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Delito de Opinião

Colónia e o Carnaval

João André, 18.02.23

(E-Mail a uma velha amiga escrita de rajada na noite de quinta-feira passada)

Cheguei hoje de Colónia. Fui ontem, para uma feira e conferência. Colónia no Carnaval é algo louca. É uma cidade em si estranha, tem um sabor das velhas cidades portuárias, com bêbados, prostitutas e prostitutos e emigrantes e cheia de humanidade, no sentido de seres humanos, com todas as virtudes e defeitos que daí chegam. No Carnaval fica engalanada. Verdade, não cheguei na semana do Carnaval, mas na Alemanha e especialmente na Renânia do Norte Westfalia o Carnaval começa na quinta feira e prolonga-se enquanto há cerveja o que em Colónia, na terra da Kölsch, é mesmo muito tempo. Fiquei num Hotel da cadeia Accor e isso notava-se na generalidade, mas mesmo em tais sítios franchisados se notava a influência da cidade, na venda de senhas para a bebida, no stand a vender entrada para as festas da cidade, na mesinha de onde se ia vendendo a cerveja na festa dessa noite - ontem, quarta feira - no bar do hotel e que por uma noite se transformou de aguadeiro de hotel de viajante profissional para se transformar em festa do bar de direito ou das matemáticas, que até a mesa fazia lembrar as nossas dos convívios. As pessoas passavam vestidas, algumas mascaradas de alguma coisa, bombeiros, polícias, soldados, putas, enfermeiras, sei lá o quê, outras pessoas apenas punham uns fatos coloridos com as cores da festa, com uns galões a indicarem serem algum príncipe da festa local ou do grupo específico a que perte cem, com uns chapéus a fazerem lembrar aquelas boinas de sargento da GNR em pequeno ou aqueles chapéus que se faziam dobrando uma folha de papel e que noutras circunstâncias serviam de barco de papel mas sem a outra parte no centro. Estas pessoas também gostam de se adornar com penas coloridas, azuis, amarelo, vermelhas. E outras pessoas ainda não se mascaram de nada, apenas pegam nas roupas mais coloridas que tenham e que não combinem e vai tudo junto, talvez com o colete de visibilidade do carro para compor o conjunto e umas coisas pintadas nas bochechas. Tudo anda pela rua e a sensação é a de irem sempre a caminho de alguma festa, de algum ajuntamento. Fora a cor parecem ir simplesmente juntas, sem grande barulho, sem grande agitação. Não há cervejas ou outras bebidas nas mãos, curiosamente, mas o cheiro a charro é muito óbvio, provavelmente comprado uns dias antes em viagem específica à Holanda para os ir buscar e esperar escapar ao controlo da polícia alemã na fronteira que não gosta desta importação, mas só esta, que de fruta ou vegetais já não se importam. Ontem à noite fui jantar a um daqueles restaurantes feitos a partir de uma cervejaria local. Comida típica destes sítios, com as carnes, as salsichas, as couves, em sauerkraut ou couve roxa, mais as batatas em forma de fritada com cebola e muito molho em cima de tudo, mais umas saladas assim assim e mal escorridas com a água a passar para o resto do prato. Sentaram-me numa mesa para 8 inicialmente ao lado de um casal que ainda não o era, ou seja, um homem e uma mulher nos seus vinte e muitos, claramente a tentar descobrir o que o outro poderia ser, com as discussões sobre aquilo que gostam ou não na comida e com a trapalhice na voz, palavras e gestos que vem de quem ainda não sabe bem como se comportar, especialmente ele. Quase lhe disse com ternura que ela estava para já interessada nele e que escusava de meter os pés pelas mãos mas provavelmente só lhe fazia pior e além disso faz parte da dança, sem vermos as figuras de urso dos outros como saberemos aquilo que queremos neles, como saberá ela o que tem que fazer para o melhorar, para o fazer crescer. Os homens sem as mulheres não crescem, somos crianças eternas, mesmo com elas somos crianças, cheias de importância e de sentido de valor, que os atribuímos nos mesmos uns aos outros, claro está, mas continuamos e continuaremos a ser crianças, mesmo quando aprendemos a ser mulheres (sim, mulheres). Mas claro está que não disse nada, só me ri para dentro e apreciei o espectáculo ouvindo de soslaio e desejando-lhes um bom jantar e uma boa noite quando acabei - muito depressa porque estava com sono e queria ir-me deitar - e saí para voltar ao hotel. O caminho entre o hotel e o restaurante reflectia também o carácter da cidade, de Colónia, Köln, com ruas escuras, meio sujas e pouco recomendáveis, onde salões de beleza, bares e restaurantes obviamente de escalão elevado, conviviam lado a lado ou uns metros adiante de salões de massagens tailandeses, salões de tatuagem e sex shops gay com anúncios de sexo e filmes.

 Todo um microcosmos numa caminhada que não durou mais que 10 minutos para cada lado. Hoje de manhã a sala de pequeno almoço estava mais ou menos normal, excepto os mascarados a beber cerveja nas travessas com buracos para fazer caber os copos que iam bebendo e recolocando depois de vazios. Na cervejaria restaurante era o mesmo. O empregado ia trazendo a cerveja, não havia pergunta sobre qual, era sim cerveja ou não cerveja e se sim ele ia adicionando marcas no encosto para saber quantas tínhamos bebido, havias de gostar. No hotel depois quando fui sair e entregar a chave lá estavam as mesmas pessoas do dia anterior, mas desta vez mascaradas. A miúda que me atendeu estava mascarada de pirata e ficava engraçada com o estilo que tinha. Não cabia naquele cenário de hotel de cadeia, mas para isso também não cabia a instalação para a festa dessa noite e onde já ia bombando a música de carnaval de algum palco onde tinha já começado a celebração e de onde iam fazendo transmissão ao vivo e que eles tinham nos ecrãs do bar do hotel juntamente com a música. Na feira havia também alguns sinais, nalguns stands de empresas alemãs algumas pessoas tinham cedido à tentação de levar uns adereços, nada de extremo que somos alemães e isto é um ambiente profissional e mais logo sim posso ir emborcar-me à grande mas agora não posso exagerar, o que para mim tudo bem, não gosto de Carnaval. Mas era engraçado ver. No final do dia voltei. A estação cheia de mascarados, algumas grades de cerveja já se viam e o comboio já tinha música de festa em alguns lados. Aachen também festeja em grande por isso havia quem se preparar-se para festa por lá mas vamos ser sinceros, ir de Colónia para Aachen para o Carnaval era o mesmo que ir de Roma para Pisa na semana santa.

Agora estou aqui, prestes a ir dormir e quis partilhar contigo. E só me vem um pensamento: estou velho.

Natal e Fim de Ano

João André, 23.12.22

Desde que era pequeno que tenho festejado de uma forma ou outra o Natal. Tinha até uma certa sorte de ter duas noites de Natal, dado que o meu avô paterno era sacristão e, como tinha que estar de serviço à missa a 24, só reuníamos a família paterna na noite de 25. Duas noites de Natal consecutivas e, tendo eu o meu aniversário em Dezembro, até tinha direito a receber múltiplas prendas porque toda a gente se lembrava "ah pois, o Joãozinho fez anos há pouco tempo".

Devo notar no entanto que nunca foram noites de Natal muito religiosas. Lá havia a referência a prendas "do menino Jesus", coisa que me deixava confuso com a logística dele e do Pai Natal em entregar as prendas - lá me convenci que o Pai Natal deixava Portugal para o Menino Jesus e que dividiam territórios - mas fora a história de o meu avô ser sacristão, não tínhamos grande presença da religião. Era uma festa de família. Com os anos isso não mudou. Cresci não crente (que é uma maneira mais simpática de dizer ateu até à medula num blogue povoado de bons cristãos cuja Fé não quero incomodar) e como tal a religião sempre foi como a água num submarino: está ali em todo o lado mas não entra. É o ambiente em que me movo neste período - não nego a religiosidade do Natal, como é óbvio - mas deixa-me indiferente. Adiante, isto não era para falar de religião especificamente. Esclarecimento feito.

Hoje, numa Holanda que dá relativamente pouca importância ao Natal no sentido que nós o damos, numa família internacional onde a minha cara metade não liga ao dia 25, e com os preços dos bilhetes de aviões a tornarem uma viagem a Portugal um custo ridículo para 7 ou 8 dias passados essencialmente em casa, acabei por ir ligando pouco. Temos as prendas, a árvore, amanhã haverá Bacalhau e os telefonemas à família e... já está. Aproveitarei o dia 26 ser feriado por cá, tirarei o resto da semana porque também preciso de descansar e estará feito o período festivo. Penso que esta falta de espírito natalício advém também de não ver televisão (as transmissões, que temos o aparelho) e não ser inundado pelos votos de Boas Festas! a cada 5 minutos. Nas ruas ao redor não há decorações festivas, as lojas não fazem grande esforço (as prendas foram no período do Sinterklaas - São Nicolau - a 5-6 de Dezembro) e a atmosfera não existe.

O fim do ano torna-se assim apenas isso, um final de ano. Um momento para balanços do ano, de pensar no que foi e vai ser, de enviar os votos de boas festas a amigos e colegas e de desejar que este mundo louco melhore.

Então, e respeitando esta lógica, deixo aqui os meus desejos de um Santo Natal a quem o festeje de forma religiosa, bom período festivo a outros que festejem o Natal, feliz Hanukkah (tenho dois amigos que o festejam e como tal lembro-me dele) a quem o celebre e votos que para o ano de 2023 as coisas não piorem - já seria um passo em frente em relação aos últimos anos. Gostaria de ser mais festivo, mas talvez me falte o espírito ou talvez eu seja simplesmente um pessimista. Seja como for, bom Natal, bom Ano Novo e muita saúde para vós e vossos, co-autores e leitores.

Sinal fechado

João André, 02.07.19

Hoje estava a ouvir música e passou a minha versão preferida de Sinal Fechado de Chico Buarque, gravada num concerto ao vivo com Maria Bethânia (todo o álbum é fantástico). Mais que no original, esta versão, encurtada, dá a noção clara da urgência da letra e da forma como tratamos certas relações. Na era de Facebook, e-mail, skype e tantos outras redes sociais, a música continua a ressoar com intensidade. Algumas das pessoas com quem mais me relaciono no Facebook não serão aquelas que mais pensaria em visitar quando vou a Portugal, mesmo que tenha saudades delas. São pessoas que me alegraria ver, encontrar para beber um café e saber alguma coisa mais deles. Se "pegar(am) o lugar no futuro", como vai o "sono tranquilo", mesmo que por apenas alguns minutos.

Sei no entanto que, mesmo que não seja vão, que possa reencontrar essas pessoas, será num quase equivalente de num sinal fechado, com a pressa, "alma dos nossos negócios", num momento em se "anda a cem" (mil?). A maior probabilidade, no entanto, é que se os voltar a ver, eles acabem por se "sumi(r) na poeira das ruas" (ou dos electrões). A realidade é que, de todas as pessoas que terei conhecido ao longo da minha vida, mesmo daquelas com quem terei partilhado pedaços mais pessoais, mais ou menos íntimos, com quem terei partilhado experiências, vivências ou lições, das pessoas que ficaram com algo de mim, por ínfimo que terá sido, a realidade mesmo é que provavelmente não as voltarei a ver.

São pessoas que levam uma parte de mim com elas para o resto das suas vidas, talvez a partilhem com outros, completamente inconscientes disso, seja essa parte boa ou má. E eu farei o mesmo. Sem as ver. E fico feliz que assim seja, porque por muito que não as volte a ver, fizeram parte da minha vida, fizeram parte de momentos bons ou maus, ou bons e maus. E eu delas.

E, quem sabe, pode ser que um sinal fechado, ou o seu equivalente, as traga até mim, ou a mim a elas. Antes de eu "beber alguma coisa rapidamente" terei a possibilidade de lhes dizer:

"- Eu prometo, não esqueço, não esqueço...
- Por favor, não esqueça, não esqueça...
- Adeus!
- Adeus!
- Adeus!"

E vão seis

Pedro Correia, 15.05.18

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Vogais e Consoantes Politicamente Incorrectas do Acordo Ortográfico (Guerra & Paz, 2013)

Novo Dicionário da Comunicação (coordenação, Chiado Editora, 2015)

Presidenciáveis (Topbooks, 2015)

Política de A a Z (em co-autoria, Contraponto, 2017)

2017 - As Frases do Ano (Contraponto, 2018)

Delito de Opinião (colectânea em co-autoria, Bookbuilders, 2018)

O meu vizinho Canetti

Pedro Correia, 16.04.18

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 Livraria Bertrand, Avenida de Roma (Lisboa), ontem de manhã

 

Encontrar livros nossos à disposição do público nos postos de venda tem destas ironias saborosas: a minha mais recente obra, 2017 - As Frases do Ano, surge junto A Língua Resgatada, de Elias Canetti. Que figura há anos entre os meus autores de culto.

Por uma vez somos vizinhos, caro Elias. Nem imaginas como me satisfaz.

Viver as escolhas que fazemos

João André, 02.05.17

Li hoje o enésimo post sobre aquilo que as pessoas, ao chegarem ao fim das suas vidas, lamentavam. Em quase todos os casos se fala em lamentar o que não se fez e não aquilo que se fez. Lamentamos não ter passado mais tempo com a família, não ter aceite aquela oportunidade do outro emprego, não ter feito uma certa viagem, etc.

 

Confesso que ainda me falta algum tempo para poder ser considerado como estando "no final da minha vida", mas este raciocínio, como descrito acima, parece-me conter uma falácia. É normal que lamentemos aquilo que não fizemos precisamente porque não o fizemos. Envolve um desconhecido que podemos glamorizar e imaginar como perfeito. Aquilo que fizemos é conhecido, dissecado e esquecido, fora um ou outro elemento mais memorável. O que não fizemos pode ser construído como queremos.

 

Infelizmente, quando este tipo de posts (ou estudos) surgem, nunca há ninguém a fazer a mais simples das perguntas: porquê? Porque razão lamenta não ter feito viagem X quando fez viagens A, B e C. Porque razão lamenta não ter aceite posição A em vez de B? Fiz ocasionalmente esse exercício. A resposta é invariavelmente dada no condicional: «poderia ter sido...», «se calhar teria...», «quem sabe se não teria...». Não há uma certeza absoluta sobre o melhor desfecho dessa escolha. A única excepção é o lamento de não ter passado mais tempo com família.

 

Pessoalmente opto por outra forma de pensar ou viver: aceitar e perguntar a mim mesmo o que posso retirar daquilo que fiz, de que maneira aprendi, cresci. As escolhas definem-nos, não só pelo que demonstram sobre nós quando as fazemos mas também pela forma como nos influenciarão no futuro. Aceitá-las, mais que lamentar tê-las feito, parece-me melhor filosofia do que esperar pelos últimos anos e reimaginar uma história pessoal contrafactual. Especialmente quando a factual pode e deve ser tão interessante como a outra.

Retratos da minha viagem ao Egipto

João André, 28.01.17

Depois de todos estes apontamentos da viagem do Luís, decidi ir ao meu baú e ir procurar as minhas fotografias preferidas das que tirei quando estive no Egipto, em 2011. Nessa viagem comecei em Luxor, desci até Ashwan e depois fui de comboio para o Cairo. Não deixo notas sobre os locais, que o Luís já deixou bastantes e melhores que as minhas (aproveito e deixo links apenas para os posts dele). Apenas as ditas fotografias e os locais onde foram tiradas (esperando não fazer asneiras). Quem tenha curiosidade, pode sempre perguntar alguma coisa mais sobre elas.

 

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Vista a partir da entrada do templo de Edfu (creio).

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Voltando do templo de Hatchepsut (estaria nas costas).

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Nilo.

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Nilo.

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Nilo.

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Nilo.

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Crianças a brincar num ramo do Nilo.

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A caminho da ilha de Philae.

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No templo de Ísis, ilha de Philae.

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Templo de Karnak.

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Cairo, visto da mesquita de Mohammed Ali.

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 Pirâmides de Gizé, Cairo.

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Templo de Kom Ombo.

 

Tempo, amigos e família

João André, 09.08.16

Foi na universidade que terei feito mais amizades para a vida. No sentido de amizades que durarão a vida inteira e em que, independentemente do tempo de separação, cada reencontro é vivido como com o calor associado ao retomar da conversa do dia anterior. No final dos estudos cada pessoa segue para seu lado, como é evidente. Nalguns casos as escolhas profissionais serão parcialmente influenciadas pela proximidade geografica a amigos, mas nem sempre isto é possível. Com a vida, os horários de trabalho e desfasamento na escolha de períodos de férias, a chegada de filhos e mil outros afazeres, o contacto reduz-se a uns telefonemas, um fim de semana ou outro e ocasiões não planeadas. Quanto maior a distância entre amigos, maior será a oportunidade para o reencontro.

 

No meu caso, que saí de Portugal há quase 13 anos, as oportunidades são bastante reduzidas. As minhas escolhas profissionais e pessoais reduzem-me a frequência de viagens a Portugal e a diferença de rendimentos entre Portugal e o centro da Europa também conspira para limitar a possibilidade de visitas de amigos - quando há menos dinheiro, é-se mais criterioso na selecção de destinos de férias e um amigo numa pequena cidade holandesa mais conhecida por um tratado que pelas vistas não figura muito alto na lista.

 

Instrumentos como o Facebook, Instagram, blogues e afins ajudam a ir mitigando a saudade. Acompanhamos melhor ou pior as aventuras e desenvolvimentos, vemos as crianças crescer - que grandes que estão!, deixa-me estar calado que detestava quando os amigos dos meus pais me diziam isso! estou igual a eles! - lemos sobre as opiniões, ideias, viagens e outras coisas do género. Comentamos, gostamos, reagimos, retweetamos, partilhamos, reencaminhamos. E no final deixamos sempre a mesma promessa: da próxima vez digo qualquer coisa a ver se vamos beber um café/jantar/sair.

 

A maior dificuldade surge quando temos que equilibrar as pessoas que mais estimamos com aquelas que mais nos estimam. Há pessoas que gostaríamos imenso de rever, mas que não têm exactamente o mesmo apreço por nós e outras haverá que têm saudades mortais nossas mas que nós colocaríamos num segundo patamar. Quando recentemente escrevi a um destes amigos «temos que nos encontrar», dei por mim a pensar que isso será improvável. Não que não tivesse prazer em fazê-lo, mas darei sempre prioridade, no meu tempo limitado, ao encontro com outras pessoas, sejam família ou amigos.

 

Foi uma sensação profundamente inquietante pensar que provavelmente já vi pela última vez com vida certas pessoas e que, se acaso lhes sobreviver, possivelmente não os voltarei a ver ou só lhes verei uma campa, no meio do cemitério, e a conversa será apenas um monólogo onde as respostas serão perfeitas porque imaginadas. Mais inquietante ainda quando este pensamente surge não no final da vida, quando começamos a ver amigos e conhecidos a ficar pelo caminho, mas no meio dela, quando ainda guiamos os nossos filhos e temos legítimas aspirações a ver muito do mundo (geografica e sensorialmente).

 

É nestes momentos que recordo uma frase de um dos meus mais velhos (em idade) amigos: não tenho tempo para ter amizades, só família. Não o compreendi verdadeiramente, quando lhe ouvi essa frase há tanto tempo. Hoje compreendo-a melhor. Tanto melhor porque não mais a ouvirei da sua voz e sem saber que assim o era até 5 segundos antes do telefonema que de tal me informou. Agora, com tal conhecimento - que estará sempre aquém do dele - tento orientar a minha vida nesse sentido. Guardo o meu tempo para a minha família, de sangue e de vida. E espero, desejo, que um dia a mesma vida me atire um rebuçado pelo caminho e eu o possa comer, juntamente com uns camarões e uma cerveja, com esses amigos que eu, cinicamente, vou descartando.

Equipas de sonho

João André, 27.01.16

Quando perguntamos a cada um qual o clube preferido recebemos habitualmente um (ou mais) nome(s). Essa resposta será igual qualquer que seja a altura em que se faça a pergunta. O clube escolhe-se relativamente cedo e raramente (não conheço um único caso) muda para o resto da vida.

 

Aquilo que é curioso é que ninguém é realmente capaz de explicar de forma objectiva porque razão é desse clube. Há as influências habituais dos pais, irmãos, amigos ou sucessos em determinadas alturas. Isso explica as origens da preferência, mas quando se pede a explicação para o porquê de essa preferência se manter, a resposta tende a ser quase igual em todos os casos: «os adeptos são os melhores do mundo», «somos um clube diferente», «este clube representa o/a/um povo/cidade/classe/região/mentalidade/etc [à escolha]» entre outras. Raramente são justificações intemporais, ou seja, que sejam verdade tanto hoje como há 20 anos ou dentro de 30.

 

Vejo o meu caso: sou adepto (cada vez mais passivo) do Benfica. É um clube que precisou de uma Assembleia Geral para aprovar a contratação do primeiro jogador estrangeiro mas que entretanto já teve jogos em que nem um terá jogado. O FC Porto representou, sem qualquer margem para dúvidas, o Porto e a região do norte do país, mas no plantel actual só se encontram 5 jogadores portugueses e apenas um joga com regularidade. Isto não pretende menorizar estas equipas, apenas fazer notar que as identidades são mutáveis ao longo do tempo. Os casos mais claros vêm de Inglaterra, onde os clubes eram uma forma de unificar comunidades locais e são hoje em dia essencialmente veículos de merchandising futebolístico.

 

Por isso preferi fazer um exercício diferente. Em vez de dizer qual a "minha" equipa (Benfica desde pequeno por influência do pai, Académica por ter estudado em Coimbra) prefiro referir equipas que me marcaram no seu período temporal. Exemplos seriam (para ir para uma altura em que não era nascido) o Ajax de 1970-73; o Real Madrid de 1956/60 ou a Wunderteam austríaca de Sindelar e Meisl dos anos 30 (não posso invocar estas equipas porque não as vi jogar a não ser, no melhor dos casos, em pequenos clips no YouTube). Vou referir umas quantas equipas que me fizeram sonhar. Equipas com as quais criei algum tipo de laço emocional por uma razão ou outra, mesmo que não compreenda como surgiu. Nalguns casos poderão ser adversárias do Benfica, mas tentarei não deixar que isso me distraia.

 

Deixo ainda uma sugestão: se os nossos comentadores quiserem fazer o mesmo exercício, que cada um me faça chegar um texto e tentarei publicá-lo. Este tipo de actividade em torno das memórias é normalmente mais agradável quando em grupo.

 

A seguir aqui.

Memória de um jovem de 90 anos

João André, 03.04.15

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© - Caminhos do Cinema Português

 

Tal como o Pedro, também eu tive uma pequena experiência com Manoel de Oliveira. Em 1999, estava eu em Coimbra, fiz parte da equipa que organizou os Caminhos do Cinema Português VI. Nessa altura convidámos Manoel de Oliveira para a cerimónia abertura, onde, se a memória não me falha, passámos a versão restaurada de Douro Faina Fluvial.

 

Nessa altura ainda ele tinha uns muito verdes 90 anos de idade, mas para os jovens que éramos, ele parecia já uma figura venerada, um ancião cuja saúde física víamos como necessário cuidar. Assim, no dia em que chegou a Coimbra, de comboio, fomos buscá-lo e lá o levámos, de táxi, para ir jantar à baixa. No momento de pedir a comida, Manoel de Oliveira começa por nos surpreender. Ao invés de pedir um simples peixe grelhado (que era o tipo de comida que esperaríamos de alguém com a sua idade) decidiu-se por outro prato, o qual não recordo mas que seria algo do género de um cozido, uma chanfana ou algo de semelhante.

 

- E para acompanhar, mestre?

- Ora essa. Isto não se come sem vinho. Escolho eu?

 

No final do jantar, durante o qual ele assumiu as despesas da conversa, falando do cinema em geral, do cinema em Portugal, contando inúmeras histórias de vida (tenho dois colegas que a seguir ao jantar pegaram em blocos de apontamentos e escreveram tudo de que se recordaram), tínha bebido o equivalente a três quartos de uma garrafa de vinho e comido uma bela pratada, além da sobremesa.

 

No momento de regressar pedimos-lhe que nos desse uns minutos para ir chamar o táxi.

 

- Ora essa. Então depois deste jantar não vamos de carro. Não podemos ir a pé?

- Claro mestre, mas o caminho ainda é íngreme (a Avenida Sá da Bandeira era capaz de desencorajar a maioria dos jovens).

- Estamos com pressa?

- Não, ainda temos muito tempo até a cerimónia começar.

- Vamos então a pé. A noite está bonita e temos de fazer a digestão.

 

A cerimónia de abertura estava, a meu ver, algo vazia. Esperava algo de mais concorrido dada a presença de Manoel de Oliveira. O Manuel de Oliveira. Senti-me algo triste por isso e por ele, por aquela figura que tinha vindo de tão longe, aos 90 anos, num acto de gentileza, para participar numa iniciativa feita por amadores de vinte e poucos anos.

 

Foi no final dessa cerimónia, onde aceitou uma recordação nossa, que notei o quanto lhe agradou a viagem. Uma actividade destas, organizada precisamente por amadores de vinte e poucos anos era o que lhe dava a energia que precisava. Viu-se depois o enorme prazer que teve em todos os contactos e que lhe davam o aspecto de ter não mais que uns 50 ou 60 anos de idade. Na energia e na bonomia, contudo, era mais jovem que nós.

 

O cinema de Manoel de Oliveira pertence à história. Não será consensual nem ele o desejaria. Em mim deixa por vezes impressão e por vezes indiferença. A pessoa, o homem, esse não deixará a minha memória. Viverá sempre como aquele jovem que um dia espantou os velhos ao pedir vinho e querer subir a Sá da Bandeira.

Uma vivência pessoal do tsunami de 2004

João André, 28.12.14

Faz agora dez anos estava eu a completar um ano de doutoramento e vida na Holanda. Chegada a época de Natal segui para Portugal, como de costume. Foi entre a família que ouvi falar do tsunami na Indonésia. Na altura não lhe prestei muita atenção. Um tsunami era algo que me tinha impressionado na altura da descrição do terramoto de Lisboa de 1755, mas tinha sido no passado, com construções mais fracas e limitado na destruição a uma cidade. Na forma como o imaginava com as primeiras informações disponíveis, este tsunami provavelmente seria uma tragédia para as pessoas na cidade afectada mas não mais.

 

Passadas umas horas começaram a chegar as informações que seria bastante mais grave. Muitos milhares estariam em risco. O tsunami teria atingido uma enorme frente costeira e atingido mais do que "simplesmente" a Indonésia. Com o tempo ficou claro que centenas de milhares de pessoas teriam morrido. Era uma tragédia enorme, uma das maiores alguma vez registadas. Era, no entanto, mais uma tragédia no outro lado do mundo, que me provocava pena e pouco mais. Não existia a sensação de proximidade.

 

Foi no dia 29, salvo erro, que tudo mudou. Nesse dia recebi - eu e os restantes membros do grupo de investigação - um e-mail que indicava que o Saiful, um nosso colega indonésio, tinha partido para a Indonésia em busca da família, a qual incluía a mulher e a filha de um ano de idade. Sem disso termos noção, o Saiful vinha precisamente da província de Aceh, a mais afectada pelo tsunami. Naquele momento a tragédia deixou de ser algo que tinha afectado um enorme grupo de pessoas a meio mundo de distância para afectar alguém que conhecíamos e com quem convivíamos todos os dias.

 

Depois da sua partida, não recebemos quaisquer notícias do Saiful por vários dias. Não sabíamos se teria conseguido chegar à zona afectada ou se teria encontrado os membros da família. A espera era angustiante, especialmente à medida que os vídeos iam chegando às nossas televisões.

 

Passados uns dias recebi um SMS do Saiful. Tinha pedido a um australiano para o enviar. Dizia que estava bem e que tinha encontrado a mulher e a filha e que o resto da família dele estava bem. Daria mais informações quando pudesse. Mais umas semanas e o Saiful estava finalmente de volta. Trazia a mulher e a filha e uma história de enorme sorte. A mulher e a filha tinham sido apanhadas pelas vagas, mas foram salvas por um vizinho que as puxara para a sua casa e as acolheu (bem como a muitas outras pessoas) no telhado da sua casa. O resto da família do Saiful tinha sobrevivido graças a um funeral: tinham-se deslocado ao interior do país, mais elevado, para as cerimónias fúnebres. Apenas um primo, que tinha ficado a trabalhar, tinha morrido. Perante as tragédias em volta o Saiful tinha tido bafejado pela fortuna.

 

Era no entanto uma sorte relativa. A filha ficou naturalmente traumatizada pela experiência e ficava em pânico perante ruídos súbitos ou movimentos rápidos. Quando o Saiful teve o segundo filho explicou-me que a filha acordava a gritar quando o irmão chorava à noite. Demorou vários anos a habituar-se a essas experiências e, quando o Saiful terminou o doutoramento e regressou à Indonésia para ser professor na universidade local, a filha insistia que não queria regressar. Não compreendia o porquê, mas associava instintivamente o local a algo de mau.

 

Falei recentemente com o Saiful. Tem uma vida calma e simples na Indonésia. Construiu a sua vida e ajudou a família a reconstruir as suas. A filha é agora uma criança - quase adolescente - feliz, mas que fica ainda algo carregada quando o tema passa pelo mar e ondas. Pelo que descreve, a zona onde vive é um repositório de esperança e tristeza. Um local onde o passado e o futuro convivem diariamente e o presente é apenas um ponto de passagem.

 

Não posso de forma nenhuma imaginar aquilo que as pessoas que estavam nas zonas afectadas ou lá tinham família terão sentido. Esta foi no entanto uma tragédia que, por uma vez, me afectou um pouco de forma pessoal. Isso torna-a também como menos irreal aos meus olhos.

Vidas ligadas às máquinas (2)

Rui Rocha, 01.11.11

Estamos em 13 de Março de 2003. Recebes-me à porta da nossa casa: olá, amor. Chego tão encolhido que podia aconchegar-me para sempre nas tuas palavras. Em fundo, ouve-se um jingle do Canal Panda. O Dinis interroga a televisão. Está à espera de um episódio dos Três Moscãoteiros. Ainda bem. Hei-de chorar um pouco mais tarde, quando os meus olhos encontrarem os dele. Correu bem o teu dia, perguntas-me. Eu quero tanto responder-te que sim. As vitórias gritam-se. Com as derrocadas, vai melhor um murmúrio: a empresa parou. Queres salvar-nos. Nos últimos anos, o tempo foi um círculo que uniu sempre as paragens e os recomeços. Outra vez? Hoje é diferente. Foi a última vez. Há um e agora que se desenha nos teus lábios. Sem respostas, abafo-o num beijo. A tua boca é vida e eu acabei de chegar do meu próprio naufrágio. Os nossos olhos abrem-se já em além do beijo. O Dinis canta e dança. O a-mor da Ju-li-e-ta é o Dar-ta-cãaaao. Sorrio. Talvez seja possível reconquistar o mundo com uma espada de madeira partida e um velho cavalo cansado. Afago-te a barriga. A Leonor vai nascer em Setembro. Entretanto, o Dinis já me viu. Abraça-me e canta-me os parabéns. Rebento em lágrimas no dia em que faço 33 anos.