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Delito de Opinião

Animais

Sérgio de Almeida Correia, 01.02.24

(créditos: daqui)

Confesso que ainda estou chocado.

Nos últimos dias tenho pensado muitas vezes no que aconteceu. E só de pensar imagino-me a contorcer-me e a sentir o sofrimento atroz que foi infligido a um homem, preso, que condenado à pena capital em 1988 assistiu 34 anos depois ao falhanço, com sequelas, da primeira tentativa para a sua execução, cuja macabra concretização só ocorreu há alguns dias.

Da primeira vez, em Novembro de 2022, o desgraçado estivera durante quatro horas amarrado a uma maca para ser depois devolvido à sua cela devido à manifesta incompetência dos seus carrascos, incapazes de encontrarem uma veia adequada para lhe injectarem o líquido letal antes de expirar o prazo para execução da sentença de morte.

A opção, desta vez, passou por fazer do preso uma cobaia e matá-lo por asfixia usando uma máscara para onde foi bombeado nitrogénio. Fazendo-o respirar o gás e sofrer até que a asfixia fosse completa, de modo que pudesse viver cada segundo de agonia a plenos pulmões. Com outros a assistir ao espectáculo do sofrimento, como se este fosse uma espécie de justiça divina carregando em si a reconciliação e a esperança. 

É óbvio que quando um dos carniceiros que faz de Solicitor General do Alabama diz que o processo escolhido foi “o menos doloroso e mais humano que se conhece”, LaCour só mostra porque não passa de um primitivo saído do largo esgoto do trumpismo, com vasto cadastro em matéria de direitos humanos, que justifica a barbárie em pleno século XXI e os procedimentos macabros de execução do prisioneiro usando uma linguagem só compreensível para si e para cafres de igual linhagem.

Estranho, em particular, nesta miséria global em que vivemos e não conhece fronteiras, que tantas organizações devotadas à protecção e ao bem-estar animal não se tenham insurgido e manifestado em todo o lado e a toda a hora, com a mesma veemência com que o fazem contra as touradas, perante aquilo a que assistimos no Alabama, continuando todos sentados no conforto dos seus gabinetes, enquanto tomam um cafezinho e discutem a emergência climática com o vizinho que está de comando na mão a regular a temperatura do ar-condicionado ou a fazer zapping para ver as diatribes dos ignaros que por aí  se dedicam a invadir museus e a destruir património que pertence à memória de todos os povos, pensando que com isso arregimentam adeptos para a sua causa.

Tirando uma ou outra peça nos noticiários, um artigo nos jornais e as tomadas de posição de algumas organizações de defesa dos direitos humanos, esta selvajaria, que remete os EUA e a Humanidade para um estado pré-animalesco, onde desprovidos de tudo, de intelecto, da mais leve racionalidade ou de qualquer sentimento conhecido, nos dedicamos à grotesca exterminação da nossa própria espécie, infligindo o maior sofrimento possível ao condenado, sem qualquer ponta de compaixão ou remorso, aconteceu sem que as nações que se consideram civilizadas se levantassem em uníssono a condenar o sucedido.

Ignorou-se a imposição de sanções, como tantas outras vezes se faz por questões menores, a começar pela União Europeia, e esqueceram-se de colocar os carniceiros numa qualquer lista de pessoas a evitar, impedindo-as de viajar e entrar em países terceiros, sujeitando-as internacionalmente a perseguição criminal.

Como se LaCour ou os executores do homicídio de Kenneth Smith fossem melhor que os projectistas da "Solução Final", os funcionários de Treblinka ou de Auschwitz-Birkenau, os suicidas do Hamas, os seus sósias da IDF, os carniceiros putinescos, a escória fardada do Mianmar, os talibãs afegãos, ou tantos outros vermes que andam por aí à solta sem que nada lhes aconteça.   

Sim, porque se mais não se ouviu da parte dos defensores e das organizações protectoras dos direitos dos animais, não terá sido por falta de vontade, de meios ou de megafone, mas antes porque a preocupação com os maus-tratos às galinhas ou aos bovinos, inteiramente devida, certamente terá uma qualquer outra dimensão, inatingível para mim, que a torna incompatível com a protecção da nossa própria espécie e os remete ao silêncio.

Uma democracia que se preze, um Estado de direito, um país que queira ser visto pelos outros como civilizado e desenvolvido, não pode continuar a conviver com a pena de morte como se fosse uma qualquer teocracia fundamentalista ou uma dessas autocracias "democráticas" da Ásia. Muito menos permitindo execuções com o grau de sadismo imposto ao condenado do Alabama.

É em momentos como o que correu nos EUA que sinto verdadeiro asco por alguns dos meus semelhantes; como se não fossemos todos da mesma espécie, não tivéssemos direito a respirar o mesmo ar, numa espécie de sentimento misto de desprezo e revolta que com todas as forças procuro combater, para não ser como eles, e que jamais conseguirei compreender. 

Antes o regresso à guilhotina, ao tiro na nuca ou ao pelotão de fuzilamento.

Ainda sobre a pena de morte

Rui Rocha, 08.08.12

A execução de uma pena de morte implica sempre o regresso a um estado de barbárie. A boa discussão não é aquela em que se questiona a pena de morte quando ela é aplicada a alguém privado da capacidade básica de querer e entender, como alguns alegam que aconteceu hoje no Texas. Aliás, neste tema não há boas discussões. A única posição aceitável é a negação radical da pena de morte em qualquer circunstância, mesmo naqueles casos em que os crimes cometidos são tão hediondos que despertam em nós a vertigem de fazer Justiça com as nossas próprias mãos. A oposição à pena de morte não acrescenta nada à indignidade de quem comete certos crimes. Mas diz tudo sobre a dignidade da comunidade que se opõe à execução.

Georgia on my mind

Ana Vidal, 23.09.11

 

Chamava-se Troy Davis e morreu ontem numa prisão da Georgia, após mais de vinte anos de sucessivos recursos, apelos e petições. Morreu jurando a sua inocência na acusação de que era alvo: a morte de um polícia à paisana, num parque de estacionamento, em 1989. Nos longos anos que passou no corredor da morte, afirmou sempre que nem sequer tinha uma arma, e a verdade é que a arma do crime nunca apareceu. Nem esta, nem outras provas que seriam irrefutáveis - adn, impressões digitais - alguma vez o ligaram directamente ao acto. A acusação apoiou-se na palavra de nove testemunhas, sete das quais se retractaram e desdisseram os seus depoimentos iniciais. Várias personalidades públicas, como o ex-presidente Jimmy Carter, o papa Bento XVI e a actriz Susan Sarandon (Dead man walking, lembram-se?) pediram insistentemente um indulto. O próprio presidente Obama foi chamado a intervir, in extremis, mas lavou as mãos, dizendo que o caso cabia ao Estado da Georgia e não ao poder federal. Shame on you, Mr. Obama, que decepção. Men playing gods, e logo quem se considera o paradigma da civilização e do progresso no mundo.

 

Troy Davis está morto. Era inocente, como afirmou sempre, ou era culpado? Talvez nunca venha a saber-se. Ou talvez um dia surjam novas provas. Seja como for, uma injecção letal tornou irreversível a aterradora hipótese de vir um dia a provar-se que foi vítima de um engano ou de uma cilada.  Evito olhar para a fotografia deste homem, cujo olhar me parece franco e leal. As aparências enganam, eu sei. Por isso mesmo - mas, sobretudo, porque nenhum homem tem o direito de tirar a vida a outro - a pena de morte é inadmissível. Qualquer que seja a gravidade do crime, e mesmo em face de provas concretas. O que nem sequer foi o caso.

 

Sorry, dear Ray, mas hoje Georgia is on my mind pelos piores motivos.

 

Grande salto à retaguarda

Pedro Correia, 26.03.09

 

I

Um único país tornou-se responsável por mais de dois terços (72%) de todas as execuções 'judiciais' ocorridas em todo o mundo no ano passado: a República Popular da China, onde pelo menos 1718 pessoas foram mortas às ordens do Estado. Os chineses chegam aliás ao extremo requinte de fazer a família do executado pagar a bala que lhe é enfiada na nuca - um grande salto à retaguarda no domínio civilizacional, idêntico a tantos outros a que a ditadura de Pequim já habituou o mundo. Só em 2008, ano em que ali se realizaram os Jogos Olímpicos, pelo menos 7003 chineses foram condenados à pena capital. A ressalva deve-se ao facto de estes números serem considerados segredos de Estado na China, país que o Partido Comunista Português, fechando os olhos a todas as evidências, continua a considerar "uma importante realidade do quadro internacional, nomeadamente pelo seu papel de resistência à 'nova ordem' imperialista".

Estas macabras estatísticas constam do mais recente relatório da Amnistia Internacional, divulgado segunda-feira. Um documento que confirma o triste papel da China como recordista mundial da pena de morte: sete chineses são executados diariamente por decisão das autoridades do seu próprio país. Seguem-se, embora a considerável distância, o Irão (346 execuções em 2008), a Arábia Saudita (102), os Estados Unidos (37), o Paquistão (36), o Iraque (34), o Vietname (19), o Afeganistão (17), a Coreia do Norte (15) e o Japão (15).

II

Apesar de tudo, há boas notícias: a lista dos países que levam à prática a pena de morte é cada vez mais curta - apenas 25 a aplicaram no ano passado. Enquanto em 1948 só oito países tinham abolido as execuções 'judiciais', em 2008 este número ascendeu a 138. E a Europa seria um continente livre deste flagelo se não ocorresse a triste excepção da Bielorrússia, onde se registaram quatro execuções. Caso para lamentar? Não: caso para aplaudir - pelo menos na óptica do PCP. "O legado pós-soviético traduziu-se, na esmagadora maioria das ex-repúblicas socialistas, num autêntico desastre para o povo e a soberania dos respectivos países. A Bielorrússia destoa do panorama geral", entusiasmava-se neste editorial de 2006 o inefável Avante!, cheio de hossanas ao regime do sinistro Lukashenko, o último ditador da Europa. Não consta que o órgão oficial dos comunistas portugueses tenha alterado a opinião de então para cá.