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Delito de Opinião

Sessenta anos sem Daniel Filipe

Nascido em Cabo Verde (1.2.1925) e falecido em Lisboa (6.4.1964)

Pedro Correia, 06.04.24

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(fragmento)

Neste ano de 1962
não como Hazim Hikmet no avião de pedra
mas na minha cidade
livre de ir onde quiser
e no entanto prisioneiro
neste ano de 1962
exactamente
em Lisboa
Avenida de Roma número noventa e três
às três horas da tarde

 

Neste ano de 1962
encostado a uma esquina da estação do Rossio
esperando talvez a carta que não chega
um amor adolescente
meu Paris tão distante
minha África inútil
aqui mesmo
aqui de mãos nos bolsos e o coração cheio de amargura
cumprindo os pequenos ritos quotidianos
cigarro após o almoço
café com pouco açúcar
má-língua e literatura

 

Aqui mesmo a não sei quantos graus de latitude
e de enjoo crescente
solitário e agreste
invisível aos olhos dos que amo
ignorado por ti pequeno empregado de escritório preocupado
com um erro de contas
incapaz de dizer toda a minha ternura
operária de fábrica com três filhos famintos

 

Aqui mesmo envolto na placidez burguesa
higienicamente limpo e com os papéis em ordem
vestido de nylon dralon leacril
com acabamentos sanitized
e lugar marcado junto ao aparelho de TV
eu
enjoado de tudo e contemporizando com tudo
eu
peça oleada do mecanismo de trituração
eu
incapaz de suicídio descerrando um sorriso-gelosia
eu
apesar de tudo vivo apesar de tudo inquieto
eu
neste ano de 1962
exactamente
não ontem mas precisamente às três horas da tarde
pela hora oficial
exilado na pátria

 

Do livro Pátria, Lugar de Exílio (1963)

No centenário de Sena

Pedro Correia, 07.11.19

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(Novembro de 1919 - Junho de 1978)

 

DESTA VERGONHA DE EXISTIR OUVINDO

 

Desta vergonha de existir ouvindo,

amordaçado, as vãs palavras belas,

por repetidas quanto mais traindo

tornadas vácuas da beleza delas;

 

desta vergonha de viver mentindo

só porque escuto o que dizeis com elas;

desta vergonha de assistir medindo

por elas as injúrias por trás delas

 

ao mesmo sangue com que foram feitas,

ao suor e ao sémen por que são eleitas

e à simples morte de chegar-se ao fim;

 

desta vergonha inominável grito

a própria vida com que às coisas fito:

Calai-vos, ímpios, que jurais por mim!

 

Jorge de Sena (As Evidências, 1955)

Ontem voltei a ver o meu poeta preferido

Marta Spínola, 10.06.18

Foi a segunda vez que vi Chico Buarque ao vivo. Doze anos separaram uma vez de outra, mas ambas valeram cada segundo. 

Gosto de Chico Buarque há muitos anos, na família materna sempre se ouviu MPB, posso dizer que cresci a ouvir génios como Jobim, Vinicius, Toquinho, Chico ou Caetano, para mencionar apenas alguns. Das vozes às letras há uma serenidade, e uma quase ingenuidade, que sempre me comoveu. Sempre me foram passados como temas engraçados, simpáticos, numa língua que nos era muito (literalmente) familiar. 

Tenho pena que não cante alguns dos êxitos mais antigos, os que me levam à infância, aos discos em capas de papelão, tenho pena que a versão de "Partido Alto" partilhada com Caetano Veloso nunca se ouça, mas é uma pena egoísta. Ouvir Chico vale sempre a pena. 

A minha relação com as letras de Chico Buarque é um caso de amor. Os sambas, os desamores, as felicidades ao luar, os boleros, os amantes, os fait divers cantados numa voz grave e tão calma (na voz tranquila só Jobim o bate), são talvez o happy place em que nunca penso quando alguém fala nisso. Quis guardar a sua voz na memória mais uma vez, o que, mesmo sabendo as letras, me fez ficar em silêncio só para o ouvir cantar. 

É seguro dizer: "Foi bonita a festa, pá, fiquei contente."

Um poeta com os pés na terra

Sérgio de Almeida Correia, 22.04.16

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Dos melões costuma-se dizer que só se sabe se são bons depois de abertos. De um cidadão, de um funcionário, de um servidor do Estado conhecem-se as suas atitudes, os seus comportamentos públicos, o mérito ou demérito das suas acções. Da escrita de um poeta é, por vezes, possível conhecer a sua intimidade, o seu modo de pensar, nem sempre a sua circunstância. Mas de um ministro só será possível analisar a sua acção no fim, embora se possa sempre dizer que não raro na política há males que vêm por bem. Em todo o caso, não posso deixar de pensar que a chamada de Luís Filipe Castro Mendes ao Ministério da Cultura me parece uma decisão sensata e acertada. A entrevista que deu à RTP revela antes de mais a ponderação e a serenidade do escolhido, uma abertura de espírito e uma predisposição para o exercício do cargo pouco habituais na nossa vida pública. E ideias.

Um discurso directo, claro, frontal, eminentemente livre e bem articulado, revelador de uma capacidade de análise e de abertura para a aprendizagem indispensáveis a um bom exercício do cargo. Longe dos excessos verbais, do umbiguismo, da má educação e indisfarçável pesporrência de que padeciam alguns dos seus antecessores, capaz de olhar o seu interlocutor nos olhos sem fugir às questões, Castro Mendes apresenta-se à partida como o homem certo para o lugar no momento adequado.

Sem pressas, genuíno, consciente da sua missão, caloroso q.b., a sua primeira entrevista serviu, para já, para nos apresentar o homem. E elevar a fasquia. Muito. Oxalá tenha sorte, e que não nos desiluda, porque quanto ao resto não me parece que lhe falte alguma coisa para o exercício do cargo.

Ninguém lhe pede que transforme um país de versejadores natos e humoristas de vão de escada numa terra onde os Camões, os Pessoa, os Cardoso Pires ou os Lobo Antunes se reproduzam aos pontapés. Ou que dê novos fados ao nosso Fado. Nem mesmo que ensine regras básicas de civilidade e princípios de cidadania aos muitos que ainda os não têm. Mas apesar de tudo, e sem que eu saiba qual a atitude que adoptará em relação ao novo Acordo Ortográfico de 1990, é reconfortante pensar – e este é um bom princípio –, que na Cultura está um homem de cultura. Um homem civilizado. Um poeta com os pés na terra.

Bocage

Patrícia Reis, 15.09.15

José Maria Barbosa du Bocage nasceu há 250 anos, em Setúbal, a 15 de Setembro de 1765. Viajou muito, fez tremer corações. O seu pai foi mandado prender por Pomba, mais tarde Bocage foi preso por Pina Manique. a acusação era quase a mesma, a desordem, o atentado aos costumes. Extraordinário, com aventuras dignas de qualquer romance do século XVIII, Bocage é hoje recordado na terra que o viu nascer e pouco mais. Sobre ele, escreveu, no seu jeito, Ary dos Santos:

Fazes falta ao Rossio. Falta ao Nicola.

Lisboa é uma sarjeta. É um vazio.

E é raro o poeta que entre nós faz escola.

Mastigam ruminando o desafio.

São uns merdosos que nos pedem esmola.

Aos vinte anos cheiram a bafio

têm joanetes culturais na tola.

Que diria Camões nosso padrinho

ou o Primo Fernando que acarinho

como Pessoa viva à cabeceira?

O que me vale é que não estou sozinho

ainda se encontram alguns pés de linho

crescendo não sei como na estrume
!

 

Estou certa de que o poeta teria agradecido com uma vénia, teria rido e quem sabe? nasceria uma bela amizade, se o tempo não os tivesse separado. Deixo-vos - roubado indecentemente ao mural do FB de uma grande amiga, Helena Vasconcelos - uma fábula do aniversariante, na esperança de que o recordem, na esperança de que mais se escreva sobre a sua vida e obra.

 


O Leão e o Porco
O rei dos animais, o rugidor leão,
Com o porco engraçou, não sei por que razão.
Quis empregá-lo bem para tirar-lhe a sorna
(A quem torpe nasceu nenhum enfeite adorna):
Deu-lhe alta dignidade, e rendas competentes,
Poder de despachar os brutos pretendentes,
De reprimir os maus, fazer aos bons justiça,
E assim cuidou vencer-lhe a natural preguiça;
Mas em vão, porque o porco é bom só para assar,
E a sua ocupação dormir, comer, fossar.
Notando-lhe a ignorância, o desmazelo, a incúria,
Soltavam contra ele injúria sobre injúria
Os outros animais, dizendo-lhe com ira:
«Ora o que o berço dá, somente a cova o tira!»
E ele, apenas grunhindo a vilipêndios tais,
Ficava muito enxuto. Atenção nisto, ó pais!
Dos filhos para o génio olhai com madureza;
Não há poder algum que mude a natureza:
Um porco há-de ser porco, inda que o rei dos bichos
O faça cortesão pelos seus vãos caprichos.

Bocage, in 'Fábulas'

Vasco Graça Moura

Patrícia Reis, 27.04.14

As meninas
as minhas filhas nadam. a mais nova
leva nos braços bóias pequeninas,
a outra dá um salto e põe à prova
o corpo esguio, as longas pernas finas:

entre risadas como serpentinas,
vai como a formosinha numa trova,
salta a pés juntos, dedos nas narinas,
e emerge ao sol que o seu cabelo escova.

a água tem a pele azul-turquesa
e brilhos e salpicos, e mergulham
feitas pura alegria incandescente.

e ficam, de ternura e de surpresa,
nas toalhas de cor em que se embrulham,
ninfinhas sobre a relva, de repente.

 in "Antologia dos Sessenta Anos"

Os poetas.

Gui Abreu de Lima, 04.08.13


Os poetas. Fogem da dor como o diabo da cruz e a dor que sentem é quando a ilusão fracassa, porque do caminho fez atalho. É essa a dor que o poeta sente, a pena própria que resolve à pena, à Língua, criando mais e mais ilusões, por entre queixumes ocres e violentas.

Ítacas

Ana Vidal, 29.04.13

A cada um a sua Ítaca. A de Kavafis, que nos fala de todas elas com admirável sabedoria, é um poema belíssimo.

 

O grego Konstantinos Petrou Kavafis (Κωνσταντίνος Π. Καβάφης) nasceu e morreu em Alexandria no mesmo dia 29 de Abril (1863 –1933). Foi jornalista e funcionário público. Publicou apenas 154 poemas, mas não precisa de mais obra para que o seu nome fique gravado para sempre na história da poesia. Um clássico impõe-se pela qualidade, não pela quantidade. 

 

 

O caminho para Ítaca


Se partires um dia rumo a Ítaca
Faz votos de que o caminho seja longo
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem lestrigões, nem ciclopes,
nem o colérico Posídon te intimidem!
No teu caminho jamais os encontrarás
Se altivo for teu pensamento
Se subtil emoção o teu corpo e o teu espírito tocar
Nem lestrigões, nem ciclopes
Nem o bravio Posídon hás-de ver
Se tu mesmo não os levares dentro da alma
Se tua alma não os puser dentro de ti.

Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
Nas quais com que prazer, com que alegria
Tu hás-de entrar pela primeira vez um porto
Para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir.
Madrepérolas, corais, âmbares, ébanos
E perfumes sensuais de toda espécie
Quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egipto peregrinas
Para aprender, para aprender dos doutos.

Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas, não apresses a viagem nunca.
Melhor será muitos anos levares de jornada
E fundeares na ilha velho enfim.
Rico de quanto ganhaste no caminho
Sem esperar riquezas que Ítaca te desse.

Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te punhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu.

Se a achas pobre

Tu te tornaste sábio, um homem de experiência.
E, agora, sabes o que significam Ítacas.

(Tradução de José Paulo Paes)

Foi em Setembro de 1911. Trazias na boca promessas de sonho.

Gui Abreu de Lima, 10.04.13

 

"(...) Guerra Junqueiro, que vem óptimo da Suíça:

(...) As constituintes não foram o que eu sonhava mas fizeram muitíssimo. E a propósito devo dizer-lhe que um jornal de Berna, que o secretário da legação portuguesa me enviou, publica a tradução dos primeiros trinta e dois artigos da Constituição portuguesa, encimados por esta honrosa declaração: "A Constituição portuguesa devia ser o código político de todas as nações da Europa." Em seguida coteja-a com vários artigos da Constituição suíça, achando alguns da portuguesa superiores. (...)"

 

Raul Brandão, Memórias

Volume I, Tomo II

Relógio d'Água

Dois poetas para lembrar sempre

Pedro Correia, 12.12.10

 
Dois poetas. Dois espíritos superiores que andam escandalosamente esquecidos. Morreram há 32 anos, com um intervalo de poucas semanas: Jorge de Sena (1919-78) e Ruy Belo (1933-78). Inconformistas, ambos exilados – um no exterior, outro no interior. Sem grupos ou capelinhas, habituados a arremeter contra ventos e marés. E acima de tudo dois excelentes poetas – do melhor que tivemos, não apenas no século XX mas em toda a história da literatura portuguesa.
Partiram ambos demasiado cedo, ainda com muitos livros por escrever. Primeiro Sena, um dos mais corajosos resistentes à ditadura salazarista, com a qual não transigiu em circunstância alguma – ele que era um adversário acérrimo de toda a espécie de ditadura. Exilado no Brasil, por decisão própria, viria igualmente a abandonar este país quando a ditadura militar se instalou em Brasília, acabando por fixar-se em Santa Barbara, Califórnia, onde ainda hoje residem a sua viúva, Mécia de Sena, e vários dos seus nove filhos.
 
Jorge de Sena distinguiu-se como tradutor (de Malraux e Hemingway, por exemplo), crítico literário, antologiador, ficcionista e dramaturgo. Mas sobretudo como admirável poeta – uma das mais originais vozes portuguesas das últimas décadas. Dele é, por exemplo, este fabuloso Camões dirige-se aos seus contemporâneos: “Podereis roubar-me tudo: / as ideias, as palavras, as imagens, / e também as metáforas, os temas, os motivos, / os símbolos, e a primazia / nas dores sofridas de uma língua nova, / no entendimento de outros, na coragem / de combater, julgar, de penetrar / em recessos de amor para que sois castrados. / E podereis depois não me citar, / suprimir-me, ignorar-me, aclamar até / outros ladrões mais felizes. / Não importa nada: que o castigo / será terrível. Não só quando / vossos netos não souberem já quem sois / terão de me saber melhor ainda / do que fingis que não sabeis, / como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais, / reverterá para o meu nome. E mesmo será meu, / tido por meu, contado como meu, / até mesmo aquele pouco e miserável / que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito. / Nada tereis, mas nada: nem os ossos, / que um vosso esqueleto há-de ser buscado, / para passar por meu. E para outros ladrões, / iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.” Ou a célebre Carta a meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya: “Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes / aquele instante que não viveram, aquele objecto / que não fruíram, aquele gesto / de amor, que fariam ‘amanhã’. / E, por isso, o mesmo mundo que criemos / nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa / que não é nossa, que nos é cedida / para a guardarmos respeitosamente / em memória do sangue que nos corre nas veias, / da nossa carne que foi outra, do amor que / outros não amaram porque lho roubaram.”

 

Ruy Belo foi igualmente um dos mais singulares nomes da poesia portuguesa. Ribatejano de Rio Maior, celebrou em verso o campo e a cidade, o seu tempo e todos os tempos, o passado e o futuro, o corpo e a alma, o rincão natal e o universo sem fronteiras. Profundamente cristão, tal como Sena, mas descrente das várias igrejas, sem jamais deixar de confiar no Homem. É também o poeta da luz solar – em permanente rebelião contra o tempo crepuscular em que viveu. E foi afinal num Verão bem quente que o seu coração desistiu de bater, quando ainda havia tanto a esperar do seu talento.
Ruy Belo tem inúmeros poemas de uma qualidade ímpar – quase todos os de Homem de Palavra(s), por exemplo. Mas o de que mais gosto é do longo poema A Margem da Alegria, dedicado aos amores de Pedro e Inês – o mais belo e trágico romance de sempre em Portugal: “O mistério dos mares tenebrosos tem ali silêncios rasos / navegantes de pé entre o dossel do céu e a cama da maré / jazem serenos hoje nessa lousa onde o tempo apenas pousa / e só com a minha lâmina de aço língua de toledo os ameaço / no túmulo deitada inês parece a própria placidez / ela que em vida ouvindo alguém chamar / julgava respirar esse cheiro envolvente português / dos laranjais e jamais a nave donde nunca mais / havia de sair não já para criança inaugurar / o dia a dia o vasto espaço onde cada folha / dos plátanos e até canas e oliveiras / valem humildemente mais do que a melhor palavra minha.”
 
Dois grandes autores desaparecidos há três décadas. Façamos tudo para que a obra de ambos não sucumba à pior das mortes literárias: a do esquecimento premeditado. Fartos de figuras menores andamos todos nós.