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"Qualquer que seja a opinião ou a fé professada pelos homens, aquilo que os distingue é sobretudo a presença ou a ausência, no seu pensamento e na sua pessoa, deste além, o seu sentimento de habitarem um mundo acabado e que se esgota em si próprio, ou antes incompleto e aberto sobre um outro lado. (...)
[N]ós – a língua em que escrevo é pobre, a sua gramática não conhece o dual necessário para conjugar e declinar sem equívocos a substância contínua da vida – ficámos um pouco para trás." – Claudio Magris, Danúbio
O ano que findou mostrou que o maior desafio de uma cidadania activa é o de ser capaz de se despir de modas e preconceitos e de fazer um exercício de auto-análise, de introspecção objectiva e subjectiva, em todo e cada um dos momentos em que se exija um juízo crítico da acção política e da intenção subjacente à intervenção e à decisão.
Os sistemas de pesos e contrapesos não existem nas autocracias; são uma pura farsa destinada a iludir os ignorantes e a confortar os vermes. Nos regimes democráticos esses sistemas estão a funcionar cada vez mais deficientemente.
Mas ainda assim, mesmo naquelas, esse juízo crítico, não obstante ser muitas vezes ofuscado, desvalorizado e gozado acaba por existir. Olhe-se para a forma como no seguimento da reafirmação da política de tolerância zero no XX Congresso do PCC, em poucas semanas a China mudou radicalmente a sua política em relação ao controlo e combate à pandemia. Porquê? Simplesmente porque morreu gente em consequência dessa política. Mortes que se poderiam ter evitado. A isso juntou-se o cansaço generalizado, o desastre económico e social que mostrou o falhanço do modelo, para quem ainda tivesse dúvidas, e a mentira e vacuidade do discurso político. Com dezenas de cidades em ebulição, com centenas de milhares nas ruas, ou se reeditava o 4 de Junho de 1989, à escala nacional, ou se fazia marcha-atrás para salvar a face e o regime.
Em situações de crise, com dificuldades crescentes a nível interno e internacional, com mais e melhor informação, que se propaga à velocidade da luz, nenhum regime político sobrevive sem escrutínio, seja ele qual for.
Numa democracia cada vez mais fragilizada, com um Estado refém dos egoísmos político-partidários, da crescente imbecilização de elites políticas deficientemente educadas, culturalmente impreparadas, eticamente destituídas de princípios e moralmente amorfas, onde qualquer fedayin ou camaleão carreirista saído das juventudes partidárias e politicamente promovido é visto como um estadista consistente, só uma intervenção cívica corajosa, altruísta e despojada de mercenarismo é capaz de obrigar à reforma do regime e à reestruturação do sistema de valores, de prioridades e de escrutínio.
Talvez, por isso mesmo, valha a pena começar pelo último.
Todo os processos relevantes das últimas décadas, ocorridos em Portugal, qualquer que seja a sua natureza – BES, Banco de Portugal, BANIF, CGD, TAP, EFACEC, CP, GNR, Ministério da Defesa, Millennium-BCP, BPN/SLN, Sócrates, PPP, corrupção nos meios judiciais, futebol, arbitragem, utilização de fundos europeus, fundações, empreitadas de obras públicas em geral, autarquias, empresas ligadas a estas, investigações e decisões judiciais aberrantes, para só referir alguns e sem esquecer os problemas nas universidades que empurram muitos dos melhores para o estrangeiro e um ostracismo sem retorno – onde o país enterrou, e enterra diariamente, a esperança, energias e milhões de euros devidos às próximas gerações, mostra que a ausência de escrutínio atempado, de transparência na vida pública e de sancionamento adequado à opacidade, conduzem-nos à moscambilha, à tragédia, à revolta, e a um sentimento aviltante de humilhação pública e regular que nos retira inteligência, tolerância e humanidade. Os custos têm sido astronómicos em tempo e recursos.
Depois, continuamos a não saber verdadeiramente quais são as nossas prioridades. Elites acomodadas e cafrealizadas hesitam entre a defesa dos direitos humanos ou o apoio à selecção nacional de futebol, entre o respeito pela autonomia da instituição religiosa e a defesa das vítimas da insânia, entre o combate à corrupção sem quartel e a condescendência com o segredo de justiça e a defesa do in dubio pro reo, como se essas fossem realidades comparáveis, auto-suficientes e estanques numa sociedade moderna e civilizada.
E há, ainda, a opção pelos valores.
Há que decidir entre o redescobrimento ético e a persistência na aviltação e no acanalhamento, entre o rigor e o abandalhamento, entre a solidariedade nacional e o amiguismo carreirista, entre a integridade e a acomodação, entre a lealdade e a fidelidade, entre a educação e a chico-espertice, entre a cultura e a superficialidade pavorosa, entre o jornalismo e o rumor, entre a seriedade e a frivolidade, entre a água limpa que nos refresca o rosto e o charco barrento onde as mãos se perdem, entre a verdade e a mentira. Enfim, há que optar entre partidos desfigurados e a nação, entre o indivíduo e a comunidade.
Um organismo tomado pelos fungos não sobreviverá. Um regime político que convive com os fungos, e os acarinha, está destinado a humilhar-se e a desaparecer.
Na aurora de 2023, a única opção viável é a da sobrevivência com dignidade, é investir num combate sem quartel aos fungos e às moléstias que nos enfraquecem a mente e a personalidade colectiva. Em casa, no trabalho, nas empresas, nos partidos, na banca, nas entidades de supervisão, nas instituições de solidariedade social, nas polícias, nas autarquias, em todos os órgãos de soberania. Enfim, mais importante, na nossa consciência cívica.
Esta é uma escolha como qualquer outra que nos coloca perante nós e o outro. Precisamos de uma escolha que nos faça olhar para a responsabilidade que se posiciona à nossa frente e sem claudicar nos obrigue a reagir e decidir. Sem vacilar, cientes de que cada um de nós existe, onde quer que esteja, e será capaz na sua humanidade de distinguir claramente a noite do dia, a obscuridade da luminosidade, a opacidade fluída da transparência, a saúde da enfermidade.
Não há, não conheço, não concebo, outra maneira de ser livre sem me atraiçoar. Sem respeitar os outros e a minha consciência. De ser humano e português, mantendo a universalidade em tempos de nacionalismo serôdio, hipocrisia, soberba e cinismo. Sem com isso confundir o amor ao próximo com a amizade, a emergência climática e ambiental com o fanatismo degradante, a procura pela igualdade de género e o respeito pelas minorias com a insensatez, a gratidão por quem nos faz bem com o respeito pela crítica, a tolerância com a decência integral, a complacência com algumas fraquezas menores com a fragilidade do carácter.
É preciso resistir. É preciso escolher. É preciso estar à altura do futuro. E ver para além dele com olhos de ver.
Boa semana para vós que tendes a paciência de me ler. Não vos maço mais. Bom Ano.
Este pensamento acompanhou o DELITO durante toda a semana.