A mais recente decisão do Tribunal Constitucional (TC) de declarar inconstitucionais mais três normas produzidas pelo Governo, desta vez relativas ao OE de 2014, independentemente das questões de natureza jurídica que possa suscitar, volta a chamar a atenção para um ponto que é decisivo para a compreensão da actual crise. Este ponto não se reveste de natureza jurídica, mas antes política, e é em seu torno que gira toda a disputa entre os partidos da maioria e da oposição.
Os compromissos assumidos pelo Estado português perante a troika, e em relação aos quais, de repente, todos rejeitam a paternidade – o anterior primeiro-ministro porque se queixa de ter sido empurrado para a situação pelo PEC IV; o actual Governo e seus mentores, maxime Eduardo Catroga, que se ufanavam do memorando ser um excelente documento depois das respectivas achegas e das que subsequentemente lhe foram introduzindo sem consultarem os demais partidos da oposição e indiferentes às respectivas consequências políticas, económica e sociais –, eram de há muito conhecidos.
A democracia e o Estado constitucional de direito assentam num conjunto de regras que são o garante da sua legitimidade aos olhos dos seus destinatários, bem como da comunidade internacional que não desconhece os respectivos fundamentos, acolhe-os e respeita-os.
Discutir se essas regras são boas ou se são más não é um tabu. Como também não é nem pode ser tabu a discussão da bondade das decisões judiciais, embora existam momentos e locais mais adequados para os líderes políticos o fazerem sem ser no primeiro microfone que lhes coloquem à frente, em almoços com empresários ou em declarações demagógicas aos jornais ou formuladas em programas televisivos do tipo “Prós e Contras”, enquanto procuram ganhar tempo.
Recordo que o TC e as regras que delimitam a sua actuação foram aprovadas pelos órgãos do Estado com legitimidade constitucional, política e jurídica para o fazerem, que todos os órgãos do Estado devem respeito e obediência às suas decisões e que Presidente da República e Governo juraram defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição.
Estas breves linhas vêm a propósito de uma declaração do ministro Pires de Lima, que à semelhança dos seus parceiros, e na linha daquela que tem sido a actuação do primeiro-ministro, numa atitude que tem tanto de má-fé política quanto de teimosia adolescente mesclada por uma profunda ignorância e falta de sensibilidade para as questões de natureza jurídica, matéria em que o senhor Ulrich se tem mostrado catedrático, insiste em colocar no TC, órgão que não obstante todo o esforço que os partidos fizeram para o controlarem tem sabido, graças à inteligência, competência e sensatez de todos aqueles que por lá têm passado, de se elevar acima das querelas de lana-caprina que infestam a nossa vida política, e tem sabido respeitar o seu estatuto e papel equilibrado no nosso sistema de poderes.
A frase de Pires de Lima, proferida numa conferência sobre "Internacionalização da Economia", promovida pela AICEP, e que a seguir transcrevo, contém no essencial a razão para os sucessivos chumbos de normas do Governo por parte do TC, para os problemas de que o próprio Governo se queixa e para uma actuação que, como se viu pela última decisão, introduziu mais um factor de desvirtuamento das regras: “Espero francamente que todo este trabalho notável que empresas, empresários, gestores e trabalhadores estão a fazer para recuperar Portugal não venha a ser posto em causa por uma interpretação constitucional tão rígida que remeta o esforço de consolidação orçamental, que ainda temos que fazer nos próximos anos, para uma via fiscal”.
Na perspectiva do ministro, o que coloca em causa o esforço de consolidação orçamental é uma interpretação, no seu entender, demasiado rígida do texto constitucional.
Penso que não valerá a pena recordar os compromissos políticos assumidos por este Governo e o seu primeiro-ministro perante o eleitorado, nem os desvios que voluntariamente introduziram no percurso que encetaram, convencidos de que uma outra receita não sufragada eleitoralmente seria melhor. Quer Passos Coelho quer os partidos da coligação sabiam que tinham de contar com uma governação dentro dos limites constitucionais para cumprirem o memorando. Porque governar fora desses limites, ou ignorando-os, não é próprio das democracias civilizadas nem de políticos sérios que pretendem governar em democracia. E se sabiam que não podiam fazê-lo sem alteração das regras constitucionais deviam logo tê-lo dito em vez de andarem a enganar os eleitores.
Até agora não houve, e isso prova-se pelas votações e o sentido de voto dos senhores juízes que compõem o TC, uma interpretação rígida do texto constitucional. Bem pelo contrário, como ainda agora se viu, o TC até se permitiu “dar uma no cravo e outra na ferradura”, admitindo que condições excepcionais justificavam a não retroactividade da decisão em relação a algumas quantias já arrecadadas. Este passo, aliás, que salvo erro já tem antecedente, leva-me mesmo a pensar se o facto do PR se escudar na fiscalização sucessiva de normas que suscitam fundadas dúvidas de constitucionalidade, para não impedir a entrada em vigor do OE, sabendo que a decisão virá passados alguns meses, não constituirá um desvirtuamento ao exercício dos poderes que lhe foram conferidos e uma estratégia de protecção ao Governo, colocando o TC numa posição incómoda caso ele próprio PR optasse, aí sim, por uma interpretação rígida do texto constitucional e exercesse os respectivos poderes.
Ao contrário do que Pires de Lima sugere, o problema não está numa interpretação rígida da Constituição. O problema vem de há décadas e residiu desde sempre na forma displicente como sempre se encarou o cumprimento da lei, no modo como se flexibiliza o rigor jurídico, político e, antes disso, ético, às conveniências e oportunismos do momento. E não só na vida política mas também judiciária e na actuação de alguns órgãos da Administração Pública, designadamente em matéria fiscal.
A situação a que o País chegou não é o resultado de interpretações rigorosas da lei, de uma actuação cega da justiça, mas o produto de um excesso de laxismo por parte dos actores do regime, de falta de empenho numa aplicação rigorosa dos princípios e de um abuso sistemático na obtenção de consensos pouco sérios entre as principais forças políticas, os lobbies empresariais e as corporações, relativamente a matérias sobre as quais o único consenso possível seria sobre uma vinculação aos princípios e uma aplicação rigorosa e oportuna da lei. A todos os níveis.
Por termos sido tão displicentes na interiorização ética da política, dos seus princípios e do sentido último da lei é que agora estamos confrontados com uma situação em que o Governo e a AR passam pela vergonha de fazerem a triste figura de, não tendo sequer legitimidade para tal, quererem suscitar junto do TC pedidos de aclaração de matérias cristalinas e que nada têm a aclarar, ponto sobre o qual, com o conhecimento e a autoridade que lhes é reconhecida, quer Luís Menezes Leitão, quer o Juiz-Desembargador Eurico Reis, já explicaram de forma clara e isenta que se trata de uma impossibilidade legal criada pela própria ministra da Justiça do actual Governo.
Bastaria ter tido um pouco de cuidado na forma como as coisas não deviam ter sido feitas, para não se estar perante mais um problema de difícil resolução, cujos custos serão de novo suportados por todos. Vir agora dizer que os portugueses não suportam mais impostos e queixas manifestamente infundamentadas de interpretações rígidas da lei fundamental, uma vez mais, surgem como desculpa de quem pouco se preocupou em cumprir com a sua palavra, postergada em prol de uma agenda que só eles conheciam e que iam preenchendo à medida que os problemas surgiam.
O preconceito, a "chico-espertice", a teimosia adolescente, e, em especial, a cegueira ética, jurídica e ideológica nunca poderiam dar bons resultados. A democracia volta a demonstrá-lo.