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Delito de Opinião

Famalicão*

José Meireles Graça, 15.07.22

No Facebook, quando o assunto fervia e a propósito do escândalo do Ministério Público de Famalicão, escrevi o seguinte:

Alguém sabe onde está a promoção do MP sobre o caso da família de Famalicão? Tenho visto várias transcrições de excertos, a começar na Lusa, logo isso deve ser acessível, mas no site, que eu veja, não há textos. A julgar apenas pelas transcrições o MP acha normal o império do Estado ser enfiado pela goela abaixo dos cidadãos recalcitrantes quando calhe estes terem suficiente amor às suas convicções para tentar impedir o sistema de ensino de formatar as cabecinhas dos infantes em escolhas ideológicas que não são neutras. Ou seja, a Constituição declara o Estado laico mas o poder do dia acha que o ensino oficial deve promover a religião boazinha da chamada ideologia de género, por exemplo, entre outras obsessões. As querelas ideológicas resolvem-se, em regime democrático, por escolhas livres, mas a liberdade fica diminuída se se pretende condicionar as crianças a ver o mundo da forma que o vê uma parte dele, que é a dos paizinhos que legitimamente são de esquerda. Eduquem os vossos filhos com as caraminholas em que acreditam, abstenham-se de reivindicar o direito, que a Constituição, a lógica, o senso e a decência não consentem, de educar os filhos de quem não compre as frescuras do tempo. Ontem a Mocidade Portuguesa, hoje acampamentos do Bloco de Esquerda em formato de sala de aula e com notas?

As transcrições a que me refiro estão, por exemplo, aqui. E as primeiras observações que se podem fazer são estas: se a promoção não é pública, então excertos não deveriam andar na imprensa; se andam é porque alguém lá os pôs; quem os pôs só pode ter sido o advogado da família, ou esta, ou o MP, ou funcionários; se o que chega à comunicação social são extractos, deveria o próprio MP ter interesse na divulgação porque os interesses a proteger, se há, com o secretismo, já estão ofendidos, e nada garante que o que os jornalistas entenderam salientar tenha mais relevo do que o que ficou omisso.

O texto acima foi objecto, dentro do meu mural, de comentários aqui e ali azedos e vi-me aflito para evitar zangas. Tenho amigos claramente de direita, outros em cima do muro e outros ainda à esquerda. E nas raras vezes (três a que tenha dado atenção, para ser exacto) em que pessoas entenderam excluir-me por não “aguentarem sarcasmos” ou o meu alegado machismo considerei o facto como uma derrota: as redes são lugares tribais e as pessoas sentem-se confortáveis apenas nas respectivas bolhas mas um mundo alternativo em que toda a gente concordasse comigo seria decerto muitíssimo razoável, e progressivo, e rico, e sensato, e exornado ainda de muitas outras qualidades, mas também, como a ilha de Calipso, prodigiosamente chato.

Um destes amigos (que no diálogo em questão não participou – se o tivesse feito haveria ainda mais troca de tiro de morteiros, por ter notoriedade), que estimo, declara-se como liberal de esquerda, coisa que tecnicamente parece que existe mas nunca pude apurar o que seja. Curiosamente, é, como eu, naturalmente tolerante em relação a pessoas que subscrevam ideias que contrariem as próprias, e escreveu este fim-de-semana, na sua coluna no Expresso, sobre o caso.

Ainda bem. Que assim comento um texto que li integralmente e não um de que conheça apenas partes e que tem contornos de legalês, que é um terreno eriçado de escolhos. Que diz então Luís Aguiar-Conraria? Muitas coisas para concluir que

“A escolaridade obrigatória faz parte do consenso da sociedade, e os pais não têm o direito de impedir que os filhos usufruam desse ensino.”

Começando pelo fim, o raciocínio é capcioso: há efectivamente um consenso social em torno da obrigatoriedade do ensino; mas não há, como este conflito e a polémica em torno dele demonstram, nenhum consenso em torno da ominosa disciplina de Cidadania e é ela, e só ela, que está em causa, e não a obrigatoriedade do ensino de cadeiras do currículo tradicional. A menos que se queira entender que o “consenso social” cobre as manias do pensamento progressista-socialista-modernista que são moeda corrente e provavelmente maioritárias nos assuntos de que trata a disciplina mas de modo nenhum pacíficas.

Esta conclusão é, ademais, tão intelectualmente enviesada como outros raciocínios que a suportam como, por exemplo, quando diz

“Que hoje a direita em peso assuma as dores dos pais de Famalicão, quando impediu a escola de atender a casos particulares, é irónico”.

A observação refere-se à desastrada iniciativa da ministra Maria de Lurdes que, in illo tempore, quis arranjar um expediente para fazer passar de ano os alunos que, por excederem o máximo de faltas, chumbassem automaticamente. O expediente consistia num exame de faz-de-conta e o propósito era diminuir administrativamente o número de “retenções”, vulgo chumbos. A direita, realmente, torceu o nariz. E bem, porque todo o espectro político subscreve a massificação do ensino, mas à parte esquerda, aparentemente, não importa se isso se faz com analfabetos albardados de diplomas. A relação deste incidente pretérito com o problema actual Luís vê-a porque eram “casos concretos” aos quais os professores deveriam ter “flexibilidade” para atender. Eu não vejo relação nenhuma.

A seguir vem um bom argumento: “A possibilidade de uma família muçulmana não querer que a filha adolescente tenha aulas de Educação Física é real. Um dia acontecerá (...) mas conto que com o Estado para impor o direito desta adolescente a ter as aulas todas”.

Também eu porque a Constituição defende a igualdade entre os sexos, que resultaria negada pela excepção. E não é apenas a Constituição, é também o estádio actual do tal consenso social, que no caso se estabeleceu numa sociedade de tradição judaico-cristã, e não numa muçulmana, que não só é alienígena como não se mostra geralmente compatível com um certo número de valores (o da igualdade de direitos entre os sexos é um deles) que consideramos como um adquirido civilizacional.

Sucede que os pais de Famalicão não pretendem ofender nenhum valor social legítimo, mas antes correntes de opinião de modo nenhum pacíficas, que no caso são as de uma parte do eleitorado, que desencantou o expediente de formatar as cabeças das criancinhas nas crenças em engenharias sociais que lhes norteiam as posições políticas, com a esperança de em adultos estarem mais receptivos a adoptarem os disparates e radicalismos, com frequência ridículos, que imaginam fazerem parte de um espécie de teleologia em direcção à sociedade perfeita.

A própria polémica suscitada ilustra isto: se a esquerda, em geral, subscreve o palavreado progressista que enforma parte da disciplina, e alguma direita não, é um abuso usar o poder do Estado para obrigar os filhos da parte que tem reservas a serem educados pelos critérios, em questões de moral e certas de organização social, da que não tem.

Por exemplo: igualdade de género? Esta formulação equívoca (fora da Gramática, onde tem um significado preciso) destina-se a inculcar a ideia de que o sexo é uma construção social e não uma marca distintiva biológica, o que abre a porta a uma quantidade de abusos e tolices que não vou detalhar porque o ponto não é o bem-fundado da teoria – é que quem a defende não tem o direito de a impor, com autoridade professoral, aos filhos de quem encara semelhantes delírios como fazendo parte de modernismos passageiros quando não são masturbações intelectuais de marxistas reciclados que arranjaram um modo de vida nas universidades do mundo anglo-saxónico, de onde vêm estas modas.

O texto vai longo e por isso salto para o ponto em que o autor declara que “A primeira hipótese [chumbos] é demasiado penalizadora para os miúdos, que deveriam ter sido protegidos e não penalizados pelos pais irresponsáveis que lhes calharam”. Irresponsáveis?! Subscrevo integralmente o que dizia há dias  Rui Ramos sobre a forma como estes pais devem ser encarados, e o que no dia seguinte disse Alberto Gonçalves, e lembro que

No tempo do Estado Novo os inimigos activos do regime eram uma minoria, e dentro desta sobressaíam os comunistas, que por o serem pagaram um pesado preço. Gente dos meus lados, mas não tão lúcida quanto eu, costuma lembrar a evidência de o tipo de sociedade que os comunistas reivindicavam ser imensamente mais deletério que a que pretendiam substituir. Pois sim: o facto é que, sem o activismo comunista, acharíamos hoje que o Estado Novo praticamente não teve repressão. Acaso acha o Luís que os filhos de comunistas devem censurar aos pais terem-nos prejudicado pela defesa das suas convicções? Pergunto eu, que sou anticomunista.

Amigas dilectas minhas chamam incansavelmente a atenção para o facto de a miudagem não ligar provavelmente grande coisa à disciplina, diga o que disser o professor que lhes calhar em sorte, e que no tempo delas a Religião e Moral não as pôs nem mais nem menos católicas, nem as condicionou nas suas mundividências, que foram tributárias muito mais do que aprendiam nos recreios e em leituras avulsas e conversas; assim como a disciplina de Organização Política, se queria formar servidores do regime, falhou clamorosamente.

Isto dizem elas, com mais verve. E diz Conraria que a disciplina não deveria existir. Também acho, a menos que fosse facultativa e sem notas.

Ou seja, mesmo quem defende a existência da aberração acha que ela não tem importância, razão pela qual deve permanecer; e quem acha que ela não devia existir entende que o melhor é que exista.

Porquê? Porque o Estado não pode emendar a mão, quem a deve emendar é quem seja vítima de atropelos.

Deve ser o que entendem por cidadania.

 

* Publicado no Observador

As Bandeiras

jpt, 30.06.22

bandeiras.jpg

A propósito do meu postal de ontem sobre os furiosos com a cantora brasileira - essa que agitou bandeira alheia em território pátrio - recebi alguns resmungos, no FB, nos blogs e até em privado. O implícito nestes é que eu vou desatento ao simbolismo da(s) bandeira(s), aos valores que esta(s) encarna(m) - enfim, isto para além de outra coisa que eu desconhecia e que só percebi após ter escrito o postal, a mulher é avessa ao presidente Bolsonaro e para os fascistas (não há outro termo) portugueses isso desmerece-a. Enfim, seja lá como for, isto lembrou-me alguns episódios meus com bandeiras, minudências que servirão para ilustrar como com elas me relaciono. E partilho-os com quem tiver paciência para me aturar.

Há uns anos passeava eu na bela Évora. Ia (muito) enlevado mas ainda assim notei que passava por um edifício militar. E à janela do primeiro andar do quase paço assomou um tropa - entenda-se, alguém pouco graduado. Logo eu, em tom simpático e colaborante, cá de baixo o avisei "ó amigo, desculpe lá, já reparou que a bandeira está toda esgarçada?". Ele sorriu, como se aflito, deu-me uma onomatopeia, grunhiu um obrigado, a senhora que me enlevava olhou-me num franzir do seu belo cenho como quem lamenta "saiu-me um patriota em sortes..." e assim segui todo ufano. Uns tempos depois estava eu na Brasília da Europa e tive de tratar de um assunto na embaixada. Enquanto esperava fui à porta esfumaçar e nisso olhei para cima, em desfastio. E ali estava uma enorme bandeira, já com sinais de alguma veterania. Depois, ao ser recebido pelo (gentil e eficiente) funcionário, avancei da pertinência em mudarem a bandeira, simpática contribuição cidadã acolhida com alguma atrapalhação, naquele "vou transmitir" de alguém já exausto por ter de aturar tantas reclamações destes chatos, nós-todos.

Mas isso são pequenos detalhes. Pois do que mais me lembro é da minha irritação ao vir a Portugal após o Euro-04. O Sargentão Scolari havia transformado o país numa "moldura humana", os campinos haviam escoltado a cavalo a selecção "de todos nós" e toda a gente afixara a bandeira em tudo o que era sítio. Passados meses ainda a carregavam, feita colecção de trapos imundos, devastados pela mansidão dos elementos, nas marquises, nas (agora inexistentes) antenas de autocarros e táxis, nos balcões das tabernas, nas janelas dos carros, sei lá onde mais. E, para cúmulo da imbecilidade patrioteira, uns anos depois, e a propósito de uma outra competição internacional da bola, o jornal "Expresso" distribuiu uma bandeira nacional com o nome de um banco (e que banco!!!) impresso. Ou seja, a rapaziada - entenda-se, os doutores do Facebook - não toma conta da bandeira, a nacional. Não aprendeu a manuseá-la, não a cuida, trata-a como toalha de bidé ou poster de rock. E depois, muito de vez em quando, abespinha-se...

E não é só com os tratos de polé que a nossa sofre, mas também nas formas como outras nos são impingidas. Há uns anos fui jantar a um restaurante italiano, ali às Janelas Verdes, uma casa térrea. Francamente nunca percebi qual a razão do sucesso da comida italiana num país com a nossa gastronomia. Mas, enfim, ia em grupo e outrem tinha proposto o destino. À chegada, esperando à porta pelos convivas, notei que ali estava a bandeira italiana hasteada, num mastro colocado no telhado...! Ainda resmunguei, num "vamos comer noutro sítio" proposta cuja recusa foi acompanhada por muda convicção de estar eu maluco. Pois para todos é normal que uns sacaninhas hasteiem a bandeira pátria na baiúca onde servem pizza e massa em pleno centro de Lisboa. E não só os clientes acorrem a tal despautério como ninguém os repreende, multa ou - como deveria ser - lapida. Mas, claro, depois de arrotarem o pimentão e os maus enchidos abespinham-se com uma outra qualquer bandeira alheia, se agitada por mão-própria.

Finalmente, e para terminar este excurso sobre a minha afectividade pelas bandeiras: há umas décadas estava eu em Cabo Delgado. Fui passar um fim-de-semana a Pemba. Já na alvorada de sábado, num pequeno bar da Feira, um compatriota, em casa de quem eu estava aboletado, zangou-se comigo por razões que ele terá imaginado passionais mas que apenas provinham da sua intoxicação etílica. E decidiu bater-me, o sacana. "À traição", como se dizia na minha juventude: meteu-me os dedos nos olhos, atordoado fiquei, deu-me dois ou três socos de rajada, tudo isso antes de eu ter capacidade de lhe dizer "tem lá juízo!". Face a esta convocatória ficou ele num entroncamento. E nesse mudou de rumo, passando a partir a mobília do bar, mesas e cadeiras de madeira, diante da total estupefacção de donos, empregados e clientes. Após alguns estragos cometidos - que lhe custaram uns centos de dólares pagos umas horas depois, justiça lhe seja feita -, avançou para a decoração, que consistia numa colecção de bandeiras nacionais, tão típica em lugares de convívio de expatriados, como ali era (também) o caso. Mas então, ao perceber-lhe o intuito, gritei-lhe "ó pá, as bandeiras não!!... as bandeiras não!!!". Então ele, o compatriota, estancou. Olhou para mim. E chorou. Pois tudo, muito mais do que aquilo, não lhe estava a correr bem, como era óbvio. De seguida alguém o levou a casa. E eu fui dormir para o hotel, raisparta, que não sendo caro era bem puxado para a minha parca bolsa. Passadas algumas, poucas, horas lá fui comer o matabicho ao Viking, com menos mesas e cadeiras. Mas com as bandeiras nas paredes.

(Companheiro, se algum dia leres isto, repara que vai o texto acompanhado de um enorme abraço saudoso).

De longe, muito longe

Sérgio de Almeida Correia, 10.06.21