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Delito de Opinião

A razão em questão

beatriz j a, 30.01.22

A não que se desista da comunicação e entendimento entre os seres humanos e nos reduzamos ao silêncio mútuo ou à guerra, a razão -a racionalidade-, continua a ser o único caminho capaz de conhecimento não-relativo, portanto, universal. Mesmo que no domínio da razão uns sistemas não aceitem as razões de outros como válidas ou rejeitem o próprio critério da racionalidade como garantia de validade das ideias, ainda assim é com razões que refutam esse sistema racional. Logo, mesmo ao criticar ou tentar negar o critério da racionalidade e a sua aspiração à universalidade, fazem-no afirmando a própria racionalidade, pois ao argumentar contra essa racionalidade universalizante, aspiram eles mesmos a que as suas razões sejam universalmente válidas. 

Não se segue daí que todo o conhecimento ou comunicação tenham que ser racionais ou universais, ou sequer que devam ser obliterados ou reduzidos a ordens racionais ou científicas, mas no domínio do conhecimento e da comunicação dos sistemas [culturas] uns com os outros, temos de aceitar como prioridade a ordem das razões. A não ser que se desista da comunicação e entendimento entre os seres humanos e nos reduzamos ao silêncio mútuo ou à guerra.

A ordem das razões não  é meramente normativa, pois se o fosse não seria possível explicar a eficácia do conhecimento científico no avanço das explicações sobre a natureza e no domínio dos sistemas naturais. [não estou aqui a referir-me a questões de ordem moral sobre se a ciência é usada para fazer mal - essa é outra discussão] 

Dois exemplos: 

1º - podemos ser a favor de fazer equivaler os direitos dos pais biológicos aos dos pais adoptivos, mas daí não se segue que se anule a diferença entre uns e outros, pois até do ponto de vista da saúde, quando é necessário saber da herança genética da criança para tratar uma doença, é aos pais biológicos que tem que ir buscar-se a resposta. Isso não representa uma diminuição dos direitos dos pais adoptivos, mas apenas o reconhecimento de que não é possível anular os processos naturais através de normas legais. São coisas diferentes, a aceitação e normalização da diversidade, da asserção de não haver diferença entre uma coisa e outra e ser tudo mesmidade. Parece-me que essas confusões são filhas do relativismo actual do conhecimento que pretende estar a lutar contra o que chamam, 'a tirania da razão': 

2º - não podemos aceitar a ideia de certas culturas condenarem as raparigas e as mulheres a uma não-vida proibindo-lhes a educação, a liberdade, o trabalho, etc., com o argumento de que é a sua cultura, pois ao argumentarem desse modo estão a querer universalizar esse princípio de não se universalizar a cultura local, ou seja, estão a adoptar o critério da racionalidade universal, que criticam, como fundamento da validade das suas ideias. A partir do momento em que o fazem, têm que aceitar ouvir os argumentos, as razões, contrárias.

 

(publicado também no blog azul)

Da igualdade e da liberdade

Pedro Correia, 10.04.17

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Há quem enalteça a igualdade como o valor mais nobre da democracia. Mas um relance pela história dos últimos decénios demonstra que isso não corresponde à verdade.

Em nome da igualdade foram cometidos alguns dos maiores crimes do século XX. O extermínio de pequenos agricultores russos e ucranianos que não se submeteram à norma "igualitária" da Revolução de Outubro. O internamento em campos de "reeducação", a humilhação pública e as sevícias que desabaram sobre o embrião de classe média nos anos desvairados da pseudo-Revolução Cultural na China maoísta. A igualdade utópica erigida em dogma supremo que justificava os mais cruéis anátemas, como a liquidação de qualquer indivíduo que usasse óculos – esse absurdo símbolo de uma cultura "decadente" – no Camboja sujeito à mão de ferro de Pol Pot.

 

Depois das escabrosas experiências de engenharia social feitas pelos maiores tiranos apostados em garantir a "igualdade", o termo passou a ser um dos mais corrompidas da nossa época.
George Orwell tornou bem evidente esta irremediável corrupção lexical, em que a palavra serve apenas de camuflagem para ocultar o seu significado oposto, na mais corrosiva fábula política de todos os tempos – O Triunfo dos Porcos (Animal Farm, 1945), quando se torna inequívoco, aos olhos de todos os animais que habitam a quinta, que “uns são mais iguais do que os outros”. Precisamente os que integram a camarilha triunfante, formando uma nova classe – igualitária no verbo, despótica no mando.
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Ao contrário do que supõem algumas boas almas, o valor mais nobre da democracia não é a igualdade – é a liberdade. A "igualdade", como já se viu, pode coexistir com a mais aberrante ditadura (reina a "igualdade", por exemplo, entre todos os prisioneiros num campo de concentração).
Mas nunca haverá democracia sem liberdade. Não pode haver.
“A liberdade é preciosa – tão preciosa que deve ser racionada”, assegurou Lenine, numa das maiores proclamações de cinismo político de que há memória. Mas que é também uma notável - embora involuntária - homenagem do fundador do Estado soviético a essa aspiração suprema da condição humana que é a liberdade. Que só mantém o seu valor facial quando é aplicada sem racionamentos.
Até contra a igualdade, se for preciso.

o fim do mundo

Patrícia Reis, 21.02.14

Eu sei o que é estar à beira do abismo. Estou a olhar para ele, para o meu fim.

 

Esta frase é de Eduardo Lourenço, assim a disse, ontem, nas Correntes d'Escrita, edição 2014.

O meu coração encolhe-se.

O que quer dizer é que já não vê o futuro, que partilhou mais de 50 anos de vida com alguém que não está, que talvez possa deixar de pensar, de escrever, de querer saber. Não o diz assim. Nunca o dirá. Mas sente-o.

No Congresso Internacional Fernando Pessoa em Novembro de 2012, andando para cá e para lá, a ver a morte rondar, não parou um segundo.

Dei-lhe boleia. A minha mão nas mudanças, a dele na minha. Um gesto de conforto. De ternura. Os meus olhos ficaram nublados com a história que me contou. Não a repetirei, não é para isso que servem estes espaços. E, ao mesmo tempo, há no silêncio de algo que nos foi digo uma certa ideia de sagrado. Disse-lhe

 

Gosto de o ouvir pensar.

 

Parece-me holocáustica a forma como algumas das minhas pessoas estão tão perto do abismo. A justiça disso será o quê? A minha verdade é fruto da experiência, logo distinta da dos outros. O meu abismo é só meu. Gostaria de dar, a quem amo, planíces para caminhar, para gozar o sol, o silêncio. Um mundo plano, sem quedas. Depois repito o que sei ser verdade e, porventura, inevitável para todos

 

Eu sei o que é estar à beira do abismo. Estou a olhar para ele, para o meu fim.

Parar para ler, parar para pensar

Pedro Correia, 02.01.13

 

Em 2012 consegui ler ou reler Eça, Camilo, Jorge Amado, Virginia Woolf, William Faulkner, Ford Madox Ford, Dylan Thomas, Graham Greene, Julio Cortázar, Joseph Roth, Nelson Rodrigues, Pérez-Reverte e Erich Maria Remarque, entre alguns outros. Li muito menos do que gostaria, mas muito mais do que eu próprio antevi ao iniciar-se o ano num tempo em que tudo nos afugenta da leitura - do ruído circundante às contínuas invasões do nosso reduto íntimo através desses instrumentos omnipresentes no quotidiano do homem contemporâneo que são os computadores e os telemóveis, cada vez mais sofisticados, cada vez mais intromissivos.

A capacidade de concentração de cada de um de nós vai-se diluindo, por obra e graça destes aparelhos que nos põem em contacto com o mundo e com um sem-fim de amigos "virtuais" que nunca vimos mais gordos. A reflexão é inimiga desta constante fragmentação em que vivemos: é raro o filme que se vê até ao fim - mesmo numa sala de cinema - sem o contínuo piscar da luz do telefone portátil, adereço hoje obrigatório, espécie de prolongamento da mão de cada um.

E, no entanto, continuamos a ter direito ao silêncio. Continuamos a sentir necessidade de alguma solidão que nos permita o indispensável reencontro connosco próprios por detrás da espuma dos dias - tão ilusória, tão fugaz, tão enganadora. Continuamos a sentir necessidade daquelas horas de recolhimento a sós com um livro, com um filme, com aquele disco que há muito pretendíamos escutar sem a inevitável gritaria dos anúncios da TV em fundo ou o insistente apito das inúteis mensagens de telemóvel apregoando mais uma campanha de descontos daquele perfume que nunca iremos comprar ou daquela peça de roupa que jamais usaremos.

De tudo quanto pedimos que nos traga o Ano Novo, peçamos-lhe também alguns períodos de paz interior que nos permitam algo tão elementar como ir ao encontro de um livro adormecido numa estante. Talvez aquele que há anos queremos ler sem o conseguir por algum motivo fortuito. Ou revisitar aquele de que gostámos muito há uma dúzia de anos.

E não abdiquemos também do direito de pensar - arranjemos também algum tempo para reflectir. Para nos interrogarmos. Para não nos deixarmos levar pelos pregoeiros de serviço ou pelos vendedores de ilusões. "O mais grave no nosso tempo não é não termos respostas para o que perguntamos - é não termos já mesmo perguntas", escreveu Vergílio Ferreira na sua Conta Corrente, cheio de razão.

Tentemos que o nosso 2013 não seja assim. 

Pensar?

Patrícia Reis, 17.02.12

Não sei em que pensar: em ir para casa como sugere um cardeal, no homem que foi condenado apenas a seis anos de prisão por exigir à mulher a participação em orgias sexuais apontando-lhe uma arma ou na questão da fertilidade e na Europa envelhecida.

Vou pensar em 19 pontos na cabeça. É mais fácil.

Mrs Christie

Patrícia Reis, 19.06.11

O começo do soneto é de Shakespeare. Dá título ao livro de Mary Westmacott, aliás Agatha Christie. A história singular de uma mulher que espera por um comboio para regressar à vidinha? Sim. Em simultâneo, a personagem central fica com tempo para rever o seu tempo de vida, com o marido, os três filhos, as coisas da vida. Pensar é um acto violento, disse Vergílio Ferreira. Nada mais certeiro.