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Delito de Opinião

Petiscos inesquecíveis

Maria Dulce Fernandes, 16.07.24

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No início dos anos 80, os meus pais alugavam uma casa na Costa da Caparica durante os meses de Julho, Agosto e Setembro e levavam toda a criançada de familiares e amigos para a praia. O meu pai ficava por lá durante o seu mês de férias e viajava para Lisboa com retorno à Costa, durante os outros dois meses. Eu passava lá os dias da folga e a minha quinzena de férias em época alta. Alturas havia em que a casa parecia quase uma colónia de férias em época balnear, tal era o número de crianças a entrar e a sair.

Todos os fins de semana, os pais dos garotos e outros amigos apareciam para a sardinhada da praxe ou para a caldeirada.

A minha mãe tinha um tacho enorme (que ainda guardo religiosamente) e ia cedo ter com os pescadores à lota. De lá trazia a alcofa cheia: tamboril com grandes fígados, safio de posta aberta, raia, sardinha e corvina. Azeite, batatas, cebolas, dentes de alho, tomates, pimentos, louro, salsa, hortelã, vinho branco, sal e especiarias compunham o ramalhete da caldeirada, tudo bem acamado com o peixe… Uma maravilha.

 E porque eram muitos os comensais dos fins de semana, a caldeirada era farta.

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De tão farta, sobrava sempre e é aqui que chegamos ao meu petisco favorito, a sopa de peixe da sobra. Àquele molho rico em sabor, depois de prensado e coado juntava-se o peixe limpo de pele e espinhas e massa de cotovelinhos miúdos, mais hortelã e pão torrado aos cubos. Era tão boa a sopa de peixe na Costa da Caparica! Só de falar nela, parece que a consigo  saborear e sentir os aromas da sopa, do mar e das tardes de Verão.

Cheiros e sabores reavivam frequentemente as minhas memórias mais felizes, de tempos em que a comida tinha mesmo sabor e comer fazia bem à saúde. E tenho saudades das grandes comezainas semanais, daqueles passeios que terminavam em piquenique se o tempo estivesse bom. Reproduzir a sopa de peixe é fácil. O difícil é saboreá-la porque não sabe igual. Falta-lhe os bons ingredientes de outrora e principalmente a componente humana, que tornava tudo apetitosamente inesquecível.

Petiscos inesquecíveis

Maria Dulce Fernandes, 23.06.24

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Há muitos muitos anos, já tinha eu deixado de ser uma criança, era casada, trabalhava e tinha uma criança minha, devia rondar os meus 24 anos (o que contradiz a minha frase inicial, já que nos dias que correm, ter 24 anos é considerado ser ainda uma criança), quando chegou mais um 26 de Setembro, que tinha a particularidade  de ser o dia em que a Joceline e o Lars celebravam os seus aniversários e de ser também o dia em que mudava a hora para a hora de Inverno.

Neste dia, todos os anos, havia sempre festa no quintal da casa de Caxias, onde a Line, o Dietmar, o Lars, a Katryn e o Markus moravam.

Este ano o tema era o Hawaii e foi rir do início ao fim, pelas muitas plantas e colares de flores, piscinas de plástico cheias de água, boias de todas as cores, cocos, barris de cerveja à pressão, bebidas malucas com gomos de frutas e chapelinhos de papel, muitas sangrias de muitas cores e travessas cheias com saladas várias e frutas malucas das quais nunca tinha ouvido falar, mas o Dietmar sim, e, mais estranho ainda, sabia precisamente onde as encontrar.

Tínhamos então uma espécie de Luau e, surpresa das surpresas, o prato principal era porco assado num forno feito no chão com umas grades de ferro, carvão e madeiros que, ao que parece o Dietmar preparou a semana inteira. Fez o seu hocus pocus com tempero não revelado, deixou ficar tudo em brasa e colocou em cima da grade o porco embrulhado em grandes folhas de papel de alumínio. Depois pôs-lhe em cima uma chapa furada, mais brasas, outra chapa e tapou com terra. Segundo reza a “Lenda do Leitão" (que o não era, por ser um grande porco) ou "Porco no Buraco", como o Dietmar dizia, o preparado começou às 8 horas da manhã, para estar bom para o jantar, coisa que também me custa a acreditar, porque esta malta nunca se levantava antes das 10, 11 horas e faziam então a primeira refeição à qual chamavam brunch. A primeira vez que ouvi o anglicismo e o seu significado foi com estes meus primos, no Algarve, anos antes.

A saída do porco do buraco do chão foi incrível. Já com local próprio para depositar o bicho, sacaram-no quatro homens, cada qual com uma pá, dois de cada lado. Procedeu-se à remoção da folha de alumínio e aí é que foi. O cheirinho era divino demais para aquela proveniência de pata fendida. Com a grande tesoura de podar, retalhou-se o animal, que estava tão tenro e tão saboroso que não há palavras para o descrever. Depois de provar um bom naco, aproveitei o que poucos queriam por “fazer mal”, a pele, que, estaladiça e sumarenta, era pura ambrósia e foi a melhor que comi até hoje.

Não faço ideia da quantidade de calorias ou decilitros de colesterol que ingeri naquela noite, mas com 24 anos não se pensava muito nessas coisas. E depois havia as saladas, as frutas e as bebidas para diluir os excessos, e eu, menos pacífica e mais caribeña de nenhum costado, devo ter bebido uns litros de Cuba Libre. 

Hoje, tenho aqui um pastelinho de bacalhau, uma salada de alface iceberg com tomates cereja e duas gelatinas, tudo acompanhado por uma garrafa de água reserva del cano... vai ter de servir.

Petiscos inesquecíveis

Papas de sarrabulho dos Rodeios

Maria Dulce Fernandes, 18.06.24

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Como já aqui contei há algum tempo, era costume o meu pai e a "família" comprarem um porco e pagarem o sustento,  Tio Daniel e a Tia  Maria Adelaide alimentavam-no e tratavam do bácoro até ter o tamanho ideal e quando chegava a altura da matança, ia o grupo inteiro em romagem para Rodeios, uma pequena aldeia de xisto que fica ali para as bandas das Portas de Ródão. 

Nunca vi matar um porco e fugia para não lhe ouvir o aflitivo grunhir. Quando o silêncio e a coragem das minhas pernas bambas me permitiam regressar, já a panela de água a ferver tinha recolhido o sangue, que, coagulado pela fervura, apresentava uma cor escura castanho-encarniçada e uma textura sólida e sarrabulhenta. Esse sangue ainda quente era partido e distribuído pelos presentes, que comungavam daquele ritual de saúde e fartura, comendo  o pouco que lhes calhava acompanhado de vinho novo, sendo o resto preparado pela Tia Maria Adelaide, com entremeada fresca e outras carnes do aviário, enchidos, farinha de milho e os temperos da cozinheira, nos quais ela incluia limão que me pedia para ir buscar à loja, ao fundo da escada das traseiras. Ficava assim uma espécie de sopa grossa e grumosa, mas tão boa! Comia-se à colher e, se acompanhada com pão beirão caseiro, ficava saborosa como uma espécie de foie gras dos pobres. 

Voltei a comer em Braga, em Barcelos, em Ponte da Barca, em Ponte de Lima, em Arcos de Valdevez... muito bons sarrabulhos, ou não fossem do Minho, mas nenhum como aquele. 

É uma daquelas receitas que não se tenta replicar em casa, pela carestia de bons ingredientes e pelas... calorias. Papas de sarrabulho light é uma espécie de anedota que daria para rir imenso se não fosse bastante triste. Se eu comesse agora uma tigela daquelas da Tia Maria Adelaide, cheia de papas de sarrabulho, os triglicerídeos,  diabetes, colesteróis e outras "coisas móis", apareceriam logo com o garrote lípido para nos sufocar e fazer pensar que as comidas boas são para espreitar e satisfazer todos os nossos sentidos, excepto o paladar. Ah, pode sempre provar! Provar? A minha mãe é que levava os outifits à prova das senhoras do Restelo. Eu queria mesmo era comer.