forte de Brégançon, de onde emergiu a figura bronzeada de Chirac, naquele momento encarnando o corpo físico do poder republicano em calções de banho, e Souzy-la-Briche, ou “Souzy-la-Sécrète”, este último escrito por Laureline Dupont, sobre o refúgio onde entre 1982 e 1995 Miterrand levou a sua vida secreta com Anne Pingeot, a jovem que conheceu quando ela tinha 14 anos, depois seduzida aos 20, e de cuja união nasceu a filha Mazarine, em 1974, apenas reconhecida pelo pai dez anos depois.  

Sobre o avião de onde a França continua a ser governada durante as viagens presidenciais debruça-se Nathalie Schuck.

Outros consagrados mergulham sobre o Louvre (Adrien Goetz), o bairro de Saint-Germain-des-Prés (Marie-Laure Delorme), a Brasserie Lipp (Nicolas d’Estienne d’Orves), que a política também se faz com os estômagos bem aconchegados, os clubes – Le Siècle, Le Jockey e mais alguns –, que no Ancien Régime serviram como laboratórios de ideias revolucionárias, aqui apresentados pela pena do escritor e crítico literário Louis-Henri de La Rochefoucault; ainda sobre a incontornável ENA (Maria-Amélie Lombard-Latune), os meandros de Bruxelas (Luc de Barochez); enfim, sem esquecer o hospital militar de Val-de-Grâce (Élise Karlin), Notre-Dame (Jérome Cordelier), La cour d’honneur des Invalides (Sylvain Fort), as caçadas presidenciais em Ramboilluet e nos milhares de hectares do santuário de Chambord, apesar de todos os ventos que sopram. Afinal, como conclui Bruno de Cessole, porque “les regimes et les présidents passent, les chasses perdurent”, enquanto nos traz à memória o príncipe de Salina n’O Leopardo.

Pela módica quantia de € 22, a editora Perrin e Sébastien Le Fol colocaram cá fora um livro que é uma verdadeira bíblia dos lugares da aristocracia do poder republicano em França.

Um tratado de história contemporânea que desvenda mistérios e segredos das mulheres e dos homens que governaram, e governam, um país e uma nação com os quais Portugal e os portugueses têm profundas ligações, tanto em bons como em maus momentos, para além dos futebolísticos, e que apesar de todas as revoluções, sobressaltos e confusões mais recentes continua a exercer um apelo irresistível sobre quem queira entender os meandros da política, os dias que correm, e não apenas em França, os espíritos que hoje nos governam, e, já agora, subir um pouco acima da linha de água da mediocridade em que estamos atolados, e cultivar-se.

Esta é a minha sugestão de leitura obrigatória para este Verão. Para todos.

Mais, é verdade, para quem ainda se preocupa com a nossa vida pública, com a que está para lá das primeiras páginas dos jornais, dos dramalhões dos penaltis do Euro, das lágrimas do CR7, dos desvarios de Belém e do dr. Nuno, e se interessa pela forma como o poder político é exercido.

Também para aquela petulante magistratura de vão de escada que faz as delícias dos tablóides; a que não aprendeu antes, nem em casa, nem na escola nem na vida, que considera que um político ser convidado para um almoço de trinta guinéus é um forte indício de ser corrupto.

Recomenda-se, em especial, a sua leitura à nossa elite política.

Pelo menos aos que dentro desta saibam ler, tenham um nível de literacia política aceitável para os lugares que ocupam e, já que não está traduzido para português, por agora, que possuam um domínio razoável da língua francesa.

Se for esse o caso, como a mim sempre acontece quando leio alguém ou algo que me enriqueça o espírito e a mente, certamente que aprenderão, já nem digo muitas, algumas coisas. Coisas que um dia, quem sabe, poderão vir a ser úteis para todos nós.

Em português, evidentemente. Que aqui ninguém os quer ouvir a perorar em francês, nem precisa de vê-los a comer um veadinho na Lipp, ou a visitar o Lasserre ou o Laurent. Para isso já nos bastou o dr. Mário. Que percebia dessas coisas.

E também, ultimamente, um certo filósofo de alumínio.

Ah!, e já me esquecia, imperdoável, o sempre patusco e bem-humorado do Isaltino.

Boa leitura.

Novilíngua

Pedro Correia, 28.06.24

apropriação cultural   elefante na sala   pacto de agressão   grande capital   banho de multidão   tecido produtivo   processo de empobrecimento   instrumentos de dominação  minoria étnica  acto eleitoral  novo ciclo  valores de abril  fadiga fiscal  segundo resgate  tratado orçamental   política de direita   capitalismo selvagem   dívida soberana   lucros colossais   défice democrático  responsabilidade orçamental  assento parlamentar  programa cautelar  direitos reprodutivos  alargamento a leste   estado social   fundos europeus   ganhos de produtividade   crescimento zero   valor acrescentado   factor produtivo   alternativa de esquerda   bloco central   processo decisório   interesses dos trabalhadores   economia paralela   emergência financeira   estado da arte   procedimento concursal   arco da governação   novos desafios   parceiros sociais   direitos adquiridos  terceira via  faixa etária  almofada orçamental  crescimento sustentável  paraíso fiscal  indispensável clarificação  socialismo científico  causas fracturantes  heteropatriarcado tóxico   tarefa hercúlea   fonte próxima   novo paradigma   reforma estrutural   zona de conforto  democracia iliberal   janela de oportunidade   murro na mesa   a todos e a todas

A mãe dolorida e o circo mediático

Pedro Correia, 25.06.24

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Sempre considerei que o caso das gémeas convoca o pior do voyeurismo conjugado com o pior da inveja social.

Se alguém merece ser criticado não é seguramente a empresária Daniela Martins, mãe dolorida que tudo fez para proteger duas filhas em risco de vida, aceitando agora comparecer numa sessão de cinco horas em comissão parlamentar de inquérito num país que alguns dizem não ser dela. Mesmo sendo descendente de quatro avós portugueses. Nossa compatriota, portanto.

Esta senhora apedrejada no "tribunal da opinião pública" - o mais injusto dos tribunais - marcou presença no mesmo local onde já pontificou, como líder parlamentar, um antigo deputado acusado de assassinar há década e meia outra portuguesa residente no Brasil, permanecendo este crime impune até hoje.

Isto sim, devia suscitar escândalo nacional. Mas não suscita.

 

Apetece perguntar: enquanto Daniela Martins enfrentava deputados de várias cores ideológicas e respondia com dignidade ao acintoso André Ventura na Assembleia da República, onde estava o pai das gémeas? Sumiu-se, saiu de cena.

Onde estava o amigo "portuga" de São Paulo, filho do Presidente e suposto instigador da cunha hospitalar? Fora de palco, em silêncio completo, pecando por falta de comparência e desrespeito à Casa da Democracia.

De repente os homens eclipsam-se, só resta ela. Criticada até por ter cumprido o dever cívico de atravessar o Atlântico e submeter-se a um interrogatório em que não faltaram parlamentares quase aos gritos.

 

Vi, ouvi, reflecti. E concluo que só ela esteve bem nesta história ainda com vários ângulos por esclarecer.

Sem esquecer as meninas, que não têm culpa de padecerem de uma doença rara e grave. Expostas num circo mediático que as reduz a um rótulo depreciativo ("gémeas luso-brasileiras") pelos mesmos jornalistas que, quando dá jeito, enaltecem as supostas virtudes da "lusofonia" e aludem ao visionário universalismo de Camões. Renegam na prática tudo quanto proclamam com vibração hipócrita, soando a falso do princípio ao fim.

Sobre o naufrágio das elites políticas

Sérgio de Almeida Correia, 24.06.24

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“[À] force d’excès de transparence, de mandats rabotés, de rémunérations plafonnées et de prérogatives réduites, on ne trouvera bientôt en politique que des moines soldats prêts a tout à sacrificier pour le bien public ou des personnalités narcissiques en quête effrénée de pouvoir et reconnaissance.

Le centriste Hervé Marseille, président de l’Union des démocrates et indépendants (UDI) et pillier du Sénat, qui traine ses guêtres en politique depuis quatre décennies, caricature à peine : « Ce n’est plus la politique pour les nuls, c’est la politique par les nuls! »”.

 

Porque o tempo não é elástico e há razões que me ultrapassam, não pude aqui deixar um comentário, pequeno que fosse, ao que aconteceu nas eleições europeias, tanto em matéria de candidaturas como de resultados. Em todo o caso, não me passou despercebida a forma tão pouco razoável como Pedro Nuno Santos e o PS violaram o contrato com o eleitorado que nas legislativas de 10 de Março havia votado no partido, convencido de que Marta Temido, Francisco Assis e Ana Catarina Mendes iriam respeitar e cumprir o mandato para que haviam sido eleitos.

Se a ideia era candidatá-los nas eleições europeias, então para quê fazê-los eleger para a Assembleia da República? Para depois se fazerem substituir por nulidades que ninguém conhece? Como é possível gente séria e decente estar na política e prestar-se a isto?

Bem se pode vociferar contra o populismo e o cavalgar extremista das múltiplas ondas que vêm e vão, que será muito difícil, enquanto as actuais circunstâncias de exercício da política se mantiverem entre nós, conseguir quanto se perceba a razão que alguns têm. E recordo-me aqui de um dos últimos escritos da Ana Sá Lopes, do muito que o Pacheco Pereira, o António Barreto, o Manuel Carvalho e também a Maria João Marques, entre outros, que também têm escrito e analisado o estado de indigência política e cívica em que nos encontramos. De tal modo que já nem o Presidente da República ou a magistratura escapam ao escrutínio dilacerante da opinião popular, não pública, que faz as delícias do jornalismo trash.

 O livro que aqui vos trago – Les Naufrageurs – acabou de sair e faz parte de um conjunto de três que recentemente adquiri. Dos outros falarei a seu tempo. Foi escrito por uma conceituada jornalista e grande repórter do Point – Nathalie Schuck – que se deu ao trabalho de procurar investigar as causas deste estado de deserção cívica em que caiu a classe política francesa, dando a palavra, como ela escreve, aos “premiers acteurs de cette machine qui s’est dangereusement grippée: les responsables politiques”.

E nesse exercício, realizado numa França cada vez mais turbulenta e que vai de novo para eleições dentro de muito pouco tempo, escutou primeiros-ministros, uns mais recentes outros mais antigos, os conselheiros e pesos-pesados dos governos de Chirac, Sarkozy, Hollande e Macron, bem como presidentes de câmara, responsáveis partidários, aspirantes ao Eliseu, altos funcionários, membros do Conselho Constitucional e do Conselho de Estado.

Tem a chancela das Éditions Robert Laffont, custou-me 19 Euros e acabou de chegar às livrarias francesas.

Não perderão nada em lê-lo, creio, independentemente do posicionamento político-ideológico que cada um assuma.

Para avivar algumas memórias

Pedro Correia, 08.06.24

Marcelo Rebelo de Sousa, actual Presidente da República, tinha 26 anos quando foi eleito deputado à Assembleia Constituinte.

Jerónimo de Sousa, que foi secretário-geral do PCP entre 2002 e 2022, tinha 27 anos quando foi eleito deputado à Assembleia Constituinte.

Jaime Gama, que foi presidente da Assembleia da República entre 2005 e 2011, tinha 27 anos quando foi eleito deputado à Assembleia Constituinte.

Helena Roseta, arquitecta e deputada em várias legislaturas da Assembleia da República, tinha 27 anos quando foi eleita deputada à Assembleia Constituinte.

Manuel Gusmão, poeta, ensaísta e professor da Faculdade de Letras, tinha 29 anos quando foi eleito deputado à Assembleia Constituinte.

Vital Moreira, um dos constitucionalistas de referência em Portugal, tinha 29 anos quando foi eleito deputado à Assembleia Constituinte.

Para além da espuma

Paulo Sousa, 07.05.24

Os assuntos da espuma da política não têm faltado. Tudo espremido o que sobra é a confirmação de que vivemos um período de transição política. Enquanto que na governação anterior as reformas não foram feitas por falta de vontade, na actual é a distribuição de forças, as respectivas tácticas e condicionantes, que impedem as mudanças necessárias.

As limitações da democracia são inúmeras e estão, mais uma vez, à vista. As inverdades, a cosmética dos factos, a retórica, fazem parte da coisa. Tal e qual como a sua denúncia, os esclarecimentos, os desmentidos e a contra-argumentação. No final das contas, haverá um momento em que os envolvidos deverão aceitar que prevaleça o interesse público e, recuando, deixem que avance a democracia. Poderá até fazer lembrar o episódio da justiça de Salomão, em que a verdadeira mãe aceita que a impostora fique com a criança, de forma a que esta se salve. Não sabemos se chegaremos a esse ponto, mas o impasse que vivemos não é compatível com uma guerra na Europa e com um mundo tão turbulento e imprevisível.