Perdidos e achados
A Helena Sacadura Cabral colocou um pouco mais abaixo um pequeno post que alerta, implicitamente, para um dos grandes problemas com que se debate actualmente a sociedade portuguesa, apesar de não ser exclusivo desta. Trata-se de uma oportuníssima chamada de atenção que desde já agradeço à minha companheira por me ter proporcionado o ensejo de, en passant, como no xadrez, aqui deixar estas breves linhas.
No pequeno desenho que ali ficou gravado pode ler-se uma frase que, a propósito dessa parte anterior ou superior do encéfalo, designada por cérebro, que coordena e controla os movimentos do corpo, se responsabiliza pela aprendizagem, pela cognição, pelas emoções e a memória, expressa um sonho. Mas também formula um desejo. A frase, referida a esse órgão, "todos deveriam ter um" é de extrema actualidade. Quero por isso mesmo também felicitar a Helena, a quem acompanho nesse sonho e nesse desejo.
Mas a mim, e agora escrevo para a Helena, que vivo no mundo dos humanos e dos cães, alguns como nós, diria o Alegre, outros muito melhores do que nós, digo eu, o que me preocupa é a realidade.
O que deveras me preocupa, Helena, não são os que não têm, os que nunca tiveram cérebro, os que tiveram a infelicidade de nascer descerebrados.
O que me preocupa, Helena, são aqueles desgraçados para os quais a ciência ainda não encontrou resposta, que não encontrará, e cujo problema se agrava em cada dia que passa. E creio que Deus também nunca encontrará solução. Porque esses problemas são aqueles para os quais Ele não tem resposta, nem nunca terá, porque esses são os que saem do baralho e desafiam a Sua própria intuição do Universo.
O que me preocupa, Helena, são os que tendo nascido com cérebro o perderam pelo caminho. Os que o perderam ao longo do processo de socialização, e que aparentemente não sofreram nenhum acidente. Que a gente saiba, que se visse ou que os próprios sentissem. Nem ninguém o encontrou depois de uma visita, sem os próprios saberem, obviamente, aos Perdidos e Achados da esquadra da Alegria. Esses são os casos mais complicados. Um amigo meu chinês, um daqueles que não come cherne para não dar pela falta dele quando vier o tempo em que nos casinos só haja dinheiro para chaputas, costuma dizer que esses, os que têm a infelicidade de se acharem nessa condição, são "as bestas".
Ele é capaz de não estar longe da verdade, embora eu esteja sempre a dizer que ele não deve dizer isso. Porquê, Helena? Porque enquanto a ciência não tiver resposta, até que o António Damásio nos esclareça, é situação que pode acontecer a qualquer um.
E no que a mim respeita, Helena, se um dia isso me acontecer, eu só peço aos meus amigos, a começar pelos que aqui tenho, no Delito de Opinião, e aos outros que não me conhecem, que não me deixem continuar a escrever. E se eu escrever que não me editem o que escrevo. Postumamente ainda menos. Como é que eu depois poderia responder ao Cardoso Pires ou ao O'Neill, quando chegasse lá acima, e eles me apresentassem a factura perguntando: "Que porcaria é esta? O que andaste a fazer lá em baixo? Não tens vergonha?".
Isto para já não falar na chatice que seria ter de convidar alguém para escrever o prefácio. Os outros, os que não fossem convidados, ficariam sumamente ofendidos. E no fim quem seria capaz de distinguir "as bestas", as genuínas, das "bestas", das outras? Nem os outros, os cães, que sendo como nós ainda têm a sorte de terem olfacto, e que só por esse sentido que têm tão apurado distinguem o que lhes convém do que não lhes convém, pensando na preservação da espécie e na protecção das suas crias de maiores perigos, seriam capazes de distingui-los.
Mas estas são coisas em que as "bestas" não pensam, Helena. Antes ou depois de procriarem.
Um abraço,
Sérgio