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Delito de Opinião

Centenário

Pedro Correia, 27.05.23

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«As dificuldades são também um desafio. Não têm de ser sempre um obstáculo.»

Henry Kissinger, The Economist (Maio de 1923)

 

Viveu muito, leu muito, viajou muito, conheceu muito.

Ensinou muito - e continua a fazê-lo, com plena lucidez intelectual, neste dia em que celebra cem anos.

Henry Albert Kissinger, nascido a 27 de Maio de 1923 na Baviera, fugido com os pais do regime nazi, refugiado em Nova Iorque aos 15 anos. Em 1943, naturalizou-se cidadão americano. Serviu no exército dos Estados Unidos durante a II Guerra Mundial. Escapou à morte, mas o sistema totalitário tocou-o de perto: 13 dos seus parentes sucumbiram no Holocausto.

Admirado, invejado e detestado em partes iguais, pontificou nas administrações Nixon e Ford entre 1969 e 1977. Primeiro como conselheiro da Segurança Interna, depois como secretário de Estado - terceiro posto na hierarquia governamental. No auge do caso Watergate, chegou a ser ele a segurar no leme. Enquanto rasgava horizontes na política externa norte-americana: liderou o degelo diplomático com a República Popular da China ao avistar-se com Mao Tsé-tung, levou Washington a substituir os soviéticos como força dominante no Médio Oriente ao assumir-se como interlocutor entre israelitas e árabes, negociou a limitação de armas estratégicas com Moscovo em plena Guerra Fria. 

 

Doutorou-se com uma tese sobre Metternich (1773-1859), príncipe da diplomacia no império austríaco, expoente máximo da doutrina realista contra os idealistas, responsáveis por tantos conflitos bélicos.

Nos anos 50 e 60 foi um dos mais famosos professores em Harvard, onde leccionou Ciência Política antes de rumar aos palcos mundiais como comandante norte-americano para os assuntos externos. Com várias sombras entre muitas luzes, incluindo o apoio activo às ditaduras de Pinochet no Chile e de Suharto na Indonésia (dando cobertura à invasão de Timor em 1975) e a sua falhada visão de um Portugal mergulhado no comunismo em 1975, útil como «vacina para a Europa». Ao contrário do que previa, os comunistas foram derrotados aqui. Enquanto ganhavam terreno em África e no Sueste Asiático: o Nobel da Paz que recebeu em 1973 pelos acordos de Paris anteriores à retirada norte-americana do Vietname ainda suscita polémica.

Facto inegável: foi um dos mais brilhantes intelectuais que trabalharam nos últimos 60 anos na Casa Branca. Após abandonar funções públicas, tornou-se consultor de monarcas, presidentes e primeiros-ministros. Já nonagenário, continuou a percorrer o mundo: só a pandemia, em 2020, o reteve na sua casa rural no Connecticut. Mas ainda frequenta regularmente o seu escritório, no 33.º andar de um edifício art déco em Manhattan. E continua a publicar livros. Tem dois muito recentes. Um sobre inteligência artificial (tema que o fascina e preocupa), outro sobre seis políticos que conheceu pessoalmente: Konrad Adenauer, Charles de Gaulle, Richard Nixon, Anwar Sadat, Lee Kuan Yew e Margaret Thatcher (Liderança, já com edição portuguesa da Dom Quixote).

Do antigo Presidente francês, cita com frequência uma frase emblemática sobre comando político: «Assumir riscos constantes numa perpétua luta interior.»

 

Em recente entrevista ao Sunday Times, pronunciou-se sobre a invasão russa da Ucrânia. Elogiando Zelenski: «Não há dúvida de que cumpriu uma missão histórica.» E criticando Vladimir Putin: «Chefia um país em declínio e perdeu o sentido das proporções nesta crise.»

Judeu, aos 9 anos o pequeno Heinz (só viria a chamar-se Henry na América) viu Hitler ascender ao poder no seu país natal, onde em menino adorava jogar futebol. Nem o exílio forçado nem o incêndio da Europa que testemunhou ao vivo diminuíram o proverbial optimismo que muitos lhe reconhecem. Mas vai advertindo contra os sinais de crescente desagregação da ordem mundial que imperou nas últimas três décadas: «A segunda Guerra Fria será ainda mais perigosa do que a primeira.»

Um aviso que deve ser levado a sério. Vem de quem sabe mais e viu muito mais do que qualquer de nós.

A Rainha

Pedro Correia, 09.09.15

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«A dissimulação é a ciência dos reis.»

Cardeal Richelieu

 

Quando ela ascendeu ao mais alto cargo do seu país, José Estaline era ainda o senhor absoluto da Rússia vermelha. Nos Estados Unidos, mandava Harry Truman, então sem saber o que fazer dos soldados atascados no inferno da Coreia. E na Grã-Bretanha o primeiro-ministro era Winston Churchill, herói da guerra.

 

Ela viu tudo, ouviu todos.

Quando se sentou no trono herdado de seu pai, Mao Tsé-Tung mandava na China continental, Chiang Kai-Shek pontificava na Formosa, Hirohito mantinha-se como imperador do Japão mesmo após a rendição do seu país aos pés do general Douglas MacArthur. Havia nessa altura outros imperadores no mundo: Hailé Selassié na Etiópia, o xá Reza Pahlevi no Irão. As monarquias eram em número bem superior ao actual: havia-as da Grécia (com o rei Paulo) ao Egipto (com o rei Faruk). E até na Líbia do rei Idris, que um tal coronel Kadhafi viria a derrubar 17 anos mais tarde, em 1969.

 

Nesse mês de Fevereiro de 1952, quando a jovem Isabel se tornou Rainha da Grã-Bretanha, com apenas 25 anos, o planeta era governado por figuras que hoje têm lugar garantido nos livros de História: Sukarno na Indonésia, Perón na Argentina, Tito na Jugoslávia, Franco na Espanha, Nehru na Índia, Ben-Gurion em Israel, Getúlio Vargas no Brasil, Salazar em Portugal.

Conheceu muitos deles, numa sucessão de encontros ao longo de 56 anos – tempo suficiente para ter visto aparecer e desaparecer Elvis Presley, os Beatles e os Pink Floyd.

Coexistiu com seis Papas (Pio XII, João XXIII, Paulo VI, João Paulo I, João Paulo II, Bento XVI e Francisco), nove presidentes franceses (Vincent Auriol, René Coty, De Gaulle, Pompidou, Giscard d’Eistang, Mitterrand, Chirac, Sarkozy e Hollande), oito chanceleres alemães (Adenauer, Erhard, Kiesinger, Willy Brandt, Helmut Schmidt, Kohl, Schroeder e Angela Merkel), 12 presidentes norte-americanos (Truman, Eisenhower, Kennedy, Johnson, Nixon, Ford, Carter, Reagan, Bush pai, Clinton, Bush filho e Obama). E 18 chefes do Estado brasileiros – de Getúlio a Dilma. E oito presidentes de Portugal (Craveiro Lopes, Américo Thomaz, Spínola, Costa Gomes, Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva) e 17 primeiros-ministros portugueses, da ditadura ao actual regime constitucional, passando pelo período revolucionário, onde em menos de dois anos houve seis Executivos.

 

Sábia, serena, sibilina, Isabel II foi reinando ao longo de todo este tempo de convulsões no mundo.
Assistiu a guerras no Congo, no Vietname, no Biafra, no Médio Oriente e nos Balcãs. Testemunhou a descolonização de África, a chegada do homem à Lua, o desmoronar do bloco soviético. Viu as monarquias chegarem ao fim em países tão diferentes como o Iraque, o Afeganistão e o Nepal. E serem restauradas noutros, como em Espanha e no Camboja.
Trabalhou com 12 primeiros-ministros – oito conservadores (Churchill, Anthony Eden, Harold MacMillan, Alec Douglas-Home, Edward Heath, Margaret Thatcher, John Major e David Cameron) e quatro trabalhistas (Harold Wilson, James Callaghan, Tony Blair e Gordon Brown).

 

Churchill não escondeu a ternura paternal que sentia pela jovem monarca. Ela retribuía-lhe a simpatia, sem quebrar o rígido dever de imparcialidade que os costumes do reino lhe impõem, mas não falta quem garanta que o primeiro-ministro favorito dela foi Harold Wilson, com os seus ares de filósofo de cachimbo na swinging London dos anos 60. E que Thatcher terá sido a líder do governo que mais detestou.

A verdade sobre isto e tudo o resto não será apurada num livro de memórias com selo real. Isabel II, a monarca britânica há mais tempo no trono, nunca escreverá esse livro.

 

Num mundo em mutação, onde tudo passa, tudo se esgota e tudo se esquece, ela é uma referência de estabilidade. Lembramo-nos dela desde sempre, são já poucos os que conheceram outro chefe do Estado no Reino Unido. O tempo dela foi sulcado por todas as modas – do chapéu de coco ao punk, passando pela mini-saia de Mary Quant.

Só ela nunca passou de moda.

 

O que sente, o que pensa, o que esconde?

Só ela sabe: por detrás do suave sorriso protocolar, subsiste a esfinge nesta monarca que ninguém tem a ilusão de conhecer.

"A dissimulação é a ciência dos reis", dizia o cardeal Richelieu. Uma legenda que bem se aplica a Isabel II, Rainha do Reino Unido, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Jamaica, Barbados, Bahamas, Granada, Papuásia-Nova Guiné, Ilhas Salomão, Tuvalu, Santa Lúcia, São Vicente e as Granadinas, Belize, Antígua e Barbuda, e Saint Kitts and Nevis.

 

Isabel II subiu ao trono a 6 de Fevereiro de 1952 por morte de seu pai, Jorge VI. Tornou-se hoje a monarca há mais tempo em funções no Reino Unido.

Texto reeditado

Uma baixa de peso

Laura Ramos, 20.12.12


Paulo Varela Gomes dá neste momento a sua Última Lição.
'Do sublime em arquitectura'.
Olho este anfiteatro e, mais do que nele, penso sobretudo nos outros, os muitos que aqui se apinham e são os que verdadeiramente ficarão privados de qualquer coisa de vulto, porque não vão poder mais contar com a pedagogia do mestre: impaciente, perfeccionista, rebelde, exagerado, incessantemente à procura da verdade e concluindo, desafrontadamente, pela incerteza dos cânones e pelos antagonismos da realidade.
Mas que deixarão de poder contar, acima de tudo, com a pedagogia do homem: pragmático e no entanto utópico, lutando contra as injustiças, os abusos, a gritante imperfeição do comodismo.
Sim, esta assembleia é, verdadeiramente, a despojada, porque um professor como ele marca, sobretudo, ao ensinar a pensar de maneira diferente, a alimentar a dúvida, a dasafiar os limites.

Quantos restarão como ele?...

Um dos apresentantes diz, com infinita graça, que a aula que se segue irá de certeza ser uma anti-aula. Porque, como sempre, o Paulo acabará por provar, no fim, e tudo dito, que o seu contrário também poderia ser verdadeiro.

 

Esta não será, naturalmente, a sua última lição.
Espero que os jornais e as televisões se voltem a lembrar dele.

Urgentemente.

"Viver é desenhar sem borracha"

Pedro Correia, 02.04.12

 

Millôr Fernandes foi talvez o primeiro escritor brasileiro com quem travei conhecimento, ainda criança, através da secção 'Pif Paf', do Diário Popular. Eu era ainda muito miúdo mas já tinha o gosto dos jornais: no cinzento Portugal pré-25 de Abril, as prosas de Millôr (nome que não tardei a fixar), as piadas de Millôr, os bonecos de Millôr tinham um colorido muito próprio. Sendo brasileiro, era um autor universal. E um cultor inigualável do nosso idioma, além de um genial produtor de frases que tinham um duplo condão: faziam-nos sorrir e faziam-nos pensar.

Os últimos textos que li dele foram na Veja, onde tinha há muito uma página com nome próprio. Sem nunca perder a irreverência, sem nunca perder a verve. A idade aguçou-lhe o engenho, a malícia, a arte do trocadilho inteligente que tantas vezes lhe permitiu fintar a feroz censura das décadas de 60 e 70.

 


Tenho anotadas nos meus cadernos várias frases dele. Eis algumas:

«Deus fez o mundo. O homem o faz imundo.»

«Nunca ninguém perdeu dinheiro apostando na desonestidade.»

«Hay gobierno, soy contra. No hay gobierno, también soy.»

«Todo governo é um acto de depravação.»

«Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim.»

«Fiquem tranquilos os que estão no poder - nenhum humorista atira para matar.»

«Jamais diga uma mentira que não possa provar.»

«O que vive repetindo a palavra indubitável é, indubitavelmente, um mentiroso.»

«Anatomia é uma coisa que os homens também têm, mas que nas mulheres fica muito melhor.»

«O cara só é sinceramente ateu quando está muito bem de saúde.»

«O homem é um animal inviável. Graças a Deus. Senão o mundo seria de uma monotonia insuportável.»

«Claro que não se pode evitar o nascimento nem a morte. Mas não dá para melhorar um pouco o intervalo?»

 

 

Millôr, o homem que a sorrir nos fazia pensar. O homem que nos ensinou que "viver é desenhar sem borracha". O homem que parecia eternamente jovem deixou-nos há dias, aos 88 anos. Despeço-me dele quase como de uma pessoa de família: há 40 anos que o lia - sempre com gosto, sempre com prazer, sempre com proveito. Procuro um obituário digno desse nome na imprensa portuguesa e quase nada encontro - a excepção, nesta busca não exaustiva, é um bom texto de Isabel Coutinho no Público. Quase tudo o resto é prosa seca e árida e estéril, misto de agência e wikipédia, corta-e-cola, repetindo os mesmos factos, os mesmos dados. Sem emoção, sem brilho, sem colorido, sem sombra de graça.

Millôr merecia mais. Merecia melhor do que estes parágrafos de amanuenses produzidos provavelmente por quem nunca o leu. Nem se sentiu mais pobre de espírito por causa disso.

Dickens, o homem que travou Marx

Pedro Correia, 14.02.12

 

Se há um escritor estreitamente associado a uma cidade e a uma época concreta, esse escritor é Charles Dickens. A cidade é Londres, a época é a da Revolução Industrial: nada do que sucedia naquele tempo e naquele espaço lhe era alheio. Dickens foi uma notável testemunha daqueles dias de profunda transformação da paisagem urbana inglesa que por sua vez marcava a irreversível transição da era agrícola para a era da locomotiva a vapor. E deixou isso bem documentado na sua obra, lida avidamente por legiões de contemporâneos sedentos de justiça.

Se alvo moveu este escritor que desfrutou de imensa popularidade ao longo de quase toda a sua vida adulta, foi precisamente o ideal de justiça."Nenhum autor daquele tempo teve um impacto comparável ao de Dickens. Ele fala da corrupção política e financeira, das desigualdades sociais, da exploração infantil... Temas que estavam aos olhos de todos mas que ninguém chegava a denunciar ou a expor com tanta crueza", sublinha Alex Werner, comissário da exposição Dickens e Londres, organizada no Museu de Londres para assinalar o bicentenário do nascimento deste homem que tem como epitáfio na Abadia de Westminster, escrito por mão anónima: "Amou o pobre, o miserável e o oprimido." Em personagens como David Copperfield ou Pip (de Grandes Esperanças), de cunho claramente autobiográfico, soube narrar a perplexidade infantil perante a inapelável miséria humana.

 

Foi um viajante incansável - atravessou duas vezes o Atlântico e em ambas as visitas aos EUA foi recebido por inquilinos da Casa Branca. Percorreu o Reino Unido de lés a lés e documentou nos seus escritos, primeiro na imprensa e depois em volumes que foram tendo sucessivas reimpressões, as miseráveis condições de vida das classes trabalhadoras do país que Karl Marx anteviu como o primeiro onde ocorreria a grande revolução proletária. Se essa revolução não eclodiu, como salientava há dias o professor universitário espanhol Ignacio García de Leániz Caprile no El Mundo, isso deveu-se à introdução de "mecanismos correctores" naquela sociedade marcada pela injustiça. "Poucas vezes uma literatura tão cheia de bons sentimentos como conhecedora do mal em todas as suas formas, e sempre ligada à realidade, teve tanta dimensão política e transformadora (...). Para Dickens, a boa literatura era a política por outros meios.»

Graças ao autor de Oliver Twist, um cristão convicto e consequente, a reforma travou o passo à revolução. Este é um motivo acrescido para celebrar, neste ano do bicentenário do seu nascimento, um escritor que, ao contrário de Zola, não necessitou de descer às minas de papel e caneta na mão para indagar das miseráveis condições de vida do mundo do trabalho: ele conhecia-as desde muito novo. Com apenas 12 anos, tendo o pai preso por dívidas, começou a trabalhar - dez horas por dia - numa fábrica quase em ruínas, pejada de ratazanas, numa decrépita margem do Tamisa. "Não há palavras para descrever a secreta agonia da minha alma, a sensação de ter sido rejeitado e de ter perdido a esperança", escreveu em David Copperfield, a mais autobiográfica das suas obras.

 

 

Se a Londres daquele tempo - com todas as características do que hoje chamaríamos uma metrópole do Terceiro Mundo - deu lugar à cidade moderna e civilizada dos nossos dias, isso deve-se também a Dickens, um escritor indissociável da capital britânica. Por isso Londres justamente evoca agora - nomeadamente em largas romarias turísticas à sua casa-museu na Rua Doughty - este intelectual que nunca deixou de estar profundamente ligado à vida e acabou por transcender todas as línguas e fronteiras. Autor intemporal, embora profundamente ancorado na sua época. Verdadeiro autor universal sem nunca deixar de ser o maior cronista da sua cidade adoptiva, onde residiu grande parte da vida e viria a morrer em 1870, aos 58 anos.

Uma e outra vez o lemos, sem deixarmos de nos indignar e espantar e comover com o que escreve. Como nestas linhas de David Copperfield: «Que sítio assombroso me parecia Londres quando a vi à distância. Acreditei que todas as aventuras dos meus heróis favoritos podiam acontecer ali, e vagamente me habituei à ideia de que ali havia mais maravilhas e raridades do que em qualquer outra cidade da Terra.»

Os grandes escritores são como os soldados de que nos falava o general Douglas MacArthur. Nunca morrem, apenas se vão dissolvendo no horizonte.

Iron Lady

Adolfo Mesquita Nunes, 12.02.12

O jornal Expresso pediu-me que escrevesse umas linhas sobre o filme Iron Lady. Presumi, acho que bem, que o objectivo seria ter a leitura do filme por quem se identifica, e muito, com o legado político de Margaret Thatcher. Foi nesse pressuposto que escrevi o texto que se segue, e que foi publicado na edição de Sábado do suplemento Actual do Expresso -  e que não corresponde, por isso, a uma crítica de cinema (coisa aliás, como já aqui disse, que não sei fazer).

 

 

Um filme sobre Thatcher sem Thatcher

 
‘Iron Lady’ não é um filme sobre Margaret Thatcher. A sua figura é instrumental para os objectivos do filme: divagar sobre a perda (de poder, de faculdades ou de aliados) e moralizar acerca da irrelevância da carreira na hora da morte (ainda que, através dela, se tenha mudado a face do Mundo).

O filme é assim uma oportunidade perdida porque esgota a possibilidade de vermos, neste tempo de crise, o percurso e legado de uma mulher que chegou ao poder quando a Grã-Bretanha atravessava uma das maiores crises da sua história (o FMI, esse mesmo, tivera de entrar no país pouco antes).

Seguindo Hayek e não Keynes, Thatcher retirou o país da decadência e tornou a economia inglesa numa das mais poderosas do Mundo: derrotou a inflação, transformou os tecidos industrial e empresarial, elevou substancialmente o nível de vida, reduziu a opressiva carga fiscal e criou um novo modelo económico (que nem Blair repudiou) favorável à geração de novos empregos e à mobilidade social.

Mesmo para os seus detractores, a importância de Thatcher reside na forma como, com esse modelo, conseguiu transformar económica e socialmente a face do país, contribuindo decisivamente para a queda do muro de Berlim.

Sobre isto, que é tudo, o filme nada diz. Não assistimos a tomadas de decisão política de Thatcher, não conhecemos qualquer linha do seu modelo económico, não sabemos por que razão foi eleita três (!!) vezes, não percebemos o seu papel na queda do muro de Berlim, não vemos os (in)sucessos dos seus governos, e muito menos entendemos porque é que a sua profética desconfiança face à moeda única e ao modelo de governação europeia contribuiu para a sua queda.

De Thatcher fica apenas o retrato demasiado ambíguo de uma mulher que nunca deixou que a percebessem e que agora não é dona da sua vida, o que é coisa pouca para quem paradoxalmente tanto lutou para que os indivíduos e famílias pudessem ter maior controlo sobre as suas vidas.

Never explain, never complain

Laura Ramos, 06.02.12

 

Esta frase, atribuída a Benjamin Disraeli, é a divisa informal dos Windsor.

E ocorre-me vezes sem conta, porque sou levada a reconhecer nela a chave da conduta politicamente irrepreensível de Isabel II.

Uma verdadeira chave inglesa...

Ou, então, de como a aparente passividade pode ser poderosamente inteligente e alcançar, sem chicana, o fim último a que se propõe: a representação lealíssima do seu povo.

Há sessenta anos que ela é assim.

A monarquia, se não tiver mais defeitos, terá pelo menos este, que é o de exigir o sacrifício de uma pessoa e de uma família.

Como e porquê, aqui.

A Rainha

Pedro Correia, 05.02.12

 

"A dissimulação é a ciência dos reis."

Richelieu

 

Quando ela ascendeu ao mais alto cargo do seu país, José Estaline era ainda o senhor absoluto da Rússia vermelha. Nos Estados Unidos, mandava Harry Truman, então sem saber o que fazer dos soldados atascados no inferno da Coreia. E na Grã-Bretanha o primeiro-ministro era Winston Churchill, herói da guerra.

Ela viu tudo, ouviu todos. Quando se sentou no trono herdado de seu pai, Mao Tsé-Tung mandava na China continental, Chiang Kai-Shek pontificava na Formosa, Hirohito mantinha-se como imperador do Japão mesmo após a rendição do seu país aos pés do general Douglas MacArthur. Havia nessa altura outros imperadores no mundo: Hailé Selassié na Etiópia, o xá Reza Pahlevi no Irão. As monarquias eram em número bem superior ao actual: havia-as da Grécia (com o rei Paulo) ao Egipto (com o rei Faruk). E até na Líbia do rei Idris, que um tal coronel Kadhafi viria a derrubar 17 anos mais tarde, em 1969.
 
Nesse mês de Fevereiro de 1952, quando a jovem Isabel se tornou Rainha da Grã-Bretanha, com apenas 25 anos, o planeta era governado por figuras que hoje têm lugar garantido nos livros de História: Sukarno na Indonésia, Perón na Argentina, Tito na Jugoslávia, Franco na Espanha, Nehru na Índia, Ben-Gurion em Israel, Getúlio Vargas no Brasil, Salazar em Portugal. Conheceu muitos deles, numa sucessão de encontros ao longo de 56 anos – tempo suficiente para ter visto aparecer e desaparecer Elvis Presley, os Beatles e os Pink Floyd. Coexistiu com seis Papas (Pio XII, João XXIII, Paulo VI, João Paulo I, João Paulo II e Bento XVI), oito presidentes franceses (Vincent Auriol, René Coty, De Gaulle, Pompidou, Giscard d’Eistang, Mitterrand, Chirac e Sarkozy), oito chanceleres alemães (Adenauer, Erhard, Kiesinger, Willy Brandt, Helmut Schmidt, Kohl, Schroeder e Angela Merkel), 12 presidentes norte-americanos (Truman, Eisenhower, Kennedy, Johnson, Nixon, Ford, Carter, Reagan, Bush pai, Clinton, Bush filho e agora Obama). E 18 chefes do Estado brasileiros – de Getúlio a Dilma. E oito presidentes de Portugal (Craveiro Lopes, Américo Thomaz, Spínola, Costa Gomes, Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva) e 17 primeiros-ministros portugueses, da ditadura ao actual regime constitucional, passando pelo período revolucionário, onde em menos de dois anos houve seis Executivos.
 
Sábia, serena, sibilina, Isabel II foi reinando ao longo de todo este tempo de convulsões no mundo. Assistiu a guerras no Congo, no Vietname, no Biafra, no Médio Oriente e nos Balcãs. Testemunhou a descolonização de África, a chegada do homem à Lua, o desmoronar do bloco soviético. Viu as monarquias chegarem ao fim em países tão diferentes como o Iraque, o Afeganistão e o Nepal. Trabalhou com 12 primeiros-ministros – oito conservadores (Churchill, Anthony Eden, Harold MacMillan, Alec Douglas-Home, Edward Heath, Margaret Thatcher, John Major e David Cameron) e quatro trabalhistas (Harold Wilson, James Callaghan, Tony Blair e Gordon Brown).
Churchill não escondeu a ternura paternal que sentia pela jovem monarca. Ela retribuía-lhe a simpatia, sem quebrar o rígido dever de imparcialidade que os costumes do reino lhe impõem, mas não falta quem garanta que o primeiro-ministro favorito dela foi Harold Wilson, com os seus ares de filósofo de cachimbo na swinging London dos anos 60. E que Thatcher terá sido a líder do governo que mais detestou. A verdade sobre isto e tudo o resto não será apurada num livro de memórias com selo real. Isabel II, a monarca britânica que mais anos reinou desde a Rainha Vitória, nunca escreverá esse livro.
Num mundo em mutação, onde tudo passa, tudo se esgota e tudo se esquece, ela é uma referência de estabilidade. Lembramo-nos dela desde sempre, são já poucos os que conheceram outro chefe do Estado no Reino Unido. O tempo dela foi sulcado por todas as modas – do chapéu de coco ao punk, passando pela mini-saia de Mary Quant. Só ela nunca passou de moda.
 
O que sente, o que pensa, o que esconde? Só ela sabe: por detrás do suave sorriso protocolar, subsiste a esfinge nesta monarca que ninguém tem a ilusão de conhecer. "A dissimulação é a ciência dos reis", dizia o cardeal Richelieu. Uma legenda que bem se aplica a Isabel II, Rainha do Reino Unido, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Jamaica, Barbados, Bahamas, Granada, Papuásia-Nova Guiné, Ilhas Salomão, Tuvalu, Santa Lúcia, São Vicente e as Granadinas, Belize, Antígua e Barbuda, e Saint Kitts and Nevis.
 
Isabel II subiu ao trono a 6 de Fevereiro de 1952, por morte de seu pai, Jorge VI. Faz amanhã 60 anos.

Rêves Ardents

Laura Ramos, 30.01.12

Raras vezes uma mulher assim, neste meio, detém esta força. Contra a sua obra (e a obra por fazer) contaram séculos de predomínio masculino, oportunamente somados aos mais recentes anos de desconceito dos valores humanísticos, na crista de um poder que devia ser esclarecido porque é o poder de todos os futuros: o universitário.

Não a quiseram por cá? Outros a quiseram. Habituem-se.

Conheço-a há quase tantos anos quanto a mim própria e sei que ela é a força de teimar na acção. A obra lúcida, em movimento, contra o mecanicismo económico, os oráculos da estatística, os que olham fixamente - e sem - um amanhã enganado.

La science sans conscience n'est que ruine de l'âme: foi este o seu estandarte, que diz tudo sobre quanto se perdeu.

Agora, a caminho de Rabat para dirigir o novo polo da maior associação universitária do mundo, deixa na última página do 'Jornal de Letras' o seu Diário de partida de um tempo velho; e de chegada a um tempo  com futuro.

 

Cristina Robalo Cordeiro


(...) Trago comigo um mundo imenso de rostos e de afectos. Deixo uma casa, uma cidade, uma universidade. Ou, pelo menos, uma certa ideia da minha universidade, no sentido que De Gaulle dava à celebérrima afirmação «Je me suis toujours fait une certaine idée de la France».

Detenho-me na resposta de Bellabes à última pergunta que lhe é colocada: «Não gosto de competições! Apenas uma forma de competição me interessa, a que me põe face a mim, em face de mim». E vêm-me à memória os meus recentes combates, tão semelhantes em natureza, tão desiguais nos seus efeitos.

Sei então porque parto. Não para reconhecer objectos e gestos, perfumes e sabores, no mistério das silhuetas desaparecidas na esquina de um souk ou das sombras projectadas sobre as paredes atravessadas pelo tempo. Mas porque é grande o apelo da vida, do pensamento e da acção. Porque há lugares onde ainda é possível construir, onde é inútil e ultrajante dizer não, não há condições… nem meios nem esperança! Parto porque há condições, meios e esperança! E vontade firme!
Boa sorte, Cristina.

Benjamin Franklin – um homem invulgar

José Maria Gui Pimentel, 23.08.11

“I conceiv'd the bold and arduous project of arriving at moral perfection. I wish'd to live without committing any fault at any time; I would conquer all that either natural inclination, custom, or company might lead me into. As I knew, or thought I knew, what was right and wrong, I did not see why I might not always do the one and avoid the other. But I soon found I had undertaken a task of more difficulty than I had imagined.”


A Autobiografia de Benjamin Franklin é um livro algo ingrato, encontrando-se praticamente em bruto, escrito fraccionadamente e terminando antes da parte mais importante da vida do autor: a Revolução Americana. Apesar destes defeitos, oferece um testemunho raro de viva voz da vida de uma das maiores figuras da sua era, um relato razoavelmente honesto (tanto quanto uma autobiografia pode ser), que permite seguir a evolução do seu pensamento e a construção da sua figura como homem da causa pública. Benjamin Franklin foi um homem verdadeiramente fascinante, representando como ninguém o arquétipo daquilo que viria a ser o cidadão americano, combinando, nas palavras de Henry Steele Commage, “as virtudes do Puritanismo, sem os seus defeitos, e o brilho do Iluminismo sem a sua intransigência”.

O livro permite perceber como, partindo de baixo mas beneficiando de toda a liberdade que a América do século XVIII proporcionava, Franklin foi literalmente construindo a sua pessoa, auxiliando-se principalmente da sabedoria recolhida dos livros (onde cedo percebeu estar o segredo), num trabalho contínuo e paulatino ao longo da vida, até ser reconhecido como a segunda maior figura da revolução americana (apenas atrás de George Washington). A quantidade e a diversidade das empresas que levou a cabo durante a vida fazem perder o folgo, tanto mais que se trata de um homem que viveu numa era em que, por exemplo, uma viagem transatlântica demorava cerca de um mês e meio.

Um filósofo na verdadeira acepção do termo, Franklin deixou à humanidade um legado vasto. Deixou no “Sermão do Padre Abraão” uma série de aforismos que hoje fazem parte da cultura mundial (e.g. “não deixes para amanhã o que podes fazer hoje”). Ademais, fundou a Universidade da Pensilvânia, a Sociedade Filosófica Americana e um dos primeiros grupos de Bombeiros Voluntários na América, contribuindo também para a implantação em Filadélfia do primeiro hospital dos EUA. Paralelamente, foi um dos primeiros defensores da união das colónias, deslocando-se a Londres para lutar pelos direitos dos americanos contra a família Penn, que detinha a Pensilvânia. Na ciência, fez progressos no estudo da Electricidade, demonstrando a natureza eléctrica dos raios, o que lhe permitiu inventar diversos utensílios, dos quais o pára-raios é um exemplo notável (permanecendo actual ao longo dos séculos seguintes), granjeando um enorme reconhecimento internacional.

Já com uma idade avançada (em 1776 tinha 70 anos), teve o papel que se conhece na Revolução Americana, assegurando o crucial apoio da França e sendo o único signatário dos quatro documentos principais da fundação dos EUA: a Declaração de Independência, o Tratado de Paris, o Tratado de Aliança com a França e a Constituição dos Estados Unidos. Regressado de França, ainda foi, aos 79 anos, Governador da Pensilvânia, tendo ainda tempo, posteriormente, para se tornar um activo abolicionista, dando ao mundo uma derradeira evidência do seu carácter de homem à frente do seu tempo.

Pela negativa, desta biografia destaca-se o facto de haver partes da sua vida que Franklin claramente passa em claro, ficando, por exemplo, omissa a questão nunca esclarecida da proveniência do seu filho ilegítimo, William, com quem tinha grande proximidade, mas que acabou por ficar do lado inglês durante a revolução.

 

* O retrato, que se encontra no Metropolitan Museum of Art, corresponde ao período em que Franklin frequentou a corte francesa, que encantou com a sua sagacidade e com o seu estilo que, nas palavras de hoje, corresponderia a algo como um “rústico chique”.

O general que queria ser escritor

Pedro Correia, 12.06.10

 

Charles de Gaulle, como Churchill e alguns outros gigantes da política do século XX, não cessa de estar na moda. Talvez por ser tão flagrante o contraste com os políticos actuais. Os ecos das polémicas de outras eras esbateram-se: como sublinhava há dias a revista L' Express, os franceses preparam-se para assinalar em clima de consenso três efemérides relacionadas com o general - os 120 anos do seu nascimento (22 de Novembro de 1890), os 70 anos do seu célebre apelo à resistência gaulesa contra o invasor nazi (18 de Junho de 1940) e o 40º aniversário da sua morte (9 de Novembro de 1970). No mundo editorial parisiense, abundam por estes dias as obras relacionadas com o homem que salvou duas vezes a França (na II Guerra Mundial e em 1958, quando o seu regresso à política impediu o país de mergulhar na guerra civil devido ao conflito na Argélia).

Mas o maior acontecimento é a publicação integral das Cartas, Notas e Cadernos em três volumes - os dois primeiros à disposição do público desde segunda-feira e o último com edição prometida para Outubro. A "fascinante" leitura destes documentos - sublinha Jérôme Dupuis na L' Express - permite reconstruir a vida do ex-presidente francês "quase dia por dia" e sobretudo descortinar "um destino a forjar-se perante os nossos olhos". São cartas aos pais quando se encontra prisioneiro dos alemães durante a I Guerra Mundial, ao marechal Pétain, camarada de armas que viria a tornar-se o maior dos seus inimigos políticos, a um colaborador a quem deixou claro (em 1946) que detestava a expressão "gaullista", cunhada a partir do seu próprio nome... O último documento é uma carta que escreveu ao filho, Philippe de Gaulle, no próprio dia em que morreu.

 

Estes documentos confirmam também o talento literário do militar que foi político mas preferia ter sido escritor, redigiu poesia e chegou até a concluir um romance, nunca editado. A sua vasta biblioteca pessoal, na mansão de Colombey-les-Deus-Églises, tinha mais livros de ficção do que de História - com autores como Hemingway, Aragon, Camus, Buzzati e Kipling. Manteve amizade e correspondência com autores tão diversos como Mauriac, Claudel e Cocteau. Malraux foi seu ministro da Cultura. E mesmo quando ocupou o Palácio do Eliseu, entre 1958 e 1969, gabava-se de ler em média três livros por semana. "Foi o último grande escritor de França", não hesita em assinalar o editor Jean-Luc Barré à L' Express.

De que homens de Estado - do estado a que a Europa chegou - se poderá hoje dizer o mesmo?

Ter razão cedo de mais

Pedro Correia, 28.08.09

 Em 29 de Setembro de 1938, virava-se em Munique uma das mais vergonhosas páginas da diplomacia ocidental. Neville Chamberlain, então primeiro-ministro britânico, vendeu a Checoslováquia e a honra do seu país na capital da Baviera, capitulando aos pés de Hitler sem que o tirano nazi tivesse sequer necessidade de disparar um tiro. Tudo em nome “da paz honrosa no nosso tempo”, como proclamou no regresso a Londres, entre os aplausos da populaça.

A 'paz' dos pacifistas é muitas vezes apenas o caminho mais curto para a guerra: eis a principal lição dos compromissos de Munique, em que Chamberlain e o primeiro-ministro francês Édouard Daladier se vergaram à vontade de Hitler e do seu aliado Mussolini para 'preservarem' a paz. Os tambores de guerra já rufavam – eles foram os últimos a perceber.
Discursando na Câmara dos Comuns a 5 de Outubro de 1938, Winston Churchill – então o mais impopular dos políticos britânicos – advertiu Chamberlain para o enorme fiasco de Munique: “Teremos a desonra e teremos a guerra.”
Foi apupado pelos seus pares. Mas era o único a ter razão, como meses depois todos perceberam. Vai fazer agora 70 anos.

A segunda morte de Raul Solnado

Pedro Correia, 09.08.09

Raul Solnado era uma das raras personalidades unânimes em Portugal. Por mérito próprio, figurava entre os genuínos artistas populares que também eram apreciados pelas chamadas elites. Estava, nesse aspecto, ao nível de Amália Rodrigues - de algum modo sobreviveu à sua própria celebridade, já tornada intemporal ainda em vida, facto ainda mais raro entre nós. Depois dele, sobram poucos no nosso mundo do espectáculo: um Rui de Carvalho, um Carlos do Carmo, uma Simone de Oliveira, um  Nicolau Breyner. Vinha do teatro de revista, dos filmes a preto e branco, dos tempos em que televisão e RTP significavam exactamente a mesma coisa. Herdeiro directo dos grandes cómicos de outras eras, como Vasco Santana ou António Silva, jamais se confundiu com qualquer deles: tinha uma voz própria, singular. Que se distinguia mesmo nos filmes menores em que entrou, logo no início da carreira, como O Noivo das Caldas ou O Tarzan do Quinto Esquerdo. E se prolongou por notáveis registos dramáticos, infelizmente a um ritmo muito irregular, como ficou bem patente no melhor dos seus papéis cinematográficos, como inspector Elias Santana n' A Balada da Praia dos Cães, de Fonseca e Costa. Teve ainda, no plano cívico, uma atitude exemplar: antes e depois do 25 de Abril, soube bater-se pela liberdade, sem equívocos de qualquer espécie.

Por tudo isto, é incompreensível que a RTP - que tanto deve a Solnado - não tenha produzido em tempo útil um bom documentário sobre a vida e a obra deste lisboeta da Madragoa que foi um dos nossos cidadãos universais. Pior que isso: é um insulto à memória deste grande actor e dos seus milhões de admiradores que o canal público de TV não tenha guardado nos arquivos as emissões integrais do Zip-Zip, um dos melhores programas de sempre da televisão portuguesa. Ainda pior: é um crime de lesa-património que a RTP tenha apagado todas as emissões d' A Visita da Cornélia, outro célebre programa de Solnado que obteve um enorme êxito em Portugal. O inesquecível intérprete d' A Guerra de 1908 merecia que a televisão pública que agora lamenta a sua morte o tivesse tratado com dignidade em vida. Preservando a memória do seu talento para as gerações que nunca terão o privilégio de o conhecer.

Mário Soares

Pedro Correia, 15.03.09

 

 

Percorro a pé o jardim do Campo Grande, ao fim da manhã, como tantas vezes gosto de fazer. De súbito, vejo caminhar a curta distância um homem alto, vestido de escuro, cabelos brancos. Tem um andar inconfundível. Digo para mim próprio: é Mário Soares. Aproximo-me dele. Caminha em passo estugado, vem da zona onde tem residência, dirige-se às imediações do metropolitano. Defronte da Biblioteca Nacional, vira para trás, prossegue a marcha em ritmo cadenciado e firme. Cruzo-me então com ele, cumprimento-o: “Como está, senhor Presidente?” Sorri, faz-me um aceno simpático e prossegue a sua marcha. Mais ninguém em redor nesta cidade despovoada num domingo soalheiro. É de algum modo a imagem do suave quotidiano português, nem sempre reflectido nas manchetes dos jornais. E também do próprio ex-Presidente da República, que sempre detestou escolta e segurança pessoal.

Lá o vi a dirigir-se de regresso a casa, provavelmente abrindo o apetite para o almoço. Em excelente forma aos 84 anos. Um cidadão como qualquer de nós. E no entanto já uma personagem com lugar garantido nos livros de História.
 
Quadro: Mário Soares, por Júlio Pomar (Palácio de Belém)

A Rainha

Pedro Correia, 06.02.09

 

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"A dissimulação é a ciência dos reis."

Richelieu

 

Quando ela ascendeu ao mais alto cargo do seu país, José Estaline era ainda o senhor absoluto da Rússia vermelha. Nos Estados Unidos, mandava Harry Truman, então sem saber o que fazer dos soldados atascados no inferno da Coreia. E na Grã-Bretanha o primeiro-ministro era Winston Churchill, herói da guerra.

Ela viu tudo, ouviu todos. Quando se sentou no trono herdado de seu pai, Mao Tsé-Tung mandava na China continental, Chiang Kai-Shek pontificava na Formosa, Hirohito mantinha-se como imperador do Japão mesmo após a rendição do seu país aos pés do general Douglas MacArthur.
Havia nessa altura outros imperadores no mundo: Hailé Selassié na Etiópia, o xá Reza Pahlevi no Irão. As monarquias eram em número bem superior ao actual: havia-as da Grécia (com o rei Paulo) ao Egipto (com o rei Faruk). E até na Líbia do rei Idris, que um tal coronel Kadhafi viria a derrubar 17 anos mais tarde, em 1969.

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Nesse mês de Fevereiro de 1952, quando a jovem Isabel se tornou Rainha da Grã-Bretanha, com apenas 25 anos, o planeta era governado por figuras que hoje têm lugar garantido nos livros de História: Sukarno na Indonésia, Perón na Argentina, Tito na Jugoslávia, Franco na Espanha, Nehru na Índia, Ben-Gurion em Israel, Getúlio Vargas no Brasil, Salazar em Portugal. Conheceu muitos deles, numa sucessão de encontros ao longo de 56 anos – tempo suficiente para ter visto aparecer e desaparecer Elvis Presley, os Beatles e os Pink Floyd.
Coexistiu com seis Papas (Pio XII, João XXIII, Paulo VI, João Paulo I, João Paulo II e Bento XVI), oito presidentes franceses (Vincent Auriol, René Coty, De Gaulle, Pompidou, Giscard d’Eistang, Mitterrand, Chirac e Sarkozy), oito chanceleres alemães (Adenauer, Erhard, Kiesinger, Willy Brandt, Helmut Schmidt, Kohl, Schroeder e Angela Merkel), 12 presidentes norte-americanos (Truman, Eisenhower, Kennedy, Johnson, Nixon, Ford, Carter, Reagan, Bush pai, Clinton, Bush filho e agora Obama). E 17 chefes do Estado brasileiros – de Getúlio a Lula. E oito presidentes de Portugal (Craveiro Lopes, Américo Thomaz, Spínola, Costa Gomes, Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva) e 16 primeiros-ministros portugueses, da ditadura ao actual regime constitucional, passando pelo período revolucionário, onde em menos de dois anos houve seis Executivos.
 

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Sábia, serena, sibilina, Isabel II foi reinando ao longo de todo este tempo de convulsões no mundo. Assistiu a guerras no Congo, no Vietname, no Biafra, no Médio Oriente e nos Balcãs.
Testemunhou a descolonização de África, a chegada do homem à Lua, o desmoronar do bloco soviético.
Viu as monarquias chegarem ao fim em países tão diferentes como o Iraque, o Afeganistão e o Nepal.
Trabalhou com 11 primeiros-ministros – sete conservadores (Churchill, Anthony Eden, Harold MacMillan, Alec Douglas-Home, Edward Heath, Margaret Thatcher e John Major) e quatro trabalhistas (Harold Wilson, James Callaghan, Tony Blair e Gordon Brown).
Churchill não escondeu a ternura paternal que sentia pela jovem monarca. Ela retribuía-lhe a simpatia, sem quebrar o rígido dever de imparcialidade que os costumes do reino lhe impõem, mas não falta quem garanta que o primeiro-ministro favorito dela foi Wilson, com os seus ares de filósofo de cachimbo na swinging London dos anos 60. E que Thatcher terá sido a líder do governo que mais detestou. A verdade sobre isto e tudo o resto não será apurada num livro de memórias com selo real. Isabel II, a monarca britânica que mais anos reinou desde a Rainha Vitória, nunca escreverá um.
Num mundo em mutação, onde tudo passa, tudo se esgota e tudo se esquece, ela é uma referência de estabilidade. Lembramo-nos dela desde sempre, são já poucos os que conheceram outro chefe do Estado no Reino Unido. O tempo dela foi sulcado por todas as modas – do chapéu de coco ao punk, passando pela mini-saia de Mary Quant. Só ela nunca passou de moda.
 
O que sente, o que pensa, o que esconde? Só ela sabe: por detrás do suave sorriso protocolar, subsiste a esfinge nesta monarca que ninguém tem a ilusão de conhecer.
 
 
Isabel II subiu ao trono a 6 de Fevereiro de 1952, por morte de seu pai, Jorge VI. Há exactamente 57 anos.

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